Por três décadas, o jornalista Oale Maharidge e o fotógrafo Michael S. Williamson viajaram pelos Estados Unidos em busca de um retrato da classe trabalhadora. Encontraram uma América faminta e desesperançada
Francisco Quinteiro Pires
DALE MAHARIDGE está assombrado com a facilidade de encontrar motivos para desespero na América atual. “E só ir à rua e prestar atenção” escreve em Someplace Like America: Tales From the New Great Depression, livro- reportagem sobre o empobrecimento da classe trabalhadora nos últimos 30 anos. Para Maharidge, os Estados Unidos não entraram numa recessão em 2008. O país estaria mergulhado em uma crise socioeconômica constante desde o início dos anos 1980, quando o presidente Ronald Reagan proclamou uma frase emblemática: “O governo não é a solução para o nosso problema, o governo é o problema”.
Acompanhado pelo fotógrafo Michael S. Williamson, Maharidge viajou mais de 800 mil quilômetros nas últimas três décadas. Ao longo do trajeto, dormiu ao lado de andarilhos em trens de carga, entrou em casas arruinadas onde agonizaram viciados em drogas, conversou com moradores de tent cities, habitações precárias à beira de rios. Ele percebeu em diferentes histórias uma luta comum pela preservação da dignidade em meio à extinção de empregos e ao encolhimento dos salários.
O compositor Bruce Springsteen escreveu a introdução da edição em brochura de Someplace Like America (University of California Press). Youngstown e The New Timer, duas músicas do CD The Ghost of Tom Joad (1995), foram compostas por Springsteen depois de ler Journey to Nowhere: The Saga of The New Underclass (1985), o primeiro dos seis livros da parceria entre Maharidge e Williamson, ambos ganhadores do Pulitzer. Para Springsteen, o trabalho da dupla revela “o custo em sangue, patrimônio e espírito que a desindustrialização dos Estados Unidos impôs a seus cidadãos mais leais e esquecidos”.
Logo no início de suas viagens pelos EUA, Maharidge e Williamson lançaram And Their Children after Them: The Legacy ofLet Us Now Praise Famous Men: James Agee, Walker Evans, and the Rise and Fall ofCotton in the South (1989). Esse livro-reportagem investigou o destino de três famílias de meeiros no Alabama, cujo desamparo o repórter James Agee (1909- 1955) e o fotógrafo Walker Evans (1903- 1975) registraram, 50 anos antes, durante a Grande Depressão, em Elogiemos os Homens Ilustres. A tragédia dos trabalhadores americanos é mais reveladora do que os resultados de institutos de pesquisa ou os relatórios de economistas de bancos. “Devíamos parar de nos fiar nas palavras de supostos especialistas e escutar as vozes de pessoas comuns, essas, sim, as verdadeiras experts: A seguir, trechos da entrevista de Maharidge a CartaCapital.
CartaCapital: O jornalista George Packer, em resenha publicada pela revista The New Yorker, apontou para a raridade do tipo de reportagem apresentado em Someplace Like America, “Há algo de teimosamente heroico nesse compromisso com um tipo de Jornalismo menos glamouroso, com um tema ingrato” Por que a mídia evita abordar os problemas dos trabalhadores e dos pobres?
Dale Maharidge: É devastador pensar no que ocorre na América. As coisas estão piores hoje se comparadas à Grande Depressão dos anos 1930. Naquela época, as pessoas nutriam a esperança de que as fábricas reabririam. Atualmente, as indústrias não são somente fechadas, são demolidas. O mato invade o terreno baldio que se forma. A retomada dessas terras pela natureza indica que não é possível sentir esperança. Muitos jornalistas estão interessados nos plutocratas, que têm mais glamour. Livros focados nesse segmento vão ser vendidos para a elite. Quanto aos pobres, as massas não parecem dispostas a receber livros sobre os trabalhadores. Um espelho é algo difícil de mirar. Mas esse é um trabalho que precisa ser feito. Eu e Williamson preferimos avançar por caminhos ignorados pela maioria dos jornalistas. Nosso livro pode oferecer esperança. As histórias dessas pessoas que lutam para sobreviver têm um lado edificante, embora não tenhamos percebido há 30 anos nem tenha sido esse nosso objetivo inicial.
CC: É inevitável comparar Someplace Like America a Elogiemos os Homens Ilustres (1941) Em And Their Children after Them, o senhor e Williamson foram atrás dos descendentes das famílias com as quais Agee e Evans conviveram Além das singularidades de cada período histórico, quais as diferenças entre seu livro e Elogiemos?
DM: Amaneira de fazer o nosso trabalho é diferente. Evans não passou tanto tempo no Alabama quanto Agee, que ficou próximo das famílias. Williamson esteve do meu lado o tempo todo. Em termos históricos, a pobreza hoje tem uma face diferente. A imagem de uma criança na frente de uma casa de subúrbio não desperta a mesma comoção que uma criança na frente de um barraco. Ainda assim, ao longo dos últimos 30 anos, com frequência encontramos geladeiras vazias e crianças com fome em casas de subúrbio. A fome na América se espalhou. Tal como na época de Elogiemos os Homens Ilustres, as pessoas estão paralisadas. Há semelhanças. Muitos do 1,4milhão de americanos que trabalham para o Walmart recebem 9 ou 10 dólares por hora. Na maioria das cidades, seus salários mal pagam o aluguel. Trabalham em dois ou três empregos. Ainda assim chegam ao fim do mês sem comida. É escravidão assalariada.
CC: Para escrever Someplace Like America, o senhor reencontrou as pessoas que conheceu 30 anos antes Por que foi importante falar de novo com esses entrevistados?
DM: Com frequência, nós, jornalistas, surgimos de repente e entrevistamos as pessoas para criar um sumário de suas vidas. E seguimos em frente. Quando retorna a uma história já publicada, o repórter cria não só um resumo, mas um retrato em mutação das pessoas. Ao concebermos esse tipo de representação, podemos ver as mudanças pelas quais os EUA passaram nos últimos 30 anos. É uma forma mais satisfatória de contar uma história.
CC: Enquanto reporta, o senhor não tem receio de expor as limitações do seu trabalho e impressões Por que insere essas informações no texto?
DM: Leitores de obras como Someplace Like America exigem um contexto. Não é suficiente apresentar os fatos. Na era da internet, fomos inundados por fatos. Daí a necessidade de uma explicação apresentada por um narrador confiável. Minha maior inspiração é a ficção de John Steinbeck, em especial As Vinhas da Ira (1939), em que ele oferece um significado e um encadeamento às circunstâncias.
CC: O senhor se sentiu desamparado durante as viagens?
DM: Muitas vezes. O pior período foi quando andamos nos trens de carga nos anos 1980. Passávamos por casas e víamos através das janelas famílias sentadas à mesa para o jantar. Sentíamos como se estivéssemos testemunhando de outro lugar a ilusão do sonho americano. Até hoje tenho esse sentimento de deslocamento. Quando visitei as áreas do Meio-Oeste dos EUA me senti como um jornalista estrangeiro. Este não é mais o país onde nasci.
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