A dominação autoritária tem um repertório técnico variado. Um dos seus recursos convencionais é a programação linguística, que estimula reflexos condicionados na argumentação de seus seguidores.
A arapuca é conhecida. Ela sequestra retoricamente um valor para implementar, na prática, o seu contrário. George Orwell, no romance “1984”, exemplificou esse fenômeno da “novilíngua” (a língua imposta pelo regime): “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”.
O Brasil tem sido um fascinante laboratório dessa prática.
Em nome da vida, por exemplo, adotamos políticas de morte: negação de direitos sexuais e reprodutivos a mulheres, que contribui para a mortalidade feminina; corte de recursos a políticas que aliviam a extrema pobreza; defesa de um direito irrestrito de portar arma; revogação dos limites de velocidade na estrada; inviabilização de política que oferecia serviço de saúde nos rincões miseráveis do país.
Em nome da liberdade, defesa do AI-5; vigilância permanente do professor; polícia com autoridade absoluta para dizer o que é desacato e prender em flagrante; leniência e redução da fiscalização para o crime organizado nas florestas e áreas indígenas; intimidação pública de jornalistas e defensores de direitos.
Em nome da segurança, violência policial e máximo encarceramento, uma fórmula explosiva que dá impulso logístico ao crime organizado. O PCC e as milícias continuam a agradecer por esse apoio.
Em nome da proteção da infância, omissão estatal na educação sexual, facilitador de abusos domésticos. Em nome da família, a repressão a estruturas familiares diversas. Em nome do conservadorismo, a explosão de padrões civilizatórios proclamados pela Constituição.
Em nome do combate à corrupção, desestruturação de mecanismos de controle e de transparência no Poder Executivo. E, mais irônico, em nome do combate à ideologia, a técnica de Weintraub, Ernesto, Damares, Salles e Heleno.
Nesse jogo, também se deve atribuir ao inimigo, furtivamente, uma característica que ele não tem ou posição que ele não defende. A “bandidolatria”, por exemplo, serve para calar críticas à fórmula “mais arma, mais polícia descontrolada, mais prisão”. Os críticos são “anti-Brasil”, “anti-patriotas”, “essa raça”. Têm falha moral e merecem exclusão da unidade mística chamada “povo”.
Para completar, há que se empurrar goela abaixo um dicionário de pílulas de efeito percussivo: “mimimi, mamata, extrema imprensa” etc. E um pequeno leque de miniargumentos: “a eleição acabou, o povo já decidiu, aceita que dói menos”. Dão essa sensação de pertencimento tribal que as redes sociais revigoraram. Assim se completa a robotização algorítmica que ainda não conseguimos desprogramar.
Quando palavras perdem capacidade de denotar um sentido independente do que um líder carismático lhe atribui e hipnotizam multidões, a democracia fraqueja. Nessa hora, trazer clareza moral para desmascarar a hipocrisia política é um exercício necessário, que não pode ser vencido pelo cansaço.
O truque se manifesta, claro, no mundo do direito. Veja Sergio Moro. Concedeu-se a ele, gratuitamente, o dom de definir o sentido da lei conforme sua vontade (e de depois trocar, sem aviso, o sentido que ele mesmo usou).
Nunca hesitou em afirmar, à luz de seus desvios judiciais, que fez “de acordo com a lei”. Prendeu e soltou, vazou e calou, orientou acusação e acusou por conta própria. Não foi pela qualidade do que falou ou pela fidelidade ao texto da lei e da jurisprudência que se livrou de qualquer acusação, mas apenas por sua credencial de herói.
Como ministro, dedica parte de seu tempo a proteger a imagem do chefe com as ferramentas que tem sob seu comando. Assim tenta redefinir o sentido de “calúnia” e “segurança nacional” (e o próprio papel do ministro da Justiça).
Michel Foucault, autor de “As Palavras e as Coisas”, iluminou o fenômeno. Tento imaginar o que Foucault diria se a fortuna lhe permitisse conhecer Moro e Bolsonaro.
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