Leo Aversa
Tem as leis, que estão escritas na Constituição. Também tem as normas do edifício, que estão escritas na convenção ou na parede do elevador. Se temos alguma dúvida sobre o significado da luz vermelha no sinal — no Rio isso ainda é um mistério — ou de quem é a vaga na garagem, basta consultar o que está registrado. Muitas mais são as regras não escritas, aquelas que você aprende na prática, pelo convívio dentro de um grupo ou — para usar uma palavra fora de moda — civilização. São essas, as óbvias, que permeiam o nosso dia a dia, alheias às grandes questões nacionais e à passagem do tempo.Estava na academia, numa hora vazia. Como é uma academia bem mais ou menos, não tem muitas opções de programas nas TVs, e sou obrigado a decidir entre os comentários matinais do Louro José ou a reprise de um jogo da terceira divisão. Umas dez esteiras vazias para um lado, dez para o outro. Chega um sujeito: ele olha as telas, o Louro José e as esteiras e escolhe a do meu lado. Exatamente a do meu lado.
Trata-se, é óbvio, de uma criatura alienígena, alheia às regras não escritas. Dou aquela meia olhada para o lado que significa tanto desprezo como indignação, mas o sujeito nem aí. Um alienígena psicopata.
No cinema a regra de uma cadeira de espaço é sagrada. Você senta e, a não ser que a sessão esteja lotada, fica sempre a uma cadeira de distância dos desconhecidos. É óbvio. Qualquer criança sabe disso, é uma regra que vale da sessão das duas até a da meia-noite, em filme iraniano sem legendas ou em blockbuster da Marvel. Só um doido senta lado a lado com um desconhecido em cinema vazio. Cabe, numa situação dessas, chamar o lanterninha e ordenar a expulsão do alienígena ou, mais efetivo, convocar um padre e exigir um exorcismo.
Nos banheiros masculinos, há uma regra em relação aos mictórios: se tem alguém urinando em um, você só pode fazer xixi no mictório mais afastado que houver. É óbvio. Se tem duas pessoas urinando aí já se faz necessário um sofisticado cálculo matemático para ficar equidistante de ambos. Lado a lado, só em casos de superlotação, e mesmo assim você deve fazer as suas necessidades olhando fixamente para o azulejo à frente, jamais para os lados ou para baixo. Uma olhada um milímetro fora do azulejo já é um bom motivo para um tackle ou uma tesoura voadora. Está na Constituição? Não. Na parede do elevador? Não. Todo mundo sabe? Sim, é óbvio.
Pode ser que sejam regras cristãs ocidentais e que em outras sociedades ou civilizações isso não aconteça, se bem que é provável que um ianomâmi não fique colado em outro ianomâmi no mesmo toco de árvore. Talvez na China, superlotada, não seja assim, e em cada cadeira de cinema sentam três pessoas e quatro corram na mesma esteira de academia. O coronavírus taí para mostrar que esse amontoado não acaba bem.
Como o sujeito ao meu lado ignorou toda essa tradição não escrita, fui obrigado a ensinar pela prática, que é didática mais efetiva: dei três tossidas tonitruantes e quando ele me olhou comentei que em Pequim estava muito frio e o choque com o calor carioca não estava me fazendo bem.
Resolvido, é óbvio.
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