June 27, 2018

Vídeos de assédio na Copa da Rússia levantam a questão: o que isso diz sobre nossa sociedade?

Inimigo oculto: por trás da fama de cordial, torcida brasileira revelou o pior do país na Rússia Foto: André Mello/Arte O Globo

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Na véspera do empate contra a Suíça, um vídeo com um grupo de torcedores brasileiros assediando uma jovem que não falava português e debochando dela levou muita gente a se perguntar: o que passa na cabeça de homens que agem assim?

Professora da UnB e pesquisadora do Instituto Anis, a antropóloga Debora Diniz acha que o grupo se comportou como quem adquire um “souvenir”.

— Quiseram ter algo como uma lembrancinha de viagem, porque viram na Rússia o objeto erótico de seus sonhos, a mulher branca e loura, em uma situação vulnerável.
Em menos de 20 segundos, o vídeo expôs o machismo e os preconceitos de uma sociedade estruturada em torno de desigualdades entre sexos, raças e classes sociais. No lado dos algozes, estava a parcela mais privilegiada da população brasileira: homens, brancos e de alto poder aquisitivo, já que, segundo levantamento feito pelo GLOBO, em março, ir à Copa da Rússia não saía por menos de R$ 13 mil.

— Quando os autores do vídeo fazem a moça pronunciar “boceta rosa” sem que ela saiba o significado, há, além da objetificação, uma exaltação da branquitude do órgão sexual daquela mulher — argumenta a professora da USP Marcia Thereza Couto, doutora em Sociologia e especialista em violência e relações de gênero.

ARGENTINOS E COLOMBIANOS

Pior foi saber que não se tratou de um caso isolado: logo começaram a circular pelas redes outras gravações que mostram comportamentos semelhantes de homens brasileiros, argentinos e colombianos. Em um vídeo com brasileiros, o alvo é uma criança, um menino convidado a repetir frases como “eu sou um viado” e “eu dou para o Neymar”. Fica a imagem de que o comportamento chulo e bravateiro, além da homofobia, são traços da América Latina. Será?

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— O machismo latino está tão entranhado que não importa para esses homens onde eles estão, eles não sabem agir de outra forma — aponta Debora.

Mesmo em outro país, o fato de esses homens estarem na maior parte das vezes em grupo pode, de acordo com especialistas, ter servido como elemento encorajador: no vídeo de maior repercussão, a jovem loura, cercada por estranhos, é a minoria.

— Agir em bloco empodera, mesmo quando se está em um outro país, regido por outros códigos de controle e licenças sociais — explica o antropólogo Roberto DaMatta. — Muitas vezes, quando se está em grupo, a consciência das responsabilidades individuais se dilui porque quem faz parte do coletivo se sente mais protegido, a ponto de fazer desaparecer qualquer sensação de “timidez”.

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As imagens também levantam outra discussão: o ambiente do futebol seria mais fértil para esse tipo de manifestação, mesmo num momento em que o debate público é dominado pela condenação a atos racistas, misóginos e homofóbicos?

— O futebol sempre foi um território de disputa, dominado por homens. E muitos deles ainda não se libertaram dos mitos da masculinidade e da mentalidade patriarcal, que se instalaram no inconsciente coletivo há cinco mil anos — pondera a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins.

SE FOSSE SUA IRMÃ OU FILHA

Passada uma semana da aparição do primeiro vídeo, a náusea coletiva não arrefece. A cada momento, um novo agressor é identificado, em parte graças à indignação de amigos e conhecidos dos próprios envolvidos. Eles terão que responder a inquérito aberto pela Procuradoria da República no Distrito Federal. O órgão apura se eles cometeram crime de injúria ao expor a torcedora a uma humilhação pública.

O debate em torno do caso e as justificativas dos envolvidos revelaram ainda outras nuances. Ao se defender da reação ao vídeo, um dos participantes afirmou que “fosse na favela ou no carnaval, isso seria considerado normal”, culpou o álcool em excesso e ainda frisou que quem estava no vídeo eram “pais de família” e “trabalhadores”. Para Marcia, esse tipo de resposta evidencia uma recusa em reconhecer um desvio inaceitável no ato, independentemente de local e circunstâncias.

— Discursos como os que usam o termo “chefe de família” reforçam a imagem de que esta é uma “gente diferenciada”. Ao usar esse recurso, o agressor procura aliados, homens da mesma condição social, que também vejam isso como uma falha episódica — avalia a professora, ao lembrar que os sujeitos apresentados como líderes da família são simultaneamente infantilizados em outro tipo de discuso minimizador, que reduz o assédio a “falta de maturidade”, “molecagem”, “brincadeira”.
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Mesmo no diálogo de quem repudia o assédio, ela identifica problemas. Afinal, um dos questionamentos mais comuns é: e se fosse sua irmã ou sua filha?

— Eis aí uma característica própria da nossa cultura, que é o familismo. Encaramos a família como elemento moral para justificar quem somos. É muito diferente da cidadania plena, em que, não importa a relação com o outro, ele merece respeito.

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