SERGIO RODRIGUES
A propósito da aposentadoria oficial de um dos maiores jogadores brasileiros da história, deixo aqui (em português) o artigo que escrevi em meados do ano passado por encomenda da revista esportiva francesa "So Foot", para sua bela edição especial em homenagem ao magnífico dentuço:
Ronaldinho Gaúcho foi um jogador tão grande que sua decadência precoce – iniciada na Copa do Mundo de 2006, quando ele tinha 26 anos – está condenada a ser um enigma eternamente incômodo para os fãs de futebol.
Com seus dentes salientes e a bandana que lhe dava um ar de bruxo, ele chegou ao Mundial da Alemanha como a estrela mais brilhante no céu. Vinha de uma série de atuações espantosas no Barcelona, com direito ao título de melhor jogador do mundo por dois anos consecutivos.
Muitos o viam como o último dos gênios brasileiros – não só o mais recente mas o último mesmo, o derradeiro. Essa ideia se baseava em seu repertório imenso de recursos, um compêndio de tudo o que, ao longo da história, fora produzido de melhor pela inventiva escola verde-amarela.
Dribles, lançamentos, chutes com efeito, visão de jogo, gols, velocidade, vigor físico, malabarismo: o homem parecia (como hoje é moda dizer de Messi) um ET. Quem o definiu melhor não foi um jornalista esportivo, mas um crítico cultural, José Miguel Wisnik: ele seria “o ápice maneirista de todos os traços estilísticos do futebol brasileiro”. Um jogador pós-moderno especializado em citar os mestres do passado. Todos os mestres do passado.
Será injusto cobrar de um jogador assim a manutenção, por anos a fio, de seu brilho intenso, uma vez que a intensidade pode ser fruto da concentração no tempo? Talvez sim, mas o torcedor não é justo. O fato é que a esperada explosão de Ronaldinho em 2006 não aconteceu. Com o restante da seleção brasileira, ele implodiu na Alemanha. O time foi eliminado com justiça pela França.
O fiasco não seria grave se o maior jogador de sua geração tivesse voltado a ofuscar o mundo nos meses e anos seguintes. Mas isso também não ocorreu. Ronaldinho não virou um jogador mediano, o que para um talento tão imenso seria impossível. Mas ficou menos competitivo, passou a exibir um brilho intermitente e nunca mais repetiu suas atuações de 2004 e 2005.
Com uma exceção: houve uma partida mágica em que repetiu, sim. Na noite de 27 de julho de 2011, um Ronaldinho Gaúcho de 31 anos foi tão grande quanto havia sido no Barcelona. Os torcedores europeus não viram o jogo, disputado na cidade de Santos (berço futebolístico de Pelé e Neymar) pelo Campeonato Brasileiro.
Compreender o que aconteceu naquele Santos x Flamengo, vencido de 5 a 4 pela equipe visitante, pode jogar luz sobre o enigma Ronaldinho. Vindo de um período apagado no Milan, onde acabara no banco de reservas, o craque dentuço que era a estrela do Flamengo enfrentava pela primeira vez um menino de 19 anos destinado a ser seu sucessor na galeria dos grandes craques brasileiros.
Será que a presença de Neymar no time adversário reacendeu os brios de um artista que andava enjoado da glória, levando-o a jogar com um apetite que não demonstrava havia anos? Não se pode garantir. O que sabemos é que os dois protagonizaram naquela noite a mais espetacular partida do Campeonato Brasileiro em muitos anos, talvez décadas.
Neymar fez dois gols, dos quais um foi uma obra-prima distinguida pela Fifa no fim do ano com o Prêmio Puskas. O Santos, então campeão da Libertadores da América, chegou a abrir 3 a 0 no placar. A incrível reação do Flamengo foi liderada por Ronaldinho, claro. O homem não se limitou a marcar três vezes, uma delas em ardilosa cobrança de falta sob a barreira. Soltava faíscas no gramado.
Foi uma partida que, mal terminou, já tinha virado lenda. O que houve ali foi uma passagem de bastão. Neymar perdeu o jogo, mas seguiu seu caminho e ficou cada vez maior, como era a ordem natural das coisas. Ronaldinho, vitorioso, pôde ir sumindo tranquilamente no horizonte, rumo à eternidade.
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