— Quiseram ter algo como uma lembrancinha de viagem, porque viram na
Rússia o objeto erótico de seus sonhos, a mulher branca e loura, em uma
situação vulnerável.
Em menos de 20 segundos, o vídeo expôs o machismo e os preconceitos
de uma sociedade estruturada em torno de desigualdades entre sexos,
raças e classes sociais. No lado dos algozes, estava a parcela mais
privilegiada da população brasileira: homens, brancos e de alto poder
aquisitivo, já que, segundo levantamento feito pelo GLOBO, em março, ir à
Copa da Rússia não saía por menos de R$ 13 mil.
— Quando os autores do vídeo fazem a moça pronunciar “boceta rosa”
sem que ela saiba o significado, há, além da objetificação, uma
exaltação da branquitude do órgão sexual daquela mulher — argumenta a
professora da USP Marcia Thereza Couto, doutora em Sociologia e
especialista em violência e relações de gênero.
ARGENTINOS E COLOMBIANOS
Pior foi saber que
não se tratou de um caso isolado: logo começaram a circular pelas redes
outras gravações que mostram comportamentos semelhantes de homens
brasileiros, argentinos e colombianos. Em um vídeo com brasileiros, o
alvo é uma criança, um menino convidado a repetir frases como “eu sou um
viado” e “eu dou para o Neymar”. Fica a imagem de que o comportamento
chulo e bravateiro, além da homofobia, são traços da América Latina.
Será?
OPINIÃO: Não é normal chorar num 2º jogo da fase de grupos, Neymar
—
O machismo latino está tão entranhado que não importa para esses homens
onde eles estão, eles não sabem agir de outra forma — aponta Debora.
Mesmo em outro país, o fato de esses homens estarem na maior parte
das vezes em grupo pode, de acordo com especialistas, ter servido como
elemento encorajador: no vídeo de maior repercussão, a jovem loura,
cercada por estranhos, é a minoria.
— Agir em bloco empodera, mesmo quando se está em um outro país,
regido por outros códigos de controle e licenças sociais — explica o
antropólogo Roberto DaMatta. — Muitas vezes, quando se está em grupo, a
consciência das responsabilidades individuais se dilui porque quem faz
parte do coletivo se sente mais protegido, a ponto de fazer desaparecer
qualquer sensação de “timidez”.
LEIA MAIS: Conheça quem luta para acabar com o machismo, o racismo e a homofobia no futebol
As
imagens também levantam outra discussão: o ambiente do futebol seria
mais fértil para esse tipo de manifestação, mesmo num momento em que o
debate público é dominado pela condenação a atos racistas, misóginos e
homofóbicos?
— O futebol sempre foi um território de disputa, dominado por homens.
E muitos deles ainda não se libertaram dos mitos da masculinidade e da
mentalidade patriarcal, que se instalaram no inconsciente coletivo há
cinco mil anos — pondera a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins.
SE FOSSE SUA IRMÃ OU FILHA
Passada uma semana
da aparição do primeiro vídeo, a náusea coletiva não arrefece. A cada
momento, um novo agressor é identificado, em parte graças à indignação
de amigos e conhecidos dos próprios envolvidos. Eles terão que responder
a inquérito aberto pela Procuradoria da República no Distrito Federal. O
órgão apura se eles cometeram crime de injúria ao expor a torcedora a
uma humilhação pública.
O debate em torno do caso e as justificativas dos envolvidos
revelaram ainda outras nuances. Ao se defender da reação ao vídeo, um
dos participantes afirmou que “fosse na favela ou no carnaval, isso
seria considerado normal”, culpou o álcool em excesso e ainda frisou que
quem estava no vídeo eram “pais de família” e “trabalhadores”. Para
Marcia, esse tipo de resposta evidencia uma recusa em reconhecer um
desvio inaceitável no ato, independentemente de local e circunstâncias.
— Discursos como os que usam o termo “chefe de família” reforçam a
imagem de que esta é uma “gente diferenciada”. Ao usar esse recurso, o
agressor procura aliados, homens da mesma condição social, que também
vejam isso como uma falha episódica — avalia a professora, ao lembrar
que os sujeitos apresentados como líderes da família são simultaneamente
infantilizados em outro tipo de discuso minimizador, que reduz o
assédio a “falta de maturidade”, “molecagem”, “brincadeira”.
ARTIGO: Crime e castigo para os homens extraordinários
Mesmo
no diálogo de quem repudia o assédio, ela identifica problemas. Afinal,
um dos questionamentos mais comuns é: e se fosse sua irmã ou sua filha?
— Eis aí uma característica própria da nossa cultura, que é o
familismo. Encaramos a família como elemento moral para justificar quem
somos. É muito diferente da cidadania plena, em que, não importa a
relação com o outro, ele merece respeito.
No comments:
Post a Comment