ANDRE BARROCAL
Aembaixada dos Estados
Unidos em Brasília reser-
vou 70 quartos de hotel
para a posse de Luiz Iná-
cio Lula da Silva em 1º de
janeiro, 30 a mais do que o
plano em caso de reeleição
de Jair Bolsonaro. A dele-
gação norte-americana deverá ser encabe-
çada por Kamala Harris, vice de Joe Biden,
um dos primeiros líderes a parabenizar
Lula pela vitória. Na noite do domingo 30,
poucas horas após a confirmação do resul-
tado, Biden emitiu uma nota pública. No
dia seguinte, ambos conversaram por te-
lefone sobre democracia, meio ambiente e
relações bilaterais. Em quase dois anos na
Casa Branca, o democrata vive situação di-
fícil. Na terça-feira 8, haverá eleições para
deputados e senadores e, segundo as pre-
visões, o Partido Republicano de Donald
Trump obterá a maioria. Trump sonha em
voltar a Washington em 2024 e, à frente da
extrema-direita, nunca aceitou a derrota
de 2020 nem deixou de ser um fantasma.
Alerta para Lula e o Brasil.
O triunfo do petista confirmou o alto
grau de divisão nacional. Foram apenas 2
milhões de votos de vantagem sobre Bol-
sonaro, em um total de 118 milhões (60
milhões para o ex-presidente e 58 mi-
lhões para o capitão, 50,9% a 49,1%). No
pronunciamento da vitória, Lula disse,
no entanto, que “não existem dois Bra-
sis” e prometeu “governar para 215 mi-
lhões de brasileiros, e não apenas para
aqueles que votaram em mim”. O outro
lado baixará a guarda? Não parece, a jul-
gar pelos bloqueios de estradas por cami-
nhões e pelos protestos na porta de quar-
téis nos últimos dias. O delegado da Polí-
cia Federal à frente da segurança de Lula,
Andrei Rodrigueis, deve manter um es-
quema especial de proteção do presiden-
te eleito até a posse. Um experiente agen-
te da PF vê risco à vida do petista na for-
ma de ataque de um “lobo solitário”, mais
difícil de descobrir e impedir. “Quando se
trata das chances de Lula unir o País, as
perspectivas são ruins. Assim como Joe
Biden não conseguiu, não espere que Lu-
la o faça”, pontua uma análise da consul-
toria global Eurasia, disparada a clientes
mundo afora após a eleição brasileira.
EQUILIBRAR AS
CONTAS PÚBLICAS
E ZERAR O DÉFICIT
É ALGO QUE O
FUTURO GOVERNO
PRETENDE FAZER
EM QUATRO ANOS,
NÃO DE UMA VEZ
De acordo com um colaborador lu-
lista, enfrentar o bolsonarismo exigi-
rá uma política externa a serviço da po-
lítica interna, lógica diferente das rela-
ções internacionais dos mandatos ante-
riores do PT. Faz parte desse diagnósti-
co a participação do futuro presidente na
conferência da ONU sobre mudanças cli-
máticas, a ser realizada entre os dias 6 e
18 no Egito. A bandeira ambiental será a
vedete da nova política externa. Segun-
do o mesmo colaborador, não adianta ra-
char o dito “Centrão” e atrair para a ba-
se governista parlamentares que votam
com o capitão: Bolsonaro não estará iso-
lado, pois a extrema-direita é um movi-
mento global, capaz de apoiar o brasilei-
ro com dinheiro e estratégias midiáticas.
Neste cenário complexo, Lula fica sem
margem de erro. Sua “lua de mel” com
a população após a posse será curta, na
visão da Eurasia. A reeleição de Dilma
Rousseff é outra lição. A petista bateu o
tucano Aécio Neves por 3 milhões de vo-
tos em 2014 e depois abraçou uma políti-
ca econômica neoliberal, traição ao dis-
curso de campanha. Deu no que deu: per-
da rápida de ibope e impeachment. Ago-
ra, o governo de transição chefiado pelo
vice de Lula, Geraldo Alckmin, começou
os trabalhos na quinta-feira 3 com a mis-
são de escarafunchar as contas federais e
arrumar formas de cumprir logo as pro-
messas de campanha do petista. Idem as
conversas iniciadas no mesmo dia pelo
senador eleito Wellington Dias, do PT, in-
tegrante do comitê eleitoral lulista, com
o relator do próximo orçamento anual,
senador Marcelo Castro, do MDB, am-
bos do Piauí. “Queremos que seja asse-
gurado no orçamento de 2023 o contra-
to que fizemos nas eleições, aquilo que
nós dissemos que iríamos realizar para
o povo brasileiro”, disse a presidente do
PT, Gleisi Hoffmann, na terça-feira 1º.
A lei orçamentária do ano que vem en-
viada ao Congresso em agosto pelo mi-
nistro da Economia, Paulo Guedes, é um
obstáculo às promessas de Lula aos mais
pobres, aqueles responsáveis pela derro-
ta de Bolsonaro. O PIB crescerá 2,5% na
projeção otimista de Guedes. O “merca-
do” estima 0,6%, o Banco Mundial, 0,8%,
e o FMI, 1%. Quanto menor o crescimen-
to, menos dinheiro no cofre federal. E
mesmo que o “Posto Ipiranga” acerte a
previsão, o cobertor é curto para bancar
bandeiras de Lula, entre elas a manuten-
ção do Auxílio Brasil em 600 reais, o au-
mento real do salário mínimo, o refor-
ço do programa Farmácia Popular e do
repasse à merenda escolar. Só as quatro
iniciativas vão requerer cerca de 85 bi-
lhões de reais. Há boas chances de Lula
optar por uma solução como aquela dos
tempos da pandemia. “Vamos precisar de
um orçamento de guerra”, diz o senador
Humberto Costa, do PT de Pernambuco.
Segundo um colaborador eco-
nômico de Lula, é “impossí-
vel” cumprir as promessas
sem deixar de lado o teto de
gastos, como foi feito contra
o Coronavírus em 2020. Na
prática, significa licença para gastar e
se endividar. A dívida pública bruta es-
tá em 77% do PIB e havia chegado a 89%
na pandemia, graças ao orçamento de
guerra. O déficit público anual, de 1,2%
do PIB em 2019, subiu a 9,4% em 2020
e baixou a 0,4% em 2021. Equilibrar as
contas públicas e zerar o déficit é algo que
o futuro governo pretende fazer em qua-
tro anos, não de uma vez. É o que diz um
integrante político do comitê eleitoral de
Lula. O economista do início deste pará-
grafo acredita que o orçamento de 2023
não será aprovado até dezembro, mas só
após a posse do petista. E que Lula bai-
xará medida provisória para separar re-
cursos extraordinários, a fim de materia-
lizar as promessas.
O Auxílio Brasil, ex-Bolsa Família, é
um abacaxi que o presidente eleito tem
todo o interesse de descascar de imedia-
to. O tema mexe com 21 milhões de bra-
sileiros, público que votou maciçamente
no petista, pelo que se via nas pesquisas
durante a eleição. “Nosso compromisso
mais urgente é acabar outra vez com a fo-
me”, declarou Lula no dia da vitória. O
orçamento preparado por Guedes prevê
405 reais de Auxílio a partir de janeiro,
inferior aos atuais 600 reais que o capi-
tão havia fixado de forma eleitoreira. Lu-
la quer manter a quantia atual e dar um
extra de 150 reais por criança. Cumprir a
palavra requer perto de 75 bilhões.
O aumento real ao salário mínimo, ou-
tra promessa, custaria cerca de 7 bilhões.
Os economistas lulistas esboçaram uma
política de valorização do piso baseada na
média do PIB dos cinco anos anteriores.
Para 2023, significa um valor de 1.320, al-
ta real de 1,3% a 1,4%. Nos governos de
Lula e Dilma, o ganho acima da inflação
baseava-se no PIB de dois anos antes. Se
a regra vigorasse até hoje, estaria em 2,1
mil reais e não 1,2 mil, nas contas da equi-
pe do presidente eleito. Para o próximo
ano, Guedes propôs, mais uma vez, re-
por a inflação e só, ou seja, chegar a 1,3
mil reais. Pior para cerca de 21 milhões de
aposentados e 35 milhões de trabalhado-
res, formais e informais, atados ao piso.
Há mais duas emergências de Lula:
reforçar o programa Farmácia Popular,
de venda de remédios mais baratos, e o
repasse federal para a merenda escolar.
Bolsonaro entregará ao sucessor menos
verba nos dois programas. O primeiro
tinha 3 bilhões em 2018, ano anterior à
posse do capitão, e tem 1 bilhão na pro-
posta de orçamento de 2023. O repasse
para a merenda caiu de 4,1 bilhões em
2018 para 3,9 bilhões em 2023. Corrigir
ambos pela inflação acumulada no atual
governo, cerca de 30%, custará 4 bilhões.
Além de um “orçamento de guerra”, o
time de Lula identifica outra fonte de re-
cursos. É o orçamento secreto, aquele ca-
minhão de dinheiro que os congressistas
manejam a seu bel-prazer, tema capaz de
azedar a relação do petista com o presi-
dente da Câmara, Arthur Lira. Para en-
frentar o deputado, os lulistas apostam
na comandante do Supremo Tribunal Fe-
deral, Rosa Weber. Ao assumir a chefia da
Corte, em setembro, a juíza manteve con-
sigo uma ação contra o orçamento secre-
to, proposta pelo PSOL em junho de 2021.
O costume é de que quem está à frente do
STF repasse aos colegas os casos sob sua
responsabilidade. Weber é a favor da ação
do PSOL. No fim do ano passado, deu li-
minar para barrar o orçamento secreto,
embora depois tenha recuado, pois cer-
tos colegas acharam intervenção exces-
siva em outro poder. No comando do tri-
bunal, a ministra pode colocar o processo
em votação e apresentar seu próprio vo-
to como forma de influenciar o desfecho.
A possibilidade de julgamento é um
trunfo de Lula na busca de negociação
com Lira. O petista quer acabar com o me-
canismo, conforme um integrante de seu
comitê de campanha. Sua visão é de que
os parlamentares deveriam ser proibidos
de enviar verba federal para obras que eles
escolhem com base nos próprios interes-
ses, sem levar em conta as carências da
região premiada. É um rito que fragmen-
ta as políticas públicas. Segundo Lula, es-
tados, municípios e a sociedade precisam
ser ouvidos na escolha dos investimentos.
Por isso, planeja reunir-se com governa-
dores e prefeitos em janeiro, a fim de dis-
cutir obras prioritárias. Lira não quer de
jeito nenhum abrir mão do orçamento se-
creto. Diz que em Brasília ninguém enten-
de mais das carências do País do que um
deputado. E tem uma carta para reagir a
um xeque-mate supremo, verbalizada em
outubro em O Estado de S. Paulo por um
aliado, o deputado baiano Elmar Nasci-
mento, do União Brasil: “(O STF) vai tirar
o orçamento da gente e a gente vai aceitar?
Se tirar o nosso, a gente tira o deles”. De-
talhe: o Tribunal deseja aumento de 18%
nos salários dos juízes, para 46 mil reais,
e cabe ao Congresso autorizar.
Oorçamento secreto banca a for-
ça de Lira em Brasília. São 16
bilhões de reais neste ano e 19
bilhões reservados para 2023.
O deputado tentará se reeleger
em fevereiro como presidente
da Câmara e conta com esses recursos em
sua campanha. Não é o nome dos sonhos
do PT para ocupar um cargo estratégico
no início do desafiador novo mandato de
Lula, apesar de o deputado ter feito decla-
ração pública de reconhecimento do re-
sultado, considerada um aceno. O bolso-
narizado Lira acha que o Congresso saí-
do das urnas em outubro é mais de direi-
ta que o atual e se manterá liberal. De que-
bra, é inimigo em Alagoas de um dos mais
ardorosos lulistas da eleição, o senador
Renan Calheiros, do MDB. Por ora, a or-
dem no PT é deixar Lula de fora da dispu-
ta pelo comando da Câmara e do Senado e
resolver tudo com as outras bancadas e di-
reções partidárias. Se o orçamento secre-
to estiver de pé até fevereiro de 2023, re-
sistir a Lira será mais difícil. E vice-versa.
A disputa pelo comando legislativo api-
menta a formação da futura base parla-
mentar de Lula. Gleisi Hoffmann come-
çou as conversas na terça-feira 1º com a
direção de partidos que não eram da co-
ligação lulista, mas podem ingressar no
futuro governo, como MDB, PSD, PSDB e
União Brasil. O PT aguarda a decantação
entre os congressistas do Centrão, para sa-
ber quem seguirá bolsonarista e quem to-
pará mudar de barco. Na Câmara, a coli-
gação lulista, somada ao PDT, elegeu 130
deputados. O PT mapeou os demais elei-
tos e vê de 220 a 240 dispostos a conversar,
o que abre caminho para uma base gover-
nista com 350 a 370 deputados, suficien-
te para aprovar mudanças na Constitui-
ção. Lira luta, porém, pelo controle dessa
turma. Planeja reabrir o prazo para as si-
glas unirem-se em federações. No Sena-
do, o cenário é pior, pois os extremistas te-
rão mais peso. Os petistas acham possível
montar uma base com 45 a 50 integrantes.
No Senado, mexer na Constituição requer
ao menos 49 votos. O atual presidente da
Casa, Rodrigo Pacheco, do PSD de Minas,
também tentará a reeleição. É mais pala-
tável a Lula do que Lira na Câmara. E acei-
ta desidratar o orçamento secreto.
Nos próximos dias, o eleito irá
a Brasília para reunir-se se-
paradamente com Pacheco,
Lira, Weber e o presidente do
Tribunal Superior Eleitoral,
Alexandre de Moraes. Serão
conversas sobre a situação do País e a re-
lação entre os poderes. O petista deseja-
va dois dias de folga ao término da dispu-
ta, mas só conseguiu viajar no fim da ter-
ça-feira 1º. Foi com a esposa, a socióloga
Rosângela da Silva, a Janja, para Caraíva,
no litoral sul da Bahia. Destino simbóli-
co. A Bahia, quarto colégio eleitoral, deu
a maior vitória ao petista sobre Bolsonaro
em número de votos, 3,7 milhões de dife-
rença. No Nordeste em geral, Lula venceu
por 12,5 milhões (69% a 30%). A região
foi a responsável por devolvê-lo ao poder.
Mas o Sudeste deu contribuição decisiva.
Lula teve 7 milhões de votos sudestinos a
mais do que Fernando Haddad em 2018.
Perdeu para Bolsonaro por 4,2 milhões,
mas ganhou, entre outros locais, na capi-
tal paulista. Se fosse um estado, a cidade
de São Paulo seria o quinto colégio elei-
toral, com 6%. Resultado animador para
o campo progressista de olho na disputa
pela prefeitura paulistana em 2024.
Na tentativa de desarmar o antipetis-
mo da classe média, não só do Sudeste,
mas também do Sul, Lula prometeu na
campanha isentar de cobrança de Im-
posto de Renda quem embolsa até 5 mil
reais por mês. A isenção atual limita-se
a salários de até 1,9 mil mensais. Nos cál-
culos da Unafisco, a associação dos audi-
tores da Receita Federal, a promessa lu-
lista livraria do Leão 16 milhões de con-
tribuintes. Neste ano, a Receita recebeu
36 milhões de declarações, das quais 8
milhões eram de isentos. O aumento
da isenção representaria perda de 184
bilhões de reais por ano na arrecada-
ção federal. É uma proposta considera-
da urgente e deverá ser apresentada no
primeiro ano de governo. Como compen-
sação, os economistas lulistas defendem
taxar lucros e dividendos pagos a sócios
de empresas. Guerra à vista: uma parte
dos contribuintes ganharia, outra perde-
ria. Guedes propôs essa taxação e o PT
votou a favor na Câmara em setembro de
2021, em meio a forte reação de setores a
serem atingidos. A lei parou no Senado.
Resta saber quem será o porta-voz, o
rosto a sair em campo em favor da taxa-
ção dos dividendos e da isenção de IR até
5 mil reais. No retiro em Caraíva, Lula
amadureceria mais um pouco as deci-
sões sobre o futuro ministério. A nome-
ação mais aguardada, a do ministro da
Economia, pasta que deverá voltar a ser
desmembrada em várias como antes de
Bolsonaro, segue um mistério e guarda-
da na cabeça do futuro presidente. O pe-
tista disse mais de uma vez que escolhe-
rá alguém de perfil político, em razão da
necessidade de o escolhido ter de nego-
ciar com o Congresso. Um colaborador de
Lula na campanha diz que, se o petista ti-
vesse vencido no primeiro turno, o favori-
to para chefiar a economia seria o depu-
tado Alexandre Padilha, do PT paulista.
Como no segundo turno Lula precisou se
aproximar de liberais, agora a escolha se
tornou um mistério. Outro colaborador
cita Haddad, economista de formação.
Independentemente da pasta,Haddad
e Padilha são nomes certos na futura
equipe. Idem Rui Costa, ex-governador
petista da Bahia, Simone Tebet, ex-presi-
denciável do MDB, e Flávio Dino, senador
eleito pelo PSB do Maranhão. E quanto a
Guilherme Boulos, do PSOL, campeão de
votos para deputado federal em São Pau-
lo? Estranhamente, seu nome não tem si-
do citado nas bolsas de apostas nos últi-
mos dias. Gleisi Hoffmann, inclusive, cri-
ticou a intenção do MTST, o movimen-
to dos sem-teto liderado por Boulos, de
desobstruir por conta própria as estradas
bloqueadas por bolsonaristas. Detalhe:
Boulos foi também um dos finalistas na
eleição paulistana de 2020 e é nome na-
tural para concorrer de novo em 2024. Ou
será que para atrair para a base lulista o
MDB, do atual prefeito Ricardo Nunes,
o presidente eleito sacrificará o aliado
psolista? O jogo está apenas no começo. •
CARTA CAPITAL
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