sérgio rodrigues
Haverá
algo em comum entre a polêmica em torno de um verso do Chico Buarque e a
discussão sobre o nazismo ser ou não ser "de esquerda"? Digo, algo além
do fato de serem tais tópicos ervas daninhas cognitivas que vicejaram
recentemente na internet, esse imenso jardim botânico de mato?
É
difícil falar do contemporâneo, do agora. Às vezes gosto de fazer um
exercício de imaginação: que elementos destacaria um escritor do futuro
que quisesse reconstituir a atmosfera cultural do nosso tempo?
A
maior mágica da ficção é a capacidade de criar um universo com três
varetas, dois palmos de tecido e um pedaço de barbante. Mais do que
possível ou desejável, essa miniaturização é obrigatória.
O
uso de poucos elementos escolhidos com arte está na base da criação de
mundos imaginários. O mundo real é vasto e tumultuoso demais para fazer
sentido.
Ao
ser tratado como "de época", o presente absurdo em que estamos
mergulhados, com o nariz grudado demais na tela para discernir o plano
geral da obra, pode revelar linhas de força interessantes.
Desconfio
que uma delas, segundo aquele ficcionista ficcional que escreve seu
romance histórico em, digamos, 2117, seja a alarmante perda de foco que a
comunicação em rede trouxe aos nossos papos.
Não
se trata de fazer o elogio nostálgico da velha comunicação de massa,
com sua via de mão única entre emissor e receptor, vista hoje –com
razão– como pouco democrática.
No
entanto, passou da hora de dar por encerrado o oba-oba que marcou os
primeiros anos do século 21, com sua crença ingênua no voluntarismo
amador como produtor dos conteúdos necessários ao aprimoramento da vida
no planeta.
É
importante reconhecer que a passagem do vertical para o horizontal, do
concerto estruturado de vozes "eleitas" para o zunzum indistinto das
multidões, trouxe novos problemas e desafios cascudos.
A
discussão pautada por redes sociais e caixas de comentários tende a ser
filistina e infantil. Pegou a deixa dos estudos culturais e, barateando
um pouco mais o que nunca foi tão caro, acha que a arte se resume ao
conteúdo sociológico excretado involuntariamente por um "lugar de fala".
Essa
é a parte do filistinismo, da insensibilidade ao que a arte tem de
propriamente artístico. O infantilismo aparece nas "lacrações" que vêm
em seguida. E tome de "ai, que decepção, Chico!"
Além
de filistina e infantil, a discussão pautada por redes sociais e caixas
de comentários sabe ser bizantina e desonesta. Dá importância descabida
a filigranas tiradas de seu contexto histórico –"oh, a palavra
socialismo está embutida na palavra nazismo!"– em nome de um "debate
ideológico" que de debate não tem nada.
Nosso
escritor do século 22 é um artista sério e não quer atribuir nenhum
desses problemas à falta de caráter ou de inteligência deste ou daquele
personagem. Por temperamento, acha que a maioria da humanidade tem as
melhores intenções.
Sabe,
porém, que o tal Zeitgeist, o poderoso Espírito do Tempo, leva tudo de
roldão. Não faz ideia de como um país esfolado, rachado, exausto e
desprovido de um mínimo projeto de nação vai chegar a um acordo consigo
mesmo em meio a uma barulheira dessas.
Tentará pensar em algo quando for a hora de escrever esse capítulo.
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