Outra batalha: Arthur, de 5 anos, e Agatha Arnaus, filho e viúva de Anderson: "Hoje meu foco é um só: a recuperação de meu filho" Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Vera Araújo
Mil quatrocentos e sessenta e um dias ou quatro anos. A forma de contar o tempo não importa. Amanhã, as famílias da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, assassinados em 14 de março de 2018, vão cobrar mais uma vez das autoridades a solução do crime que chocou o país. E, numa nova tentativa de responder à pergunta “Quem mandou matar Marielle e Anderson?”, a força-tarefa criada pelo Ministério Público do Rio (MPRJ) decidiu dar um passo atrás e revisitar os dados levantados até agora em busca de detalhes desapercebidos que possam ter passado no labirinto da investigação.
A compra de uma nova versão do programa do equipamento israelense Cellebrite, que extrai e recupera dados deletados de celulares, é um dos caminhos para elucidar o caso. O coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPRJ, que também chefia a força-tarefa do Caso Marielle e Anderson, Bruno Gangoni, ressaltou que o avanço da investigação depende dessa reanálise de provas, uma vez que, no primeiro ano do caso, houve muita pressão para se resolver o duplo homicídio. Não à toa, em março de 2019, foram presos o sargento reformado da PM Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio de Queiroz, acusados de serem os executores. Para Gangoni, com mais promotores debruçados sobre o caso, atualmente são oito, além de mais analistas, aumentaram as chances de encontrar alguma nova pista:
— Estamos dedicados, escutando áudios e vendo imagens. Tem muito material que ainda não foi analisado. Recebemos imagens novas da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), a que nunca tivemos acesso antes. A prova é praticamente digital nesse homicídio, e as empresas de tecnologia vão se aperfeiçoando. Por isso, vamos passar os telefones do Lessa no novo programa do Cellebrite, para extrair dados que não conseguimos antes — explicou o promotor.
Dois nomes
O Gaeco recebeu da Polícia Civil 1.300 imagens novas na última terça-feira, a poucos dias de o crime completar quatro anos. Questionado sobre a demora na entrega desse material, Gangoni disse que é preciso ver antes se há algo relevante nos dados. Já a Polícia Civil respondeu que não comentaria provas sob sigilo.
Segundo o promotor, as linhas de investigação sobre o mandante da morte de Marielle estão focadas em dois nomes: o do ex-vereador Cristiano Girão, que cumpriu pena por participação em milícia, e o do conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Domingos Brazão. O primeiro é suspeito de contratar Lessa para executar um rival nos negócios da milícia na comunidade Gardênia Azul, na Zona Oeste do Rio. Girão encontra-se preso por isso. Já Brazão responde a um processo por obstrução da Justiça, no qual é acusado pela Procuradoria-Geral da República de atrapalhar as investigações do duplo homicídio.
O advogado Ubiratan Guedes, que defende Brazão, disse que o conselheiro afastado não responde a inquérito ou ação penal relativos aos homicídios de Marielle e Anderson. A defesa de Girão também afirmou que o ex-vereador não é “formalmente investigado” por esses crimes.
O diretor do Departamento-Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa, Henrique Damasceno, afirmou que a investigação tem o seu tempo, e não arriscou dar um prazo para que a polícia chegue ao mandante do crime:
— Não se trata de dificuldades, mas sim de complexidade. O trabalho vem sendo realizado de forma ininterrupta, a fim de esclarecer todas as circunstâncias do duplo homicídio — explicou o delegado.
Enquanto autoridades tentam justificar a demora, cresce o sentimento entre as famílias das vítimas de que o nome do mandante nunca virá à tona. A viúva de Anderson Gomes, Agatha Arnaus, diz não ter mais esperanças de ver a solução do caso e segue a vida com um só propósito: o tratamento do filho Arthur, de 5 anos. O menino nasceu com onfalocele (os órgãos abdominais se desenvolveram no cordão umbilical) e tem uma doença rara que atrasa seu desenvolvimento). Ele já fez cinco cirurgias. Numa delas, Agatha conta que quase o perdeu.
— São quatro anos, e, praticamente, as únicas provas são as que foram colhidas no primeiro ano. Cada ano que se passa, mais difícil fica. Meu marido estava no lugar errado, na hora errada. Ele não era o alvo de nada. Claro que eu gostaria de ver todos os responsáveis presos, mas hoje o meu foco é um só: a recuperação do meu filho, fazer o que puder por ele. Anderson lutava pela recuperação do Arthur e, de repente, tive que ficar sozinha. Sigo nessa luta — diz a viúva, abraçada ao filho.
Agatha vibra com cada simples aprendizado conquistado pelo filho no Instituto Véras, uma escola para o desenvolvimento de crianças com dificuldades. Além do custo do colégio, há os gastos com o hormônio do crescimento que o menino precisa. Até hoje a família não recebeu qualquer tipo de indenização pela morte de Anderson.
‘A quem interessa?’
Essa falta de resposta também angustia a viúva de Marielle, a vereadora Monica Benicio. Como Agatha, ela reclama da falta de acesso às investigações e conta que, desde que as promotoras Simone Sibílio e Letícia Emile saíram do caso por “interferências externas nas investigações”, todas as reuniões no MPRJ e na Polícia Civil foram convocadas pelas famílias e pelo Instituto Marielle Franco. Este último, dirigido pela irmã da vítima, Anielle Franco, que tem programado uma série de encontros com pessoas ligadas à investigação para cobrar providências.
— O chefe do Ministério Público, Luciano Mattos, o secretário da Polícia Civil, Allan Turnowski, e todas as autoridades de segurança devem uma resposta ao país. Quem vai acreditar nas instituições depois disso? Ninguém. As perguntas que ficam são: a quem interessa o não esclarecimento desse caso? Por que não se chegou a uma solução após quatro anos? Espero, do fundo do meu coração, não ter que perguntar isso novamente daqui a um ano — disse Monica.
Anielle também questiona a troca de cinco delegados em quatro anos:
— A gente segue na esperança de dias melhores e respostas, mesmo com tantas trocas dentro da investigação.
Sobrevivente da emboscada que matou Marielle e Anderson, a então assessora da parlamentar Fernanda Chaves ainda leva uma vida cercada de segurança, por não saber quem encomendou o crime:
— São quatro anos de impunidade que corroem a democracia brasileira, mas que também interferem na minha vida e na vida da minha família. Afinal, se você não sabe de onde veio, você não sabe do que se proteger.
Para manter o legado de Marielle, a artista e muralista Rafa Mon lançou uma gravura com a imagem de Marielle. Parte do lucro (20%) da venda será revertida para o Pré-Vestibular Comunitário Marielle Franco, no Morro da Providência, na Gamboa, que atende a cerca de 300 alunos.
Entraves às investigações
Testemunha falsa
Em maio de 2018, três delegados da Polícia Federal apresentaram à Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) o policial militar Rodrigo Ferreira, o Ferreirinha, como a testemunha-chave das mortes da vereadora e de seu motorista. O informante apontou o miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, e o então vereador Marcello Siciliano (PHS) como autor e mandante do crime. Embora Curicica estivesse preso na época dos homicídios, a Polícia Civil seguiu essa linha até outubro daquele ano. A Polícia Federal instaurou um inquérito para apurar a obstrução, que ficou conhecido como “a investigação da investigação”, e constatou tratar-se de uma mentira. Ferreirinha queria, segundo a polícia, se vingar de Curicica e dominar as favelas controladas por ele, seu ex-patrão.
Federalização do caso
A partir do relatório da Polícia Federal, a procuradora-geral da República na época, Raquel Dodge, disse ter visto indícios de que Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio (TCE), seria o “autor intelectual” do crime. Por isso, antes de deixar o cargo em 2019, ela pediu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a federalização da investigação, alegando inércia da polícia do Rio na condução do caso. O processo tumultuou as investigações, mas, após a coordenadora do Gaeco na época, Simone Sibílio, sustentar que o crime estava sendo investigado com rigor, o STJ decidiu que o processo continuaria na esfera estadual.
Armas no mar
Dois dias depois da prisão de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, em 12 de março de 2019, a DHC e o MPRJ descobriram que o primeiro, com a ajuda de cúmplices, havia descartado as armas no mar da Barra. Uma equipe da Marinha do Brasil usou um sonar para localizar o material no fundo do mar. No entanto, devido à profundidade, não foi possível recuperá-lo.
Delação premiada
Após a morte pela polícia da Bahia do ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) Adriano da Nóbrega, chefe de um grupo de matadores de aluguel, a viúva dele, Júlia Lotufo, disse ter informações sobre a morte de Marielle. Segundo ela, Adriano lhe contou detalhes do assassinato, mas que ela só falaria mediante um acordo de delação premiada, no qual a Justiça a livraria das acusações de organização criminosa e lavagem de dinheiro. Ela era suspeita de ter mantido os negócios ilegais do marido. O surgimento de Júlia Lotufo provocou a saída das promotoras da força-tarefa do Caso Marielle e Anderson, Simone Sibilio e Letícia Emile, que atuaram na prisão de Lessa e Queiroz e na segunda etapa das investigações. No início deste ano, o Gaeco recusou a delação da viúva, por entender que havia inconsistências nas informações que ela passara.
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