Fred Coelho
1)
Murilo Mendes em 1970 escreve o poema “A corda”. Seus versos abrem esta
coluna como uma faca abre uma ferida: “O navio amarrado. O pássaro
amarrado. A pedra amarrada. O homem”. A poesia ainda será atacada.
Esperem para ver. Ela não tarda em ser degenerada. Não tarda em ser
assunto de deputados despudorados a exigir que se torture o poeta.
Vociferará o Legislativo em coro hidrofóbico: a poesia é como um corpo
nu. Tirem as crianças da língua. Vedem a boca de poeta. Amarrem o navio,
o pássaro, a pedra e o homem.
2) Querem calar o
dissenso, ou o dissenso é formado justamente por aqueles que querem
calar os outros? Nesse momento, não se sabe o perfil majoritário de um
país espatifado como o nosso. Os planos não se tocam. Todos falam por um
povo que falta.
3) Crianças tornaram-se um
assunto público abstrato. Inventam infantes vulneráveis em contato com a
arte e acusam artistas de crimes hediondos em flagrante distorção das
palavras. Acabam com a educação artística nas escolas e contaminam de
moral os olhos de quem tem olhos famintos para inventar o mundo.
Crianças são seres autônomos na construção de seus valores e não
reprodutores passivos de uma tradição. Elas são vidas em expansão. Nós,
adultos, é que trucidamos sua liberdade com nossos medos e vícios de
linguagem.
4) “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
5)
A lei no Brasil e sua cornucópia de contradições e vitórias. Às vezes
parece que hábitos norte-americanos arraigam-se em nós. Se no passado
éramos uma nação de apaziguadores das contradições sociais pelo signo da
conciliação conservadora, hoje parece que somos a pátria dos advogados
em litígio permanente. Certamente é melhor que a solução anterior, mas
não menos preocupante. Processos jorram como água. Ministérios públicos e
supremos tribunais tornaram-se o dia a dia das notícias. Nunca
precisamos tanto de um sistema judiciário criterioso, eficiente e justo,
e nunca ele foi tão banalizado. Uma pátria de processados, um país de
advogados, uma comunidades de justiceiros.
6)
uando tantos processos são necessários para impedir atrocidades como
difamações graves de biografias, é porque cada vez mais se perdeu o
senso de o que é uma opinião emitida em espaço público. Os alucinados
das caixas de comentários abusam de retóricas rancorosas e reduzem
qualquer contradiscurso crítico a mínimos divisores comuns. Eis que
artistas (até mesmo os apolíticos) tornam-se esquerdistas que amam Cuba e
querem acabar com a família brasileira. Parece uma reedição tosca — e
perversa — do tempo em que comunistas comiam criancinhas. Se o
imaginário histérico da Guerra Fria projetava tal imagem com garfos,
facas e dentadas marxistas, hoje a metáfora transforma a liberdade
estética na arte contemporânea em, pasmem, pedofilia. Defender o direito
constitucional da arte e ser contra a exposição midiática de uma
criança acompanhada de sua mãe (como o caso da exposição do MAM de SP)
faz de você um pedófilo imoral. Basta ver as redes sociais para atestar o
ódio que amarra tudo como o poema de Murilo Mendes. A vontade é quase
achar que isso é o último gás de um fim dos tempos obscuros. Mas não.
Isso é o agora. E é no agora que isso deve ser encarado. Sem melancolias
e sem nostalgias. A distorção dos fatos é coisa nossa.
7) É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”.
8)
Quem oprime e quem é oprimido por aqui? Pergunta até pouco tempo óbvia
na resposta, tornou-se uma esfinge entre nós. Oprimidos podem tornar-se
opressores? Opressores podem se sentir oprimidos? Ou, como tudo na vida,
o espaço de coação do outro é complexo, definido por deslocamentos e
posicionamentos flutuantes em uma sociedade sem diretrizes fixas? Aliás,
fixar diretrizes a priori é uma forma de opressão aos que querem outras
formas de vida? Definir o que é vida é uma forma de opressão? Há de se
abrir a cabeça e entender a fundo as tragédias e dores brasileiras. De
todos. Sem pedagogia e sem medo do abismo. O abismo, aliás, está aí.
9)
Algo nefasto está em curso. Aos poucos, se adensa um amálgama de medos
estruturais (de ficar sem emprego, de morrer de tiro, de ter de lidar
com a diferença), oportunismos políticos maniqueístas e cálculos
precisos de tomada de poder. Impressiona que grandes lideranças do país
fiquem mudas frente a personagens que pregam lemas como “família, armas
de fogo e oração”. Não se posicionar claramente contra a truculência
verbal e a violência das mais baixas formas de argumentação como se
fossem fenômenos passageiros é um erro que já custa caro para todos nós.
10)
Quando o monstro da lagoa crescer, vão entender tarde demais que
conversar com defensores de tortura como se fossem candidatos a governar
o país é trágico.
11) Desamarrar os navios, os
pássaros, as pedras, o corpo nu, a criança, a arte, as ideias, as falas,
os poetas. Olhos livres. Para todos, em todas as situações. O tempo é
agora.
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