MILTON HATOUM
Nunca houve paz por aqui. Há muito tempo a cidade é barulhenta e violenta, mas neste e em outros bairros havia um pouco de sossego. Falo da década de 1950, quando muitos de vocês nem sequer tinham nascido, e eu, jovem, pedalava até Osasco, e voltava ileso, sem ser xingado pelos motoristas.
Às vezes nem amanhece no meu bairro e no Brasil, parece que a madrugada corre sem transição rumo à noite, como se a gente vivesse numa escuridão eterna.
Ou amanhece com uma cena estranha, persistente e vil, e pouco se faz para atenuar o caos, o barulho, a ameaça. Ainda escuto a algaravia de um monstro e seu trio de filhotes, réplicas falsas de três terríveis tigres. Pensando bem, o pai e sua prole de machos formam uma família de bestas grotescas, amarradas ao tronco de uma goiabeira, iluminada pela última lâmpada da rua. Os quatro estão por ali há mais de um ano.
Nos primeiros dias, os bons samaritanos do bairro jogavam-lhes pedaços de carne ensebada, que eles logo engoliam.
Foi fácil perceber que essa família animalesca desconhece a arte de farejar e reconhecer a comida, antes de mastigá-la e ingeri-la; desconhece o justo agradecimento às mãos que lhes ofertaram o alimento; desconhecem a honra, a fidelidade, a sabedoria: atributos de cães amestrados, educados sem soberba e brutalidade; são atributos também de vira-latas, tão nobres quando saem do submundo e são acolhidos num lar piedoso.
Alguma coisa estranha aconteceu na vida dessa besta e de seus três rebentos belicosos. Aos quase 90 anos, uma pessoa já passou por quase tudo na vida. Não poucas vezes me deparei com cães ferozes e perigosos, e deles me defendi com uma coragem altaneira. Em duas dessas agressões gratuitas fui escudado por uma pilha de livros que carregava ao sair de saudosas livrarias: a Mestre Jou e a Duas Cidades. Os livros me salvaram até naqueles embates.
Mas esses monstros, mesmo acorrentados, apavoram e ameaçam muita gente do bairro. No entanto, muitos os idolatram, dia e noite. E são esses idólatras que agora os alimentam e repetem seus urros horrorosos. É como se todos eles (o ogro, os filhotes e os idólatras) estivessem num palácio fortificado, protegido por gente armada, e nós, pobres humanos brasileiros, numa imensa jaula diante daquele palácio.
Estranho paradoxo: mesmo acorrentadas, as cavalgaduras sentem-se livres para ameaçar, tripudiar, humilhar, chantagear, rasgar a carne dos pacíficos passeantes. E nós, livres, nos sentimos acuados, sufocados, emparedados.
Por quanto tempo vamos aturar ou aceitar esse paradoxo? Quando os moradores da rua, do bairro e da cidade vão recuperar a liberdade de dormir e sonhar, sem a perniciosa
presença dessas bestas?
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