Marcus Faustini
Aliança conservadora quer transformar o espaço público em conflito de valores morais
As últimas
investidas contra obras de arte, exposições e museus por parte da
aliança de grupos políticos conservadores e religiosos, manipulando
discursos sobre elas, são ataques à liberdade. Mas qual liberdade está
sob ataque? É um ataque às diferenças, incentivado pelas lideranças
fundamentalistas que sabem tirar proveito desse tipo de conflito.
Na
coluna da semana passada, apontei que a censura à exposição
“Queermuseu” e à performance “La Betê”, no MAM-SP, eram estratégias de
aproveitamento da descrença na política para pautar os debates apenas em
dimensões morais e esconder a falta de propostas desses grupos para as
desigualdades do país. Com o ocaso da geração de governos do PT que
colocaram, em parte, na centralidade do país o debate da inclusão e da
mobilidade social a partir de um instável “pacto onde todos ganhavam”,
grupos até então secundários passaram a enxergar a possibilidade de se
tornarem maiores do que as tradicionais forças políticas brasileiras.
Bolsonaro, MBL e bancada evangélica fundamentalista são exemplos de quem
tem a ganhar com essas tensões.
Volto ao assunto
para apontar outros elementos: essa aliança conservadora pretende
transformar o espaço público num lugar de conflito permanente pautado
pela guerra de valores morais. Não à toa o MBL, por exemplo, uma das
maiores expressões da energia do projeto conservador, foi pra passeatas e
espaços públicos pra gerar provocações como uma estratégia para ativar
suas redes digitais — onde, hoje, se reforça a divisão do país.
Sobre a participação de políticos evangélicos nesta inflexão, há alguns aspectos a serem considerados:
O
crescimento das igrejas evangélicas se deu, nas décadas anteriores,
pelo acolhimento do sofrimento existencial e social e na promessa de
prosperidade para aqueles que seguissem as leis da interpretação que
fazem do Evangelho. Durante a aliança com o governo Lula, o trabalho
social dessas igrejas cresceu, ocupando o campo da assistência social.
Não faz muito tempo, Edir Macedo publicou um artigo na “Folha de
S.Paulo”, numa edição de domingo, falando dos 40 anos da Igreja
Universal. No artigo, com a consciência do público leitor daquele
jornal, pontuou “o extraordinário trabalho social” da igreja ao longo
desses anos. Estava colocado ali um flerte claro com elites, uma espécie
de carta aos brasileiros, que pretendia posicionar seu projeto como uma
possível alternativa de atendimento aos pobres no lugar de políticas
sociais que sofrem de desmonte acelerado ao longo da ocupação de Temer
no cargo de presidente. O artigo era seguido de várias matérias em
outras páginas do jornal sobre o aniversário da trajetória dessa
empreitada que começou com o bispo, solitário, pregando numa praça do
Méier, subúrbio clássico da imaginação carioca.
As
ideias de acolhida do sofrimento e da potencial prosperidade para quem
aceita a versão do Evangelho foram se tornando expressões importantes da
Igreja Universal que, em paralelo, manteve sua maior característica: a
demarcação de espaço com outras religiões, alimentando a intolerância
religiosa e o repúdio à diversidade de gênero e comportamento sexual. De
fato, onde os políticos evangélicos ficam mais à vontade é no ataque às
diferenças, muito mais do que no acolhimento das pessoas vulneráveis.
Crivella, por exemplo, enche a boca para censurar uma exposição, que ele
julga ferir a infância, mas faz silêncio sobre crianças em situação de
rua — como escrevi na coluna anterior.
Agora, o
projeto de poder desses grupos religiosos chegou a um ponto nevrálgico,
com representantes no poder em esferas municipais, estaduais e federais.
Para não mostrar a fragilidade de seu projeto político, sem propostas
para reduzir desigualdades e desenvolvimento, a tentativa é de manter o
debate no lugar de conforto para o seu discurso. “Tatuagem é de Deus?”,
de 2011, é um dos textos mais lidos de Macedo, em que ataca quem tem
tatuagens no corpo. Ao longo dos últimos anos, a igreja envolveu em
torno de si uma classe média urbana, que vive a interação no espaço
público buscando que ele tenha a sua cara e seus valores para confirmar a
promessa de protagonismo dentro da sociedade. A demarcação de espaço
com quem usa tatuagem é para impedir a interação dessa classe média
evangélica com outros comportamentos. O espaço público seria apenas para
conquista, sem encontro com as diferenças.
Alimentar
a energia conservadora e de conflito com as diferenças não é só uma
visão obscurantista. Ao abandonar um caminho progressista de ação
social, os grupos evangélicos políticos flertam com grupos reacionários,
racistas e autoritários para conseguir manter sua classe média
gravitando em torno de seus valores e aumentar sua força política no
meio da crise. Querer controlar o espaço público é chave para impedir a
interação com as diferenças na sociedade. Toda vez que existe essa
interação, o discurso do bispo se enfraquece. A arte e a cultura se
tornam cada vez mais espaços de expressões da diferença no país. Eis uma
das razões dos ataques.
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