November 14, 2020

O navio e o iceberg

 


POR RENÉ RUSCHEL

15 dias do primeiro turno

das eleições municipais, di-

rigentes e parte da militân-

cia do PT não se entendem

sobre o comportamento do

partido, especialmente em São Paulo. Nos

grupos de WhatsApp, o apoio aos candi-

datos deu lugar ao bate-boca e à guerra de

versões entre aqueles que defendem uma

adesão à campanha de Guilherme Boulos,

do PSOL, terceiro colocado nas pesquisas,

com 14%, e quem considera traição o aban-

dono precoce de Jilmar Tatto, represen-

tante da legenda na disputa na capital pau-

lista, 4% nas sondagens de intenções de

voto. Se as redes sociais refletirem a mé-

dia dos petistas, há profunda divisão in-

terna. “Lula perde a eleição, mas não per-

de o comando do PT”, dispara uma das

mensagens. “Tatto é mais um acerto da

cúpula. Ou muda o PT ou perdemos to-

dos”, alerta outro apoiador.

 

O acirramento dos ânimos aumentou

com a publicação de dois recados do teó-

logo Leonardo Boff ao ex-presidente Lu-

la, também pelas redes sociais. Em sua

página no Twitter, Boff escreveu: “Me

desculpe amigo Lula. Penso que em SP,

segundo as pesquisas, o PT tem pouca

chance. Seria um gesto político genero-

so e amigo dos pobres e sem-teto apoiar

a chapa Boulos/Erundina. Trata-se de

vencer o bolsonarismo e salvar a digni-

dade política do Brasil. Faça e milhões o

apoiarão”. No mesmo dia, o teólogo rei-

terou sua posição em nova postagem:

“Caso o PT e Lula, em SP, apoiarem Bou-

los/Erundina, ganharão respeitabilida-

de. Mostrariam de fato que amam mais

as causas do povo do que do próprio par-

tido. O partido é parte, o povo é o todo.

Deve-se buscar sempre o que é melhor

para o todo. Boulos/Erundina represen-

tam o melhor”.

 

As mensagens públicas de Boff são

emblemáticas. O teólogo preferiu mani-

festar-se pelas redes sociais quando po-

deria telefonar ao amigo e defender em

reservado o apoio à dupla psolista. “Não

falei com o Lula, nem telefonei, nem tive

contato nenhum com alguém do PT ou

da direção”, afirmou Boff a Carta­Capital.

 

A opção de se expor publicamente, jus-

tifica, baseia-se no seu convencimento

de que, pelas pesquisas, Tatto tem pou-

cas possibilidades de chegar ao segundo

turno e não se pode perder a oportuni-

dade de transformar São Paulo em cen-

tro de resistência simultâneo aos tucanos

Bruno Covas e João Doria e ao bolsona-

rismo. “Seria uma pena alguém do cam-

po progressista não avançar na disputa.

Boulos e Erundina têm essa possibilidade

aumentada em muito, caso o PT apoie a

chapa.” Lula não respondeu diretamente

a Boff, nem a outros amigos e companhei-

ros que defendem a mesma posição. Em

recente entrevista publicada no jornal

Diá rio do Grande ABC, o ex-presidente

foi, no entanto, taxativo: “Não é possível

alguém achar que Jilmar pode desistir. Se

Boulos for para o segundo e o Jilmar não

for, acho que o PT não tem nenhuma dú-

vida de apoiar o Boulos”.

 


Por outro lado, Valter Pomar, dirigen-

te petista, inflamou a militância ao pu-

blicar um texto em resposta ao teólogo

intitulado “Leonardo Boff, o ‘TODO’ e o

Tatto”. Nele, Pomar justifica sua réplica

pelo fato de o ex-padre ter se manifesta-

do sobre uma questão interna do PT sem

ser filiado ao partido. “Se tivesse se limi-

tado a dizer que vota em Boulos/Erundi-

na, eu ficaria na minha”, afirmou. Pomar

criticou ainda o pedido de desculpas di-

rigido apenas a Lula, uma vez que a deci-

são da candidatura teria sido tomada pela

maioria dos delegados da legenda em São

Paulo e confirmada pelo Diretório Nacio-

nal. “Portanto, são a estas pessoas e ins-

tâncias que deveria se pedir algo, mesmo

que fossem desculpas.” Quanto ao pedi-

do “por um gesto político generoso e ami-

go dos pobres e sem-teto”, afirmou que

“de boas intenções, o inferno está cheio”.

Boff, no dia seguinte, em outra publi-

cação no Twitter, escreveu que suas su-

gestões de apoio do PT a Boulos e Erun-

dina “provocaram uma bela discussão de-

mocrática”. Mas voltou a tratar do assun-

to quando levantou a questão: “Quem das

esquerdas tem real chance de ir para o 2º

turno e derrotar o status quo do bolsona-

rismo? Temos de superar o partidarismo”.

 

Quanto ao texto de Pomar, Boff classificou

como um “arrazoado bem partidista” no

qual, em nenhum momento, aparece a pa-

lavra povo. “Falar em PT e não falar de po-

vo é não falar do PT”, rebateu.

Por trás desse embate existem diver-

gências que não serão superadas por con-

senso ou acordos político-partidários. O

PSOL surgiu em 2004 de uma costela do

PT, o qual acusava de traição ideológica.

 

Desde então, as duas legendas se engalfi-

nham em uma luta renhida por espaços

políticos. Vencer as eleições em São Pau-

lo, a cidade mais importante da Améri-

ca Latina, e derrotar o “criador” seria um

feito importante para os psolistas, em-

bora Boulos, desde a sua filiação, tenha

atuado para reaproximar as legendas.

No fundo, o PSOL reproduz os mesmos

cacoetes do PT, para o bem e para o mal.

 

Quais? Um deles é a dificuldade de

abrir mão do protagonismo em eventuais

alianças. No Rio de Janeiro, o deputado

Marcelo Freixo desistiu de disputar a

eleição por não conseguir montar uma

frente ampla. Alguns dos partidos que se

recusaram a participar do arranjo recla-

mam que Freixo e o PSOL jamais aven-

taram a possibilidade de não ocupar a

cabeça de chapa. A insistência, imposi-

ção, segundo os críticos, teria minado as

chances de acordo. Resultado: neste mo-

mento, Benedita da Silva, do PT, e Martha

Rocha, do PDT, disputam com o prefei-

to Marcelo Crivella uma vaga no segun-

do turno contra Eduardo Paes, do DEM.

 

A canibalização das candidaturas pro-

gressistas, como em São Paulo, pode, no

entanto, levar a um fim melancólico: um

abraço de afogados em 15 de novembro,

data do primeiro turno. Nem Martha,

nem Benedita. Renata Souza, que assu-

miu a candidatura do PSOL no Rio após

a desistência de Freixo, aparece com 5%.

O PT, por sua vez, segue a orientação

de Lula e não pretende desistir de Tatto­,

ao menos oficialmente. Gleisi Hoffmann,

presidente nacional do partido, lembrou

aos dissidentes das possibilidades de

punição em caso de traição. “A filiação

petista carrega consigo algumas respon-

sabilidades, entre elas a de lealdade aos

seus candidatos. O estatuto prevê medi-

das caso isso não aconteça.” Cabem cen-

sura, suspensão ou até expulsão.

 


O que explicaria a estratégia do PT?

Segundo o sociólogo Rudá Ricci, pro-

fessor na Pontifícia Universidade Cató-

lica de Minas Gerais, há vários fatores. O

primeiro, o medo de perder a hegemonia

do campo progressista, em especial no

Sudeste, o que confinaria a legenda ao

Nordeste. O segundo, a dificuldade dos

atuais­ dirigentes de esboçar um proje-

to estratégico para o futuro. “São dire-

ções defensivas, reativas, que não apre-

sentaram uma pauta que domine o cená-

rio nacional.” O terceiro, a falta de com-

preensão a respeito da nova configura-

ção social. “A realidade dos nossos dias

é muito diferente daquela que embalou

a criação da legenda.” Finalmente, diz

Ricci, o PT deu uma guinada muito forte

ao centro e abandonou seus vínculos or-

gânicos com os movimentos sociais e as

lutas por direitos mais amplos. Tornou-

-se uma espécie de “Partido da Ordem”,

com enormes dificuldades para pensar

além do padrão político institucional.

 

 “Chamo essa situação de ‘parlamenta-

rização’, ou seja, o estilo acostumado a

arroubos na tribuna e depois acordos e

‘republicanismos’ nos bastidores.”

Sérgio Braga, professor de Ciência Po-

lítica na Universidade Federal do Paraná,

acredita que uma derrota em São Paulo,

ainda mais se, no fim das contas, “Tatto

for ‘cristianizado’”, pode comprometer o

projeto petista de encabeçar uma chapa

presidencial em 2022. O partido, avalia,

burocratizou-se excessivamente ao che-

gar ao poder, adotou uma postura ufanis-

ta e agora paga um alto preço.]




Em tempo: uma reunião no Instituto

Lula selou a reaproximação entre o ex-

-presidente e Ciro Gomes. O acordo de

paz não deve produzir efeitos nas elei-

ções municipais, mas retira de cena um

dos maiores obstáculos a uma ampla

aliança para enfrentar o bolsonarismo

daqui para a frente. A ver. •

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