Além de verdadeiras aulas de História, os desfiles das escolas de samba são o retrato de um país que dá certo
Miguel Pinto Guimarães
Terminou ontem, infelizmente, mais um carnaval. E junto com ele
fecha-se, mais uma vez, uma janela de oportunidade para que as
autoridades aprendam com o mundo do samba como funciona, ou pelo menos
deveria funcionar, este país. O desfile das escolas de samba do Rio é o
Brasil que dá certo. Educação, cultura, segurança, diversidade,
respeito, decoro, disciplina, compaixão e alegria. Tudo o que falta
durante o ano, sobra na Marquês de Sapucaí, o palco dessa festa.
O povo de qualquer classe social, de todas as idades, nas arquibancadas, nos camarotes ou na TV, sai mais culto desses quatro dias de desfile, pois recebe dezenas de aulas de história, literatura, línguas, artes plásticas, teatro, religião, cidadania. São aulas rápidas, setenta minutinhos, lúdicas e cercadas de lirismo, que, com um mínimo de atenção, valem tanto quanto horas em bancos de salas de aula.
Este ano, por exemplo, para quem tinha dúvidas, revisou-se novamente o básico: A Teoria da Evolução das Espécies de Darwin e a forma (redonda!) da Terra. Para em seguida conhecermos as pinturas rupestres da Serra da Capivara e das cavernas de Lascaux, pela Estácio de Rosa Magalhães, a Porta da Ishtar construída na Babilônia por Nabucodonosor e os guerreiros de Xian, retratados por Paulo Barros.
Aprendemos sobre as cruzadas de Dom Sebastião de Portugal, sobre as Guerras Napoleônicas que culminaram com a vinda de Dom João IV ao Brasil e sobre os rituais canibais dos Tupinambás que ocupavam a Baía de Guanabara. O enredo da Portela, aliás, além de história, nos dá lições de etimologia com referências a okaras, kariókas e kûánãparás. A Beija-Flor, no samba “Se essa rua fosse minha’’, repassou a história da humanidade desde a migração do homem da África aos confins das Américas através do congelado Estreito de Bering, representado lindamente no seu abre-alas, passando pela Rota da Seda, a invenção da roda e chegando à sofisticada infraestrutura das cidades pré-colombianas. Esse é o tipo de aula que eu gostaria de ter tido enquanto moleque.
Os enredos elaborados pelos brilhantes carnavalescos nos trouxeram verdadeiros heróis brasileiros, como Benjamin de Oliveira — o primeiro palhaço negro — e Elza Soares. Ambos oriundos do Planeta Fome, vale lembrar. Quem, no Brasil de hoje, ousaria reverenciar o babalorixá Joãozinho da Gomeia, negro, homossexual, nordestino e bailarino? Apenas o Brasil da Sapucaí.
Além de nos trazerem novos conhecimentos, as escolas de samba nos fazem pensar, questionar os nossos dogmas. Por que não aceitarmos um Jesus negro, como proposto pela verde e rosa, muito mais à imagem e semelhança dos seus contemporâneos judeus da Galileia do que aquele retratado na arte religiosa da Idade Média, distante tantos séculos do epicentro dos acontecimentos? Por que não exercitarmos a volta de um Jesus ao Morro da Mangueira, tão castigado quanto a Palestina de outrora? Eu comungaria da fé de Leandro Vieira!
O Brasil da Sapucaí é tão livre quanto os seios de Jojo Todynho! No Brasil da Sapucaí, o presidente é Marcelo Adnet! Quem triunfa nesse Brasil é a voz feminina e negra das ganhadeiras de Itapuã. As referências desse Brasil são Pierre Verger, Beatriz Milhazes e Helio Oiticica. O Brasil da Sapucaí é diverso, é sensual, é generoso. É, acima de tudo, humano. Sincretiza em um mesmo verso Axé e Amém. Tem Exu e Jesus evoluindo lado a lado como deveria ser nas encruzilhadas da vida. É um país muito melhor. O Brasil da Sapucaí é o país em que eu teria muito orgulho de viver nos outros 360 dias do ano. Evoé!
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