Filme empilha clichês, confunde cinema com ato de caridade e cai na ladainha do assistencialismo
Guilherme Genestreti
A Academia, quem diria, deve ao tapa de Will Smith alguma coisa. Não fosse o arroubo de troglodita dele, a cerimônia do último Oscar, no domingo, teria de se haver com o vexame de ficar marcada pela vitória do filme "No Ritmo do Coração". Mas uma piada cretina, um impulso de macho ferido e um tapão espalmado acabaram desviando o foco de uma das consagrações mais equivocadas da história do Oscar.
Tudo bem que, em 94 edições de prêmios, os constrangimentos não foram poucos. Mas a toada era promissora desde que, dois anos atrás, "Parasita" fez história no Oscar levando a principal estatueta por um filme que não é nem falado em inglês. No ano passado, a safra não ajudava e, mesmo assim, o fato de "Nomadland" ter sido o grande vencedor não era nada desabonador porque mostrava alguma sintonia com uma América em crise.
Aqui a situação é bem diferente. "No Ritmo do Coração" é daquelas hecatombes que confundem cinema com corrente do bem enviada por tia no WhatsApp, como se cineasta e assistente social fossem a mesma coisa. Pouco importa, portanto, a discussão se podemos ou não considerar o filme uma produção do streaming. O que fica é que a Academia voltou umas 30 casas nesta semana ao optar pelo gesto de caridade.
Na trama do longa de Sian Heder, temos Ruby, papel de Emilia Jones, uma garota ouvinte que é irmã de um rapaz surdo e filha de pais surdos —isto é, uma "Coda", ou "child of deaf adult", na abreviação em inglês, de onde vem o nome original do filme. Está, portanto, estabelecida desde logo a sua posição sui generis e também o fardo, digamos assim, de ter de ser a intérprete do restante da família. A inadequação não para por aí —seus parentes são todos pescadores no litoral de Massachusetts, no nordeste dos Estados Unidos, e a menina é uma adolescente com outros planos.
Eis aí a brecha para o filme se esbaldar naquela torrente de clichês dos chamados "high school movies", ou filmes de colegial. Não demora para a garota ser atazanada no corredores sobre ter cheiro de peixe ou para, no refeitório, ouvir piadas sobre os pais surdos. Nem para ela se engraçar com o garoto mais popular da turma que, como veremos adiante, apesar de gatinho e andar com os valentões, também tem um bom coração. O caco narrativo que os juntará são as aulas de canto, já que os dois são cantores promissores, pelo que o filme nos leva a crer.
As aspirações de Ruby a ser uma cantora vão entrar em choque com o mundo de sua família, que não ouve. E como deixar os pais e o irmão à mercê de um universo cheio de sons para seguir os próprios sonhos? Bem, eis aí o filme, e não muito mais do que isso. Talvez valha acrescentar que os pais fazem a garota passar vergonha na frente dos colegas, como se ser surdo fosse sinônimo de ser tapado.
claro que haverá para a protagonista a figura do mentor, aquele visionário sempre pronto a disparar alguma frase de livro de autoajuda. Aqui, ele vem numa versão ainda mais desagradável —um professor afetado e grosseiro que, não sabemos por que razão, está sempre de mau humor. É ele quem põe a turma de seu coral de alunos, brancos em sua maioria, para se esgoelar e aniquilar clássicos da Motown com tiques dignos de cantor de show de calouros. Pobre Marvin Gaye, é assassinado pela segunda vez com esse filme.
Já os surdos do longa são vítimas num mundo de gente ruim, os que escutam. São chamados de aberrações, sem qualquer cerimônia, pelos malvados ao redor só porque não ouvem. A única cena que tenta entrar no universo deles é copiada na cara dura do francês "A Família Bélier", que inspirou esse remake e que já não era lá grande coisa. Pois é, tem isso também —o vencedor do Oscar não é nem mesmo um filme original.
Se o que está em jogo é levar o espectador para o mundo daqueles que não escutam, "O Som do Silêncio" já havia feito muito mais, no ano passado. Esse, sim, conseguia manejar cinematograficamente —e até num âmbito mais, digamos, filosófico— o que é a cacofonia do entorno e o que significa estar privado dela.
Voltando à noite de domingo, houve quem comemorasse o caráter simbólico de um homem surdo, no caso Troy Kotsur, vencer o Oscar de ator coadjuvante e discursar em sinais. Bom, pode ser um marco para os surdos e uma vitória para essa comunidade. Mas mais de 40 anos atrás, ao levar a estatueta de atriz por "Amargo Regresso" —esse, sim, um filme que perpassa o tema da deficiência física sem qualquer pieguice—, Jane Fonda já havia agradecido usando a língua de sinais.
A estatueta para Kotsur, aliás, foi de uma condescendência desconcertante. O personagem passa mais da metade do filme disparando coisas chulas e não muito mais do que isso. Através dele, uma figura que pouco vai além do alívio cômico, o público ouvinte descobre como se diz "cuzão", "traçar", "foder" e outras vulgaridades na língua americana de sinais. Sua cena final, vá lá, tem algo próximo do tocante, mas não é exatamente um monumento da atuação.
Houve ainda quem escrevesse que a vitória de um "feel good movie", isto é, um filme para elevar os espíritos, caía como um bálsamo depois de um biênio de pandemia e sob os horrores de uma guerra em curso. Bem, "feel good" por "feel good", que se premiasse "Licorice Pizza", então, que ao menos tem consistência cinematográfica e faria justiça ao talento de Paul Thomas Anderson, ainda não reconhecido pela Academia.
Mas, ao escolher "No Ritmo do Coração", a entidade preferiu trocar o cinema pelo assistencialismo. Caiu, mais uma vez, naquela ladainha do "somos todos iguais apesar das diferenças, vamos então nos dar as mãos" ou do "basta querer para conseguir", enfim, aquela praga que assola o mundo dos filmes e também certa vertente de jornalismo, tarada por histórias de superação de gente sofrida.
FOLHA
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