Mauricio Stycer
A cobertura de guerras é uma especialidade do jornalismo restrita a
poucos profissionais e cercada de lendas. "É um universo pequeno. Quando
você chega aqui, você encontra os amigos. Tem muita gente conhecida",
diz Yan Boechat, enviado especial da Band à Ucrânia. "O objetivo de todo
mundo que está aqui não é contar o que está acontecendo nos gabinetes,
mas o que acontece na vida real, como impacta a vida das pessoas".
A primeira vez que Boechat acompanhou um conflito armado foi em 2003.
"Estava no Irã, tentei entrar no Iraque, não consegui. E fui para o
Afeganistão". Desde então, já cobriu guerras ou conflitos que colocam
vidas e direitos humanos em risco na Tunísia, Egito, Congo, Síria e
Ucrânia, entre outros lugares. Entre 2016 e 2017, morou no Iraque.
Neste domingo (13), Yan Boechat fez exatamente o mesmo percurso que o documentarista americano Brent Renaud, morto a tiros
nas proximidades de Irpin. "É muito triste porque ele morreu de forma
muita estúpida. Ele não estava numa situação de combate, ou na
proximidade de um, se arriscando a fazer imagens numa área muito
perigosa. Não. Ele morreu fazendo o que eu fiz hoje duas vezes e fiz
várias vezes nos últimos dias e dezenas de jornalistas fizeram".
Questionado sobre como lida com o medo, Boechat ensinou: "Tem que
manter a tranquilidade. E aceitar a ideia que pode dar errado. Se você
não aceitar a ideia que pode dar errado, que você pode morrer, aí é que
pode bater o desespero".
Aos 47 anos, pai de um adolescente de 15 anos e de uma menina de 8, Boechat conversou com o UOL por telefone já na madrugada de segunda-feira em Kiev.
Esta é a quinta vez que você viaja para a Ucrânia. Por quê?
Yan Boechat:
É triste, mas é aqui que está mais clara, desde 2014, a redefinição da
ordem pós-Segunda Guerra Mundial. O movimento que derrubou o presidente
Viktor Yanukovych, em 2014, tem muitas raízes nacionalistas. Em 2018, eu
estava em trincheiras em Donbass, junto com o exército ucraniano, e vi
desenhos de suásticas, símbolos da SS nazista. A reação do Putin,
anexando a Crimeia e incentivando a guerra no Donbass, é um momento de
fricção importante. É uma narrativa idêntica à da Segunda Guerra. Do
outro lado, eles estão falando "vamos lutar contra os fascistas", ou "os
nazistas estão vindo aqui de novo".
Você achava que ia estourar uma guerra?
Achava que era inevitável um conflito militar. Mas não imaginava essa
dimensão. Me pegou totalmente de surpresa. E as pessoas aqui em Kiev
também, e mesmo em outras cidades, ficaram muito surpreendidas. Dois
dias antes da invasão eu estava em Kharkiv, uma cidade russófona,
ninguém acreditava que ia ter uma guerra. Mesmo em Kiev, uma semana
antes, estava todo mundo na rua, bebendo, em festa.
Você viaja sozinho. É repórter, fotógrafo e cinegrafista?
Sou um cara de texto, 20 anos de redação. Vídeo é uma coisa nova para
mim. Sempre fui apaixonado por fotografia. A partir do Iraque, comecei a
fazer vídeo para a Band. Mandei uns vídeos de celular, eles gostaram.
Faço sozinho, sou uma banda de um homem só, mas estou sempre com outros
colegas.
Viajar sozinho não aumenta o risco? Ou, ao contrário, facilita as suas movimentações?
Tudo é mais difícil. É grana, né? A segurança está muito relacionada à quantidade de dinheiro que você tem. Você pega a (fotógrafa)
Lynsey Addario, do "The New York Times", que está aqui. Ela tem
motorista, tradutor, assessor de segurança, que está com eles. Ela não precisa pensar em logística.
E isso, num lugar como esse, consome 80% do seu esforço. Tudo isso vai
impactando na sua condição de segurança. Mas o "New York Times" é meio
fora da curva. Estou aqui com o pessoal do "Los Angeles Times". Eles têm
dinheiro, mas estão meio que em situação parecida. A gente divide
carro. Quando você chega aqui, você encontra os amigos. Tem muita gente
conhecida. E esse universo é pequeno.
O exército dos correspondentes de guerra?
É. Tem cara aqui que eu já encontrei em Gaza (Palestina), em Mossul
(Iraque), na Armênia, no Egito, em um monte de lugar. Não é muita gente
que faz.
O que te leva gostar de fazer isso?
Eu me sinto absolutamente privilegiado de estar aqui, tendo a chance de
fazer esse pequeno rascunho da história. Não acredito que nós
jornalistas vamos fazer com que a Rússia pare de atacar. O objetivo de
todo mundo que está aqui não é contar o que está acontecendo nos
gabinetes, mas o que acontece na vida real, como impacta a vida das
pessoas. Quem está aqui não quer escrever sobre as grandes estratégias
do Putin; isso você pode fazer de Moscou ou de São Paulo, numa boa.
Evito falar com quem tem poder. Quero falar com quem não tem poder.
E como isso te afeta?
Tem duas maneiras de você analisar o conflito. Tem essa aqui, de ver de
perto, que é uma visão micro, que envolve muita paixão, e tem uma visão
macro, que é uma questão geopolítica. O problema é misturar os dois. Não
dá certo. Acabei de ver uma senhora morrer. Isso te impacta e pode te
fazer ter avaliações erradas sobre a questão mais macro. Quero mostrar o
que estou vendo sem entrar em grandes elucubrações.
Não vou perguntar se você tem medo porque é natural que tenha. Como você lida com o medo?
Eu morro de medo. Hoje, por exemplo, estavam caindo muitas bombas em
volta da gente. Nesses momentos, não tem muito o que fazer. Tem que
manter a tranquilidade. E aceitar a ideia que pode dar errado. Se você
não aceitar a ideia que pode dar errado aí é que pode bater o desespero.
Você não aceitar a ideia de que você pode morrer. Você não quer, claro.
Mas, naquele momento, não tem muito o que fazer a não ser ficar
tranquilo. E ter o cuidado de não tomar a decisão errada. Porque é muito
fácil tomar decisões erradas nestes momentos.
É muito triste porque ele morreu de forma muita estúpida. Ele não estava
numa situação de combate, ou na proximidade de um, se arriscando a
fazer imagens numa área muito perigosa. Não. Ele morreu fazendo o que eu
fiz hoje duas vezes e fiz várias vezes nos últimos dias e dezenas de
jornalistas fizeram. Pegar uma carona e ir até o front, que fica a 5
quilômetros de uma ponte destruída. Os jornalistas vão para a beira da
ponte e aguardam a chegada de carros com refugiados, feridos e pegam
carona de volta para a Irpin. Foi o que eu fiz hoje. E foi o que ele fez
hoje. Onde ele foi morto está longe das tropas russas. Não chegou até a
última linha. Foi bem antes.
Pode ter ocorrido algum erro?
Nesses check points intermediários tem muitas milícias. Os ucranianos
armaram todo mundo. Nos primeiros dias, vinha caminhão, eles abriam
caixas de AK-47 e estavam distribuindo para todo mundo. Várias milícias
foram formadas. Eles têm pouca experiência e ficam muito nervosos.
Os jornalistas estão protegidos pelos ucranianos?
Estão, dentro do possível. Guerra é um troço muito caótico e jornalista é
um bicho desgraçado. Não adianta eles botarem muita ordem que a gente
vai querer entrar. A gente está tendo acesso, as credenciais estão
funcionando. O maior problema são os check points controlados por
milícias. Saindo de Kiev, fica um pouco tenso. Quem estava cobrindo a
guerra em Mossul, estava do lado do agressor, então é mais seguro. Como
você agora está do lado do agredido, e tem muita artilharia, tudo é mais
difícil. É um outro tipo de cobertura.
Pretende fazer isso ainda por muito tempo?
Tenho 47 anos. Ainda uns dez anos dá para fazer. Gosto muito. Parece
meio maluco, mas gosto. Tem um monte de velhinho aqui. O James Nachtwey
(74 anos), o fotógrafo mais icônico, está aqui, estava lá comigo ontem
no front. Tem um monte com mais de 60 na batalha.
A experiência ajuda muito.
É um dos poucos lugares que você não vê jornalista tão novo. Você vê muito jornalista velho. É um alento.
A cobertura de guerras é uma especialidade do jornalismo restrita a poucos profissionais e cercada de lendas. "É um universo pequeno. Quando você chega aqui, você encontra os amigos. Tem muita gente conhecida", diz Yan Boechat, enviado especial da Band à Ucrânia. "O objetivo de todo mundo que está aqui não é contar o que está acontecendo nos gabinetes, mas o que acontece na vida real, como impacta a vida das pessoas".
A primeira vez que Boechat acompanhou um conflito armado foi em 2003. "Estava no Irã, tentei entrar no Iraque, não consegui. E fui para o Afeganistão". Desde então, já cobriu guerras ou conflitos que colocam vidas e direitos humanos em risco na Tunísia, Egito, Congo, Síria e Ucrânia, entre outros lugares. Entre 2016 e 2017, morou no Iraque.
Neste domingo (13), Yan Boechat fez exatamente o mesmo percurso que o documentarista americano Brent Renaud, morto a tiros nas proximidades de Irpin. "É muito triste porque ele morreu de forma muita estúpida. Ele não estava numa situação de combate, ou na proximidade de um, se arriscando a fazer imagens numa área muito perigosa. Não. Ele morreu fazendo o que eu fiz hoje duas vezes e fiz várias vezes nos últimos dias e dezenas de jornalistas fizeram".
Questionado sobre como lida com o medo, Boechat ensinou: "Tem que manter a tranquilidade. E aceitar a ideia que pode dar errado. Se você não aceitar a ideia que pode dar errado, que você pode morrer, aí é que pode bater o desespero".
Aos 47 anos, pai de um adolescente de 15 anos e de uma menina de 8, Boechat conversou com o UOL por telefone já na madrugada de segunda-feira em Kiev.
Esta é a quinta vez que você viaja para a Ucrânia. Por quê?
Yan Boechat:
É triste, mas é aqui que está mais clara, desde 2014, a redefinição da
ordem pós-Segunda Guerra Mundial. O movimento que derrubou o presidente
Viktor Yanukovych, em 2014, tem muitas raízes nacionalistas. Em 2018, eu
estava em trincheiras em Donbass, junto com o exército ucraniano, e vi
desenhos de suásticas, símbolos da SS nazista. A reação do Putin,
anexando a Crimeia e incentivando a guerra no Donbass, é um momento de
fricção importante. É uma narrativa idêntica à da Segunda Guerra. Do
outro lado, eles estão falando "vamos lutar contra os fascistas", ou "os
nazistas estão vindo aqui de novo".
Você achava que ia estourar uma guerra?
Achava que era inevitável um conflito militar. Mas não imaginava essa
dimensão. Me pegou totalmente de surpresa. E as pessoas aqui em Kiev
também, e mesmo em outras cidades, ficaram muito surpreendidas. Dois
dias antes da invasão eu estava em Kharkiv, uma cidade russófona,
ninguém acreditava que ia ter uma guerra. Mesmo em Kiev, uma semana
antes, estava todo mundo na rua, bebendo, em festa.
Você viaja sozinho. É repórter, fotógrafo e cinegrafista?
Sou um cara de texto, 20 anos de redação. Vídeo é uma coisa nova para
mim. Sempre fui apaixonado por fotografia. A partir do Iraque, comecei a
fazer vídeo para a Band. Mandei uns vídeos de celular, eles gostaram.
Faço sozinho, sou uma banda de um homem só, mas estou sempre com outros
colegas.
Viajar sozinho não aumenta o risco? Ou, ao contrário, facilita as suas movimentações?
Tudo é mais difícil. É grana, né? A segurança está muito relacionada à quantidade de dinheiro que você tem. Você pega a (fotógrafa)
Lynsey Addario, do "The New York Times", que está aqui. Ela tem
motorista, tradutor, assessor de segurança, que está com eles. Ela não precisa pensar em logística.
E isso, num lugar como esse, consome 80% do seu esforço. Tudo isso vai
impactando na sua condição de segurança. Mas o "New York Times" é meio
fora da curva. Estou aqui com o pessoal do "Los Angeles Times". Eles têm
dinheiro, mas estão meio que em situação parecida. A gente divide
carro. Quando você chega aqui, você encontra os amigos. Tem muita gente
conhecida. E esse universo é pequeno.
O exército dos correspondentes de guerra?
É. Tem cara aqui que eu já encontrei em Gaza (Palestina), em Mossul
(Iraque), na Armênia, no Egito, em um monte de lugar. Não é muita gente
que faz.
O que te leva gostar de fazer isso?
Eu me sinto absolutamente privilegiado de estar aqui, tendo a chance de
fazer esse pequeno rascunho da história. Não acredito que nós
jornalistas vamos fazer com que a Rússia pare de atacar. O objetivo de
todo mundo que está aqui não é contar o que está acontecendo nos
gabinetes, mas o que acontece na vida real, como impacta a vida das
pessoas. Quem está aqui não quer escrever sobre as grandes estratégias
do Putin; isso você pode fazer de Moscou ou de São Paulo, numa boa.
Evito falar com quem tem poder. Quero falar com quem não tem poder.
E como isso te afeta?
Tem duas maneiras de você analisar o conflito. Tem essa aqui, de ver de
perto, que é uma visão micro, que envolve muita paixão, e tem uma visão
macro, que é uma questão geopolítica. O problema é misturar os dois. Não
dá certo. Acabei de ver uma senhora morrer. Isso te impacta e pode te
fazer ter avaliações erradas sobre a questão mais macro. Quero mostrar o
que estou vendo sem entrar em grandes elucubrações.
Não vou perguntar se você tem medo porque é natural que tenha. Como você lida com o medo?
Eu morro de medo. Hoje, por exemplo, estavam caindo muitas bombas em
volta da gente. Nesses momentos, não tem muito o que fazer. Tem que
manter a tranquilidade. E aceitar a ideia que pode dar errado. Se você
não aceitar a ideia que pode dar errado aí é que pode bater o desespero.
Você não aceitar a ideia de que você pode morrer. Você não quer, claro.
Mas, naquele momento, não tem muito o que fazer a não ser ficar
tranquilo. E ter o cuidado de não tomar a decisão errada. Porque é muito
fácil tomar decisões erradas nestes momentos.
É muito triste porque ele morreu de forma muita estúpida. Ele não estava numa situação de combate, ou na proximidade de um, se arriscando a fazer imagens numa área muito perigosa. Não. Ele morreu fazendo o que eu fiz hoje duas vezes e fiz várias vezes nos últimos dias e dezenas de jornalistas fizeram. Pegar uma carona e ir até o front, que fica a 5 quilômetros de uma ponte destruída. Os jornalistas vão para a beira da ponte e aguardam a chegada de carros com refugiados, feridos e pegam carona de volta para a Irpin. Foi o que eu fiz hoje. E foi o que ele fez hoje. Onde ele foi morto está longe das tropas russas. Não chegou até a última linha. Foi bem antes.
Pode ter ocorrido algum erro?
Nesses check points intermediários tem muitas milícias. Os ucranianos
armaram todo mundo. Nos primeiros dias, vinha caminhão, eles abriam
caixas de AK-47 e estavam distribuindo para todo mundo. Várias milícias
foram formadas. Eles têm pouca experiência e ficam muito nervosos.
Os jornalistas estão protegidos pelos ucranianos?
Estão, dentro do possível. Guerra é um troço muito caótico e jornalista é
um bicho desgraçado. Não adianta eles botarem muita ordem que a gente
vai querer entrar. A gente está tendo acesso, as credenciais estão
funcionando. O maior problema são os check points controlados por
milícias. Saindo de Kiev, fica um pouco tenso. Quem estava cobrindo a
guerra em Mossul, estava do lado do agressor, então é mais seguro. Como
você agora está do lado do agredido, e tem muita artilharia, tudo é mais
difícil. É um outro tipo de cobertura.
Pretende fazer isso ainda por muito tempo?
Tenho 47 anos. Ainda uns dez anos dá para fazer. Gosto muito. Parece
meio maluco, mas gosto. Tem um monte de velhinho aqui. O James Nachtwey
(74 anos), o fotógrafo mais icônico, está aqui, estava lá comigo ontem
no front. Tem um monte com mais de 60 na batalha.
A experiência ajuda muito.
É um dos poucos lugares que você não vê jornalista tão novo. Você vê muito jornalista velho. É um alento.
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