October 9, 2019

A debandada da banda

 

 Com crise, quadrinistas brasileiros encontram nichos de publicação em Portugal

Érico Assis
Lisboa
A publicação de “Luzes de Niterói”, último trabalho do quadrinista Marcello Quintanilha, passou por alguns percalços. Pronta no ápice da crise das livrarias Saraiva e Cultura, no segundo semestre de 2018, a obra exigiu jogo de cintura da editora Veneta, que lançou outras quatro HQs de Quintanilha.
A opção foi o financiamento coletivo —uma arrecadação virtual prévia para pagar os custos do livro. A meta era angariar R$ 70 mil para uma produção luxuosa, com 240 páginas coloridas e capa dura.
Tendo atingido menos de 40% da meta —dentro do esperado, segundo a Veneta—, o livro foi produzido e começou a circular entre os apoiadores da campanha em janeiro deste ano, chegando no mês seguinte às livrarias.
Quando saiu aqui, porém, “Luzes de Niterói” já era lido na Europa. Em Portugal, a HQ —ou BD, de banda desenhada, como chamam por lá—, inspirada em memórias do pai de Quintanilha, foi lançada em novembro de 2018, dois meses antes, sem campanha de financiamento nem nada do tipo.
A responsável pela publicação portuguesa foi a editora Polvo, de Lisboa, que tem o quadrinho brasileiro contemporâneo como uma de suas principais frentes.
A publicação em Portugal começa a virar a primeira opção —ou às vezes única— para artistas vindos do Brasil.



  • Do catálogo atual de 170 títulos da Polvo, 28 são da coleção Romance Gráfico Brasileiro. Quase todos os álbuns de Quintanilha estão lá, incluindo sua adaptação de “O Ateneu”, de Raul Pompeia. “Cumbe” e “Angola Janga”, os tomos sobre o Quilombo dos Palmares por Marcelo D’Salete, premiados respectivamente no Eisner Awards e no Jabuti, também.
    Odyr Bernardi, Rafael Coutinho, Felipe Nunes, Rodrigo Rosa, os irmãos Magno e Marcelo Costa, José Aguiar, Alcimar Frazão e outros também têm títulos pela editora portuguesa. Não há editora brasileira que concentre o mesmo quilate de autores brasileiros.
    A Polvo tem só dois tentáculos: os braços de Rui Brito, lisboeta de 49 anos que se divide entre ela e seu emprego de horário comercial como bibliotecário e editor —“numa área completamente diferente dos quadrinhos”, ele explica.
    Brito conheceu a produção brasileira do gênero nos anos 1970, quando HQs eram importadas para lá de forma intermitente. Acompanhou a “Chiclete com Banana”, de Angeli, “Piratas do Tietê”, de Laerte, e “Níquel Náusea”, de Fernando Gonsales, nos anos 1980, e disse que viu a revista “Animal” —com quadrinho autoral brasileiro e estrangeiro— como “a chegada de um óvni”.
    Publicou o brasileiro Arthur Garcia no seu fanzine Banda, bastante premiado no além-mar. Fundou a Polvo com dois sócios em 1997, mas toca o barco sozinho desde 2006.
    Além de garantir apuro gráfico equivalente ou superior às edições nacionais, a Polvo tem um apoio importante do governo de Portugal.
    O Plano Nacional de Leitura já selecionou 12 quadrinhos brasileiros como sugestões para crianças e adultos.
    Na prática, é um “selo de qualidade” —literalmente colado na capa dos álbuns— que cada obra recebe.
    Diferentemente dos planos de incentivo do governo brasileiro, porém, o governo português só recomenda, e não faz aquisição para escolas ou bibliotecas.
    Mesmo sem ter apoio financeiro, Brito diz que suas tiragens são de respeito. “Posso dizer que, comparativamente à dimensão populacional brasileira e o respectivo mercado de quadrinhos, a Polvo efetua tiragens semelhantes [às brasileiras] e, em casos pontuais, até superiores”, explica.



    No Brasil, falta casa para a produção nacional. Segundo levantamento no Guia dos Quadrinhos, banco de dados desse mercado no país, o número de HQs publicadas pelas dez maiores editoras brasileiras vem caindo. Em 2016, foram lançados 81 títulos. Em 2017, foram 43. Em 2018, 45. Neste ano, até julho, foram 12. Os dados só contabilizam obras adultas e excluem, por exemplo, material da Turma da Mônica.
    A crise das grandes livrarias é um dos motivos. Custos gráficos também aumentaram. As compras do governo federal para o Programa Nacional Biblioteca da Escola, que alimentaram o setor até início desta década, minguaram. Ainda há, porém, algumas iniciativas de fomento como a do Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura de São Paulo, que financia dez projetos de quadrinhos paulistas por ano.
    E há a produção independente, responsável pelo maior número de HQs brasileiras —o Guia dos Quadrinhos registra 158 publicações em 2018.
    Há também semi-independentes, como o caso do autor Wagner Willian, cuja editora, a Texugo, por enquanto só publica seus próprios trabalhos.
    “As feiras e as plataformas de financiamento coletivo ou de vendas online têm se mostrado
    uma saída melhor em termos de grana”, afirma Willian. “Por outro lado, se perde a distribuição e a visibilidade do selo editorial.”
    “O Maestro, o Cuco e a Lenda”, que Willian publicou no Brasil, foi lançado em seguida pela editora Polvo em Portugal e pela editora Casterman na França. “E as editoras estrangeiras, pasme, pagam adiantamento!”, ele afirma.
    O carioca André Diniz inaugurou a linha brasileira da Polvo com “Morro da Favela”, em 2013. Desde então, lançou mais cinco obras pela editora portuguesa —quatro deles antes de saírem do Brasil.
    Diniz inclusive se mudou em 2016 para Lisboa. “Os quadrinhos são a minha linguagem, e ser tão bem aceito e compreendido pelos leitores portugueses fez com que me sentisse à vontade aqui desde a primeira vez que vim”, comenta.
    Rui Brito, o editor, diz que Diniz já tem público fiel no país europeu. Seus dois últimos trabalhos, “Malditos Amigos” e “Entre Cegos e Invisíveis”, ainda nem têm previsão de lançamento no Brasil, mas já saíram em Portugal.
    A Polvo também traduz autores europeus e aposta em novos nomes portugueses, como a premiada Joana Afonso (“Zahna” e “Deixe-Me Entrar”). No momento, Brito está à procura de tentáculos brasileiros.
    “Ficaria muito satisfeito se surgisse no Brasil alguma editora a fazer com os autores portugueses o que a Polvo tem feito com os brasileiros. Esse intercâmbio cultural não deveria ser de sentido único”, diz.
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  • ilustrações D'Salete e Marcelo Quintanilha

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