“Tormenta” retrata um presidente movido a desconfianças, paranoias e interesses em assuntos secundários
Gustavo Alves
Para um livro sobre alguém que se expõe tanto nas redes sociais, um dos trunfos de Tormenta (Companhia das Letras, 272 páginas), da jornalista Thaís Oyama, é revelar detalhes pouco conhecidos da intimidade de Jair Bolsonaro e de seu entorno — como o fato de Carlos Bolsonaro controlar o humor com a ajuda de remédios. Mas, ao retratar as crises no primeiro ano do atual governo e os bastidores da campanha presidencial de Bolsonaro, o que mais surpreende é como um homem de personalidade tão prosaica se tornou o catalisador de tantas confusões — a ponto de, já nos primeiros meses de gestão, surgirem discussões sobre sua possível saída do poder, conta a autora, ex-redatora-chefe da revista Veja e comentarista da rádio Jovem Pan.
Oyama também revela os bastidores de episódios anteriores ao mandato, como o que motivou a decisão do então comandante-geral do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, de publicar um tuíte pressionando o Supremo Tribunal Federal (STF) às vésperas do julgamento do habeas corpus que poderia favorecer o ex-presidente Lula, em abril de 2018. Segundo relatos atribuídos ao próprio Villas Bôas, o general temia que, se não o fizesse, sua autoridade fosse esvaziada internamente.
Ao longo de todo o ano de 2019, Oyama entrevistou pessoas próximas ao presidente — ministros, ex-ministros, militares, aliados e desafetos — para concluir a obra, que pertence a um gênero ainda pouco explorado na indústria editorial brasileira: o instant book, relato de não ficção publicado a partir de algum fato recente. O Bolsonaro delineado pela autora é um “presidente das pequenas coisas”, para usar o título de um dos capítulos. Não tem “nenhuma paciência para aprender o que desconhece”, segundo o livro.
Essa característica se manifesta na resistência a provar comidas diferentes ou no fato de, antes de anunciar sua candidatura à Presidência, Bolsonaro ter viajado apenas três vezes para o exterior, e para destinos triviais: visitou a Disney, nos Estados Unidos; Cancún, no México; e Israel, para ser batizado no Rio Jordão em uma cerimônia evangélica — apesar de se dizer católico. O olhar pouco treinado para assuntos de relevância externa poderia ser apenas uma característica anedótica que o tornaria próximo do brasileiro médio. O que se vê, no entanto, é que o traço se torna um problema no momento de eleger prioridades como presidente. Em vez de tentar aprender como funciona a taxa de juros com o ministro da Economia, Paulo Guedes, Bolsonaro prefere tratar de pesca, um de seus hobbies prediletos, conforme histórias relatadas no livro.
Em outro episódio, num encontro do presidente com a bancada do Amazonas, a autora revela como uma discussão sobre a mudança no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) incidente sobre xaropes para refrigerantes não prosperou por motivos banais. “Não entendo nada desse negócio”, declarou Bolsonaro aos três senadores e oito deputados federais, depois de reconhecer que, se soubesse que esse seria o tema da reunião, teria sido melhor o grupo ter se encontrado com Paulo Guedes. “A audiência, segundo um deputado que dela participava, foi tumultuada do início ao fim”, narra Oyama. “O presidente teclava no celular, falava ao telefone e conversava com assessores e amigos que entravam e saíam da sala a todo momento.”
“A falta de interesse pelos assuntos mais importantes da agenda pública é aliada a uma patente síndrome de perseguição desenvolvida pelo presidente e estimulada por seus filhos, especialmente Carlos, que faz uso de remédios para controlar o humor”A falta de interesse pelos assuntos mais importantes da agenda pública é aliada a uma patente síndrome de perseguição desenvolvida pelo presidente e estimulada por seus filhos, especialmente Carlos, de acordo com o livro. Bolsonaro tem a convicção de que todas as movimentações políticas e reportagens publicadas pela imprensa têm por objetivo desprestigiá-lo ou prejudicá-lo. Um episódio relatado no livro dá o tom da gravidade da paranoia. Bolsonaro teria cogitado anunciar que poderia nomear o filho Eduardo como embaixador em Washington, Estados Unidos, imediatamente depois de a Câmara dos Deputados ter aprovado a reforma da Previdência. Mais do que celebrar a aprovação, vista como fundamental para o sucesso da política econômica de sua gestão, para ele importava tirar do noticiário o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que conduzira o processo e vinha sendo elogiado por sua bem-sucedida articulação política.
O torpedeamento público do vice-presidente, Hamilton Mourão, e as demissões dos ministros Carlos Alberto dos Santos Cruz e Gustavo Bebianno também são fruto da mistura de obsessão pelo que não importa e temperamento desconfiado de Bolsonaro. A propensão ao atrito resultante dessa combinação chegou a fazer com que se discutisse a hipótese de seu afastamento ou da implementação do parlamentarismo, a partir do momento em que os militantes virtuais do bolsonarismo começaram a incitar protestos contra a própria existência do Congresso ou do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em um dos episódios, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, teria sido fundamental para acalmar os ânimos, segundo o relato de Tormenta. Em maio, quando o caldo já havia entornado entre Bolsonaro e seu vice, o magistrado teria atuado em favor do presidente junto a parlamentares que começavam a duvidar de sua capacidade de governar (a ÉPOCA, o ministro negou esse relato). Toffoli também é citado em outra crise que estremeceu o apoio a Bolsonaro de parte de sua base e agravou a relação do presidente com o ministro da Justiça, Sergio Moro: a investigação do senador Flávio Bolsonaro e de seu ex-assessor na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Fabrício Queiroz por movimentações financeiras suspeitas. Moro teria pedido ao presidente do STF que não aceitasse o pedido da defesa de Flávio para suspender o acesso de investigadores a relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) — que são justamente a origem do caso Queiroz. O livro também evidencia como o ex-PM, mais do que um assessor de Flávio, era um homem de confiança de Bolsonaro instalado no gabinete do filho. Outra briga esmiuçada é a de Bolsonaro com os militares — Oyama mostra que a proximidade entre a cúpula do Exército e o ex-oficial indisciplinado que se converteu em presidente é mais de ocasião do que por coincidência de princípios.
Uma conclusão a partir da leitura de Tormenta é que parece impossível a Bolsonaro ter uma atuação política sem conflitos e que o presidente demonstra sentir até mesmo certo prazer ao se ver no centro do picadeiro. “Algum de vocês já foi capa do New York Times?”, perguntou a amigos o então deputado federal, depois que o jornal americano publicou um perfil retratando-o como homofóbico e admirador de torturadores, por ter dedicado o voto pelo impeachment de Dilma Rousseff ao coronel Carlos Brilhante Ustra. Bolsonaro havia sido reprovado por pessoas próximas pelo elogio. Mas já havia entendido, àquela altura, que ser criticado pela imprensa não necessariamente significava ser rejeitado por quem a lê.
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