March 7, 2022

Diante do caos e do medo, vida dos ucranianos mudou para sempre em uma semana

 


LVIV, Ucrânia — Vera Shabatura, de 74 anos, estava otimista na tarde do dia 22 de fevereiro, antevéspera da invasão russa à Ucrânia. Mesmo sob o frio de -1°C e o céu cor de chumbo que cobria a bela cidade de Kharkiv, ela e uma amiga passeavam descontraídas pelo Parque Máximo Gorki.

— Eu gosto de repetir que sou otimista, não acho que haverá guerra. Tudo isso vai se resolver, somos povos irmãos, eu acho completamente impensável uma guerra entre Ucrânia e Rússia — contava ela, em russo.

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Na manhã de quinta-feira vieram as primeiras bombas, ainda distantes das belas alamedas, dos prédios de arquitetura construtivista erguidos no auge do stalinismo, das igrejas de domo dourado. Mas logo, elas foram chegando mais perto. Em pouco tempo, Kharkiv estava revivendo os dias mais sombrios da invasão alemã na Segunda Guerra Mundial no outono de 1941.

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As bombas agora caíam por todo canto: na praça central da cidade, orgulho dos moradores, nos teatros, nas ruas. Fragmentos de uma explosão atingiram até a Igreja das Santas Mulheres Portadoras de Mirra, a frequentada por Vera. Nenhuma cidade seria tão atacada pela artilharia e pelos aviões russos nessa primeira semana de guerra quanto Kharkiv.

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Professora aposentada, Vera estava otimista naqueles dias que antecediam a guerra porque, ainda que de forma velada, dizia-se admiradora de Vladimir Putin. Como a maior parte da população no Leste da Ucrânia, Vera não fala ucraniano. Fala apenas russo. Vê com desconfiança os ucranianos do Oeste, principalmente da região de Lviv, que se aliaram aos nazistas em 1941 para lutar contra o Exército Vermelho junto com a Alemanha.

Vera Shabatura Foto: Yan Boechat
Vera Shabatura Foto: Yan Boechat

 

Vera, como tantos de sua idade, tem saudades dos tempos em que Ucrânia e Rússia faziam parte de uma só nação.

— Você sabe que meu aniversário é no mesmo dia do de Lenin? E vou lhe contar, eu tenho características parecidas com as dele. Sou muita ativa e comunicativa — dizia ela poucas horas antes de tudo mudar na Ucrânia, para sempre.

Eu ainda guardo o telefone de Vera, mas desde que a guerra começou, não consegui mais contato com ela. Como todos em Kharkiv agora, ela fugiu, está refugiada em algum abrigo antiaéreo ou perdeu a vida em um dos ataques.

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Vera Shabatura com certeza deve ter demorado a crer que os estrondos que ouviu na manhã de quinta-feira eram mesmo bombas a cair. Quase todo mundo na Ucrânia demorou. Apesar dos avisos, das imensas colunas de tanques e blindados que se aproximavam das fronteiras na Rússia e na Bielorrússia, no discurso belicoso de Putin dias antes, ninguém acreditava de verdade que a Rússia faria uma invasão total.

A aposta de todos era de que o presidente russo poderia apoiar os grupos separatistas das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk, ampliar os ganhos territoriais na região do Donbass. Os mais pessimistas apostavam que Putin tentaria tomar o porto de Mariupol, no Mar de Azov, e estabelecer uma ligação terra entre a Crimeia e a Rússia.

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Kiev, a cidade que de certa forma deu origem à Rússia há quase mil anos, não havia sequer se preparado para uma invasão. Nos primeiros dias de combate, as ruas da cidade não tinham qualquer tipo de proteção. Não havia barricadas, não havia pontos de controle, não havia sequer sacos de areia protegendo os prédios militares e oficiais. Não havia nada além da movimentação de civis. Gente que decidiu criar barreiras em seus bairros com pneus velhos, tijolos, pedaços de madeira.

Na região perto do zoológico da cidade, vi homens cavando um jardim e enchendo sacolas de supermercado com terra para reforçar as barricadas. No centro de Kiev, integrantes de grupos nacionalistas se uniam na fabricação de armamentos improvisados, como coquetéis-molotovs, para combater os russos.

Romantismo e fantasias

Nesses primeiros dias parecia ainda haver muito romantismo, pouco medo, muitas fantasias sobre o que de fato é a guerra. Kiev convive com essa relação distante e irreal de um conflito armado há bastante tempo. Desde que os grupos separatistas fomentados pela Rússia declararam independência na região do Donbass, em 2014, a Ucrânia vive uma guerra civil de fato.

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Nessa quase década de batalhas, quase 15 mil pessoas já perderam a vida. Cidades, vilas, vidas foram completamente destruídas no Leste. Mas em Kiev, não. Ao longo destes oito anos, a capital nunca experimentou a violência de fato para além das pouco mais de 100 mortes registradas nos protestos de Euromaidan, que dariam início a toda a crise que se agrava agora.

No sábado anterior à invasão, Kiev estava em festa, mesmo com o aumento da violência que vinha sendo registrado na extensa linha de combate entre as repúblicas separatistas e o território controlado pela Ucrânia. Nas praças, os jovens bebiam vodca barata com refrigerante e cantavam rap. Nos bares, a música eletrônica embalava a paquera regada a drinks exóticos. Na Avenida Khreshchatyk, a mais importante e badalada de Kiev, as mulheres desfilavam sem medo com sobretudos de pele de raposa, saias e botas de couro.

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Mas então as bombas chegaram mais perto. E os boatos de que as tropas russas estavam dentro da capital trouxeram o pânico. Milhares de pessoas tentavam fugir da capital na primeira leva de refugiados que varreu o país e já levou mais de 1,2 milhão de pessoas a fugirem da Ucrânia.

Filas de dezenas de quilômetros se formaram nas rodovias. Estações de trem lotadas. A gasolina começou a faltar. O comércio fechou. E relatos de falta de alimentos trouxeram à memória os cercos históricos e cruéis da Segunda Guerra. Ao mesmo tempo, caminhões carregados com rifles AK-47 começaram a chegar às praças públicas. Qualquer homem maior de idade podia pegar seu rifle para compor as defesas civis.

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O grande êxodo seguia em direção a Oeste, em direção à União Europeia, para cada vez mais longe das tropas russas. Lviv, a grande cidade ucraniana a Oeste, que nunca teve laços culturais e étnicos com a Rússia, tornou-se o ponto de saída principal para os refugiados. Na estação, milhares de pessoas se amontoam para tentar um lugar nos trens que partem em direção à Polônia. Mulheres, crianças, idosos, cachorros, gatos, todos juntos, todos cansados, todos amedrontados, tentando uma vaga para fugir da guerra.

O curioso menino ucraniano Zed, na fronteira entre a Polônia e a Ucrânia Foto: Yan Boechat
O curioso menino ucraniano Zed, na fronteira entre a Polônia e a Ucrânia Foto: Yan Boechat

 

No posto de fronteira entre a Ucrânia e a Polônia, outras milhares de pessoas aguardam em filas que podem durar horas para cruzar a pé. Lá, também, são crianças e mulheres a grande maioria em fuga. Os homens entre 18 e 60 anos estão impedidos de deixar o país.

— Estamos há duas semanas viajando, não aguentamos mais. Mas agora estamos perto, vamos ficar em paz — contava a mãe de Zed, um jovem garotinho que recém aprendera algumas palavras em inglês:

— What’s your name? (Qual o seu nome?) — perguntava ele a todos os jornalistas com câmeras penduradas no pescoço.

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No sábado, uma nova leva de refugiados começou a chegar a Lviv. Gente que tomou a decisão de partir mesmo com as batalhas ainda distantes por causa dos rumores de que um novo acidente nuclear ocorrera na maior usina da Europa, em Zaporíjia, no Leste do país, entre Odessa e Mariupol.

— Esse é só o começo, tivemos só a primeira onda, outras virão, muita gente está se preparando para partir — contava Oleg, um senhor de 62 anos que acompanhava a família em direção à Eslováquia. — Viemos de uma cidade perto de Dnipro, decidimos não esperar pelas bombas, vamos para a casa do meu irmão.

Oleg estava em volta de um barril de aço onde fogueiras haviam sido acesas para aquecer aqueles que chegavam a pé até à estação.

Uma neve fina caía esporadicamente. Fazia frio.

O GLOBO


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