January 6, 2018

SAL - O que sempre há são nostalgias de antigas formas de sociabilidade


1. 2018. Escrevo no primeiro dia do ano e a janela se abre para um azul infinito que nem os melhores planos turísticos poderiam imaginar. Trezentos e sessenta e cinco dias começam quentes e sob a luz de uma lua gigantesca. Na noite de réveillon, o céu estrelou e as coisas clarearam. Na beira de uma praia entulhada de gente, o funk carioca tornou-se o epicentro da noite. Hoje, o calor espalha ressacas por areias sujas de lixo e pedaços fortuitos de felicidades. Os celulares, frenéticos, registram tudo. Drummond observa a fila de pessoas a lhe abraçar sorrindo para uma câmera. Corpos ariscos em risco e comércios de prazeres se dissolvem na maresia. Verão, chuvas e superluas. Tudo igual e tudo a mudar todos os dias. Nada de novo sob o sal.

O fato é que (arrisco uma hipótese irresponsável de início de ano?) estamos atravessando uma vazies de futuros. Não é nenhuma novidade, mas atualmente a demanda pelo agora das pessoas afoga o que virá. Vivemos sob permanente consumo do que acontece. As redes sociais estão aí nos dizendo onde cada um está e com quem. Estamos nas casas, nos quartos, nas praias, nas montanhas, estamos voando, estamos comendo, estamos sorrindo, estamos festejando. Interconectados em tempo real, sem praticamente usarmos os telefones para falar de viva voz com os outros. Acumulamos dados em vídeos que duram segundos, micro fragmentos de histórias gagas e velozes que aguçam novas formas de falarmos e nos narrarmos no mundo.

Isso não é um problema, dado que não é uma opção. As coisas, cada vez mais, serão assim. O que sempre há, porém, são nostalgias de antigas formas de sociabilidade. Fim de ano e férias, por exemplo, são momentos em que encontramos as pessoas em mesas de bar, almoços e festas. Abraçar, cantar, dançar, gargalhar ou brigar em uma conversa sem ajuda de emoticons, são fatos que nos lembram: tudo acontece ao mesmo tempo — mesmo que tais formas presenciais sejam cada vez mais escassas pelo ritmo frenético da vida e, principalmente, por nos acostumarmos a saber dos outros através de aplicativos. E como quase sempre o compartilhamento da vida são de momentos positivos, alegres, vitoriosos, espalha-se uma sensação de bem-estar opressivo, já diagnosticado por muitos especialistas desses temas. Estamos todos sorridentes, reluzentes, quentes, crentes no compartilhamento do melhor que temos. Ou dos vazios que não podemos deletar. Mais uma foto. Mais um vídeo. Mais um mar sem gosto de sal.

2. Novos dispositivos geram novos sujeitos. A ideia de que somos pessoas que participam coletivamente do mundo por fragmentos de textos, imagens, vídeos e áudios molda cada vez mais nossa forma de comportamento social e nossos sentidos. O meio literalmente é a mensagem. Nossos olhos acostumaram-se com filtros, loops, distorções, repetições, memes. Nosso humor se apegou a pequenas celebridades do dia por conta de um vídeo, uma fala, um evento bizarro. Nossos ouvidos sabem absorver áudios dos mais variados — de notícias a ficções fantásticas, de invenções da fala contemporânea até intermináveis monólogos. Nossos dedos tudo acompanham no giro pra cima, pra baixo e pros lados.

Crianças de hoje já são assim desde o início da sua cognição. Crescem com o que aprendemos a usar. São, desde sempre, aqueles que não precisam das mutações criadas em nós para sobreviver. A ideia de pesquisa, por exemplo, tornou-se corrente para elas, ato banal e veloz em dois cliques na web. Não precisam de bibliotecas, enciclopédias, volumes, espaços, corpos disciplinados na busca do saber. Estão em todos os lugares, cada vez mais jovens, intervindo na hierarquia caduca do conhecimento, mudando rumos de prosas convictas e surpreendendo quem não sabe como os dados circulam entre eles. Pesquisar, postar, curtir, editar, gravar, produzir, tudo isso são palavras que tornaram-se o dia a dia infantil dos dispositivos. São pequenos grandes videomakers, youtubers, escritores, críticos, leitores, poetas de ocasião, músicos digitais, são acumuladores de informação picotadas, especialistas em micronichos, fabuladores natos, estrelas de si mesmo.

As agonias das outras gerações aguçam as distâncias. Por exemplo, a ideia é que se deve guardar o que lhe emociona, arquivar a vida, materializar experiências em suportes estáveis etc. Hoje, não se guarda nada pois os aplicativos já partem do efêmero. São vídeos que duram meia hora, textos que se apagam automaticamente, exclusão de perfis discordantes, fotos deletadas par abrir espaço no HD, imagens editadas por diversão para depois jogar fora. Essa velocidade de registros obsoletos fazem pensar em futuro? Creio que nem em passado. O presente, gigantesco, faminto, vai engordando um tempo-espaço mundializado.

Algumas gerações negociam essas novas formas de existir, outras não. Enquanto muitos mergulham nas transformações e criam equilíbrios de práticas e experimentos do mundo, outras tornam-se estátuas de sal — não quando olham para trás, mas sim para frente.

O GLOBO, JANEIRO 2018

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