May 24, 2022

A mentira vence

 

Matrix. Na realidade criada pela equipe de Ferdinand Marcos Jr., o BongBong, o pai e a mãe, Imelda, não saquearam o país nem perseguiram os opositores. A riqueza da família vem de berço e será distribuída generosamente aos pobres - Imagem: Uniteam/BBM-SARA e Romeo Gacad/AFP
Matrix. Na realidade criada pela equipe de Ferdinand Marcos Jr., o BongBong, o pai e a mãe, Imelda, não saquearam o país nem perseguiram os opositores. A riqueza da família vem de berço e será distribuída generosamente aos pobres - Imagem: Uniteam/BBM-SARA e Romeo Gacad/AFP

Uma campanha de desinformação reescreve a história e leva a família Marcos de volta ao poder nas Filipinas

POR REBECCA RATCLIFFE

Ferdinand Marcos, o ditador que governou as Filipinas de 1965 a 1986, foi o herói mais condecorado do país na Segunda Guerra Mundial. Sob seu governo, as Forças Armadas eram as mais avançadas da Ásia. Ainda mais impressionante: sua família possui enormes quantidades de ouro, o suficiente para salvar o mundo (foi dado a Marcos por uma família real como pagamento por atuar como seu advogado). Será compartilhado com a população se eles recuperarem o poder.

As afirmações são todas falsas. Mas isso não impediu que repercutissem nas redes sociais e saturasse os feeds de notícias nas Filipinas. Ferdinand Marcos deixou o cargo em desgraça há 36 anos, deposto pela Revolução do Poder Popular, que atraiu milhões para as ruas e forçou a família a fugir do palácio presidencial de helicóptero. Mas, no último domingo 8, a família Marcos marcou sua volta ao poder. Cerca de 67,5 milhões de filipinos foram às urnas para decidir quem substituiria o presidente populista Rodrigo Duterte, que chegou ao fim de seu mandato de seis anos e não podia concorrer novamente.

O único filho de Marcos,

Ferdinand Marcos Jr., conhecido como

Bongbong, confirmou o favoritismo e ob-

teve mais do dobro dos votos da concor-

rente, Leni Robredo, ex-advogada de di-

reitos humanos e atual vice-presidente.

Analistas descreveram a corrida como

uma luta pela verdade e o ápice de uma

campanha de décadas para reescrever a

história e reabilitar o nome Marcos. A elei-

ção não foi disputada apenas com dados e

evidências, disse Ronald Mendoza, reitor

da Escola de Governança Ateneo, em Ma-

nila: “É uma batalha de desinformação”.

Os Marcos e seus apoiadores tentam re-

visar a história de sua época e da lei mar-

cial imposta em 1972, muitas vezes descri-

ta como um dos episódios mais dolorosos

do país. Eles negam ou descartam a tortu-

ra generalizada documentada por grupos

de direitos humanos, as execuções extra-

judiciais e o roubo de bilhões de dólares.


Em vez disso, o período é retratado como

uma era dourada de paz e prosperidade.

Para os sobreviventes do regime de

Marcos, a aceitação de tais relatos por

parcelas significativas do público é in-

compreensível. “Se ele vencer, será com

base em narrativas falsas e distorção his-

tórica”, disse Bonifácio Ilagan, coordena-

dor da Campanha Contra o Retorno dos

Marcos e da Lei Marcial, antes do anún-

cio do resultado oficial. “Vivi a ditadura

militar. Fui preso duas vezes. Fui tortu-

rado. Minha irmã desapareceu e prova-

velmente foi morta, amigos sofreram o

mesmo. E agora o Marcos Jr. volta. É hor-

rível, parece um pesadelo.”


Parcerias foram formadas para com-

bater falsas afirmações online, entre elas

o #FactsFirstPH, formada por meios de

comunicação como Rappler, cofundado

pela ganhadora do Nobel Maria Ressa,

que se uniu a grupos religiosos, pesqui-

sadores e outros. O Tsek.ph, uma coali-

zão de universidades, jornalistas e gru-

pos da sociedade civil, também corrige

falsas teses nas redes sociais. “Todos os

dias vasculhamos esse tsunami de desin-

formação e decidimos quais checar. São

muitas”, diz Maria Diosa Labist, profes-

sora associada do Departamento de Jor-

nalismo da Universidade das Filipinas e

coordenadora da iniciativa.


O Tsek.ph tem uma linha de denúncias

na qual o público pode relatar postagens

questionáveis, enquanto os pesquisado-

res vasculham as redes sociais em busca

de desinformação viral. Sua análise mos-

tra que tanto Robredo quanto Marcos fo-

ram alvo de falsas afirmações. Mas a de-

sinformação sobre Robredo tem sido ex-

tremamente negativa, questionando sua

competência e seu caráter. Das falsas ale-

gações sobre Marcos, quase todas busca-

vam melhorar sua imagem ou aquela de

sua família. Muitas se relacionam à épo-

ca de seu pai: afirmavam erroneamente

que nenhum crítico de Marcos foi preso

durante a lei marcial, ou que todos os ca-

sos de riqueza ilícita contra a família fo-

ram arquivados.


No TikTok e no YouTube, contas ali-

nhadas a Marcos buscam glamourizar a

dinastia, com montagens de imagens de

arquivo e clipes de seus filhos adorados

por uma base de apoiadores mais jovens.

“O próprio Marcos Jr., sua carreira polí-

tica e suas realizações não são realmen-

te impressionantes”, disse Fátima Gaw,

professora assistente de pesquisa em co-

municação na Faculdade de Comunica-

ção de Massa da Universidade das Filipi-

nas. Seu apelo depende de sua promessa

de restaurar o legado do pai, que é o cen-

tro das campanhas online.


Em um recente show para Marcos em

Bulacan, o clima era nostálgico. A mul-

tidão, vestida de vermelho, cantou músi-

cas de rock dos anos 1970 e 80. Os partici-

pantes falaram com carinho do passado.

“O pai dele fez muitas coisas. Ele cons-

truiu estradas, pontes, hospitais”, dis-

se Zenaida Catindig, 59 anos. Catindig

não acredita que a família Marcos tenha

roubado dinheiro das Filipinas. “Se há

um caso, eles deveriam estar na cadeia

agora. Eles não estão na prisão. Por que

estão livres, se são corruptos?”


A família enfrentou várias denúncias. A

mãe de Marcos Jr., Imelda, famosa por sua

coleção de 3 mil pares de sapatos, apela de

uma condenação criminal de 2018 por se-

te acusações de corrupção.


John Agbayani, presidente da Comis-

são Presidencial de Bom Governo, criada

para investigar e recuperar os fundos da

família Marcos, disse à Reuters que ha-

via recuperado cerca de 5 bilhões de dó-

lares (em torno de 25 bilhões de reais) e

que outros 2,4 bilhões estavam presos em

litígios. Mais dinheiro continua sumido.


Apesar dessas evidências, os apoiadores

não estão convencidos. “A família Marcos

era rica antes de entrar na política”, dis-

se Catherine Dayao, estudante de 22 anos

que assistia ao show em Bulacan. Marcos

foi advogado de uma família real, disse.

Foi seu irmão, um professor de história,

quem lhe contou. “Vejo nele as qualida-

des de meu pai”, disse Dayao. “Bongbong

trará de volta a disciplina aos filipinos.”


Segundo analistas, grande número de

eleitores mais jovens nas Filipinas não se

lembra da lei marcial. “Há exposição à de-

sinformação mesmo em idades muito jo-

vens”, afirma Mendoza. “Eles parecem ter

plantado as sementes para o sucesso futu-

ro.” Garantir que haja informações factu-

almente precisas sobre a era Marcos deve

se tornar cada vez mais crucial mesmo pa-

ra futuras eleições, acrescenta.

Névoa. A revolução que derrubou

a família Marcos do poder resta

na lembrança de poucos filipinos.

Muitos acreditam que a dinastia

trouxe prosperidade ao país


Os filipinos estão no topo das pesqui-

sas globais de tempo gasto nas redes so-

ciais, o que aumenta a vulnerabilidade do

país à desinformação. As plataformas de

rede social foram manipuladas pelo presi-

dente Duterte enquanto fazia campanha

para as eleições de 2016 e usadas como ar-

ma para calar as críticas ao seu governo.

Um funcionário do Facebook descreveu o

país como “paciente zero” em uma crise

de notícias falsas que cresceu para amea-

çar democracias em todo o mundo.


Pesquisadores dizem, no entanto, que

o que aconteceu nas eleições é muito mais

organizado e insidioso do que as fazendas

de trolls de Duterte. Em 2016, as Filipi-

nas experimentavam apenas a infância

das campanhas de desinformação, disse

Gaw. “Seis anos depois, vemos que há to-

da uma cadeia de oferta que realiza esse

trabalho para os Marcos.” Se uma crítica

a Marcos Jr. for divulgada na mídia, uma

contranarrativa é rapidamente fornecida

por uma rede de influenciadores online,

disse Gaw, que descreve o sistema como

muito mais industrializado.


Provar que essas contas são financia-

das pela família Marcos ou determinar o

tamanho do negócio de desinformação é

um desafio. Mas está claro que espalhar

desinformação é um trabalho fácil e com-

pensa, acrescenta a especialista. “É tão

lucrativo que, mesmo que você não acre-

dite no Marcos Jr., você o promoveria.”

O presidente eleito negou a existência

de qualquer campanha de desinformação

organizada. Em janeiro, o Twitter sus-

pendeu, porém, centenas de contas que

promoviam sua campanha por violar su-

as regras sobre spams e manipulação. 


Pesquisadores nas Filipinas há muito

acusam as empresas de rede social de não

levarem a sério a desinformação online e

permitirem que suas plataformas sejam

exploradas. Embora os filipinos estejam

entre os usuários mais dedicados no mun-

do, as plataformas têm políticas de mode-

ração projetadas com uma perspectiva oci-

dental, priorizando áreas como conteúdo

de alt-right (direita alternativa), disse Gaw.

“Nas Filipinas não há uma versão alt-right

das coisas. São apenas diferentes famílias

políticas a lutar pelo poder.”


O Tsek.ph não tem um acordo especial

com plataformas para remover conteúdo

falso, embora alguns integrantes sejam

credenciados como checadores de fatos

terceirizados para o Facebook. Das posta-

gens que a coalizão Tsek.ph denuncia, não

sabe quantas são removidas. As histórias

geralmente reaparecem e se movem en-

tre diferentes sites de rede social. Muitas

vezes, as reivindicações circulam há anos

e se enraízam em algumas comunidades

online. Tentar contrariar tais crenças, em

um país onde a mídia foi difamada, amea-

çada e assediada, é uma batalha ingrata.

Ilagan teme que a eleição de Marcos

Jr. cerceie as liberdades e arruíne os es-

forços para recuperar a riqueza ilícita da

família. Também distorcerá ainda mais a

democracia. “Acho que os Marcos plane-

jaram tudo desde que foram expulsos do

palácio presidencial. Eles tiveram todo o

tempo e o dinheiro para elaborar um re-

torno. Como a democracia pode ser ver-

dadeira quando um punhado decide o

destino da maioria?”, indagou. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


CARTA CAPITAL 


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