Fred Coelho
Só existe
literatura porque existem leitores. A mão da escrita atua como extensão
de um olho que lê e forja mundos internos a partir de suas experiências.
Ao lermos, ativamos a memórias das coisas que atravessam nossos
sentidos. Somos leitores diários das escritas que produzimos
constantemente com nossos corpos. Por isso lemos gestos, cheiros,
superfícies, fragmentos, percursos, cidades. No caso da literatura,
porém, o que lemos são fabulações que ampliam as múltiplas dimensões do
que vivemos. Por ser lida dentro da vida, toda literatura, no limite, é
política.
Uma matéria recente na “Folha de S. Paulo” apresentou o tema dos “leitores sensíveis”, isto é, leitores representantes de minorias cuja missão é apontar para as editoras marcas narrativas em manuscritos que, de alguma forma, prejudiquem tais grupos. Tendo como lastro crítico experiências pessoais de opressão, sexismo, racismo e outros preconceitos, tais leitores indicam às editoras os perigos que um livro de conteúdo dito inapropriado pode apresentar. Neste caso, leitores tornam-se especialistas em identidades e suas representações, zelando por algum tipo de qualidade social que, no limite, é imputado aos escritores.
Tal procedimento indica o estágio avançado de mercadoria que o “produto livro” atinge atualmente no mundo e no Brasil. A grosso modo, editoras se protegem de algum tipo de boicote ou de ver seu nome comercial ser atingido por iniciativas similares. Talvez um ponto importante para se pensar, além da questão do livro enquanto mercadoria com “selo de qualidade identitária” (um futuro adesivo nas capas dizendo “livro livre de preconceitos de qualquer ordem”?), é o fato de estarmos ajustando nossa perspectiva de leitura — e, por consequência, de escrita — a premissas identitárias que, talvez, não sejam premissas literárias. A professora e pesquisadora da Uerj Giovanna Dealtry, em texto nas redes sobre o assunto, foi direto no ponto: a diversidade não será garantida por controles de mercadorias contra processos judiciais, mas sim com a ampliação necessária de vozes e diversidades dentre escritores. Se contemplarmos apenas leitores em suas experiências pessoais, escritores serão funcionários narrativos da linguagem depurada.
O ponto aqui não é, óbvio, afirmar que não existem péssimas representações de minorias em nossa literatura (e sociedade), mas sim afirmar que a representação literária do outro não é uma simples superfície de interpretação do real. A literatura, como todas as artes, precisa por em tensão as diversas camadas de uma sociedade desigual, sabendo ser transgressora muito mais pela forma que diz do que propriamente pelo que diz. Hoje, e cada vez mais, cabe ao escritor medir exatamente a medida entre o impacto e a consciência que deseja com seus textos.
E o que é ser sensível nesse contexto? Sensível ao preconceito, por certo. Mas até que ponto negá-los colabora para uma literatura que amplie o poder fabulador e até mesmo crítico dos leitores?
Escritores e críticos de todos os gêneros e cores passaram o século XX defendendo com unhas e dentes a autonomia da literatura, do texto, da escrita, como garantia fundamental de um espaço de liberdade da cultura e do pensamento. O fascínio pela literatura, mesmo com seus erros e abismos, não esmaece frente ao surgimento de textos em que claramente o preconceito ocorre. E isso, longe de ser purismo, é justamente acreditar no contraditório que habita todos nós.
E aqui, no Brasil atual, cujo histórico de leitura ainda é baixo comparado a outros países? A ação de editoras que estão selecionando “leitores sensíveis” pode ser uma resposta ao tipo de “leitores comuns” que temos? Ou, e aí sim reside o dilema, ao tipo de escritores que temos? E se for o caso de termos cada vez mais escritores que perdem a linha do respeito contra minorias, qual o mundo que eles habitam, os valores que consomem, as ideias que circulam ao seu redor? Aliás, que tipo de leitor é o escritor contemporâneo?
Quando autores constroem personagens, seja de que tipo social, ideológico ou biológico forem, tudo será filtrado pela qualidade dessa construção. Bons escritores conseguem passar aos leitores as contradições, perversões e qualidades dessas personagens. O mal e o bem, a fúria e a gentileza, o amor e a morte, tudo isso deve ser urdido em palavras de um jeito que não resida dúvida sobre quem fala naquela história. E quem fala é a literatura. Inspiradora, monstruosa, preconceituosa, desafiadora, reveladora do que temos de melhor e pior — seja como escritores, seja como leitores. Um leitor sensível às opressões e preconceitos saberá até onde uma escrita conduz tais situações em prol de uma fabulação.
No fim das contas, todo leitor é sensível. E se aquilo que dói em sua vida está no livro lido, devemos pensar quem está nos machucando: a personagem? O narrador? O autor? A literatura? A história? Talvez, para mudarmos a literatura que lemos, precisamos, antes dos livros, mudar o mundo.
Uma matéria recente na “Folha de S. Paulo” apresentou o tema dos “leitores sensíveis”, isto é, leitores representantes de minorias cuja missão é apontar para as editoras marcas narrativas em manuscritos que, de alguma forma, prejudiquem tais grupos. Tendo como lastro crítico experiências pessoais de opressão, sexismo, racismo e outros preconceitos, tais leitores indicam às editoras os perigos que um livro de conteúdo dito inapropriado pode apresentar. Neste caso, leitores tornam-se especialistas em identidades e suas representações, zelando por algum tipo de qualidade social que, no limite, é imputado aos escritores.
Tal procedimento indica o estágio avançado de mercadoria que o “produto livro” atinge atualmente no mundo e no Brasil. A grosso modo, editoras se protegem de algum tipo de boicote ou de ver seu nome comercial ser atingido por iniciativas similares. Talvez um ponto importante para se pensar, além da questão do livro enquanto mercadoria com “selo de qualidade identitária” (um futuro adesivo nas capas dizendo “livro livre de preconceitos de qualquer ordem”?), é o fato de estarmos ajustando nossa perspectiva de leitura — e, por consequência, de escrita — a premissas identitárias que, talvez, não sejam premissas literárias. A professora e pesquisadora da Uerj Giovanna Dealtry, em texto nas redes sobre o assunto, foi direto no ponto: a diversidade não será garantida por controles de mercadorias contra processos judiciais, mas sim com a ampliação necessária de vozes e diversidades dentre escritores. Se contemplarmos apenas leitores em suas experiências pessoais, escritores serão funcionários narrativos da linguagem depurada.
O ponto aqui não é, óbvio, afirmar que não existem péssimas representações de minorias em nossa literatura (e sociedade), mas sim afirmar que a representação literária do outro não é uma simples superfície de interpretação do real. A literatura, como todas as artes, precisa por em tensão as diversas camadas de uma sociedade desigual, sabendo ser transgressora muito mais pela forma que diz do que propriamente pelo que diz. Hoje, e cada vez mais, cabe ao escritor medir exatamente a medida entre o impacto e a consciência que deseja com seus textos.
E o que é ser sensível nesse contexto? Sensível ao preconceito, por certo. Mas até que ponto negá-los colabora para uma literatura que amplie o poder fabulador e até mesmo crítico dos leitores?
Escritores e críticos de todos os gêneros e cores passaram o século XX defendendo com unhas e dentes a autonomia da literatura, do texto, da escrita, como garantia fundamental de um espaço de liberdade da cultura e do pensamento. O fascínio pela literatura, mesmo com seus erros e abismos, não esmaece frente ao surgimento de textos em que claramente o preconceito ocorre. E isso, longe de ser purismo, é justamente acreditar no contraditório que habita todos nós.
E aqui, no Brasil atual, cujo histórico de leitura ainda é baixo comparado a outros países? A ação de editoras que estão selecionando “leitores sensíveis” pode ser uma resposta ao tipo de “leitores comuns” que temos? Ou, e aí sim reside o dilema, ao tipo de escritores que temos? E se for o caso de termos cada vez mais escritores que perdem a linha do respeito contra minorias, qual o mundo que eles habitam, os valores que consomem, as ideias que circulam ao seu redor? Aliás, que tipo de leitor é o escritor contemporâneo?
Quando autores constroem personagens, seja de que tipo social, ideológico ou biológico forem, tudo será filtrado pela qualidade dessa construção. Bons escritores conseguem passar aos leitores as contradições, perversões e qualidades dessas personagens. O mal e o bem, a fúria e a gentileza, o amor e a morte, tudo isso deve ser urdido em palavras de um jeito que não resida dúvida sobre quem fala naquela história. E quem fala é a literatura. Inspiradora, monstruosa, preconceituosa, desafiadora, reveladora do que temos de melhor e pior — seja como escritores, seja como leitores. Um leitor sensível às opressões e preconceitos saberá até onde uma escrita conduz tais situações em prol de uma fabulação.
No fim das contas, todo leitor é sensível. E se aquilo que dói em sua vida está no livro lido, devemos pensar quem está nos machucando: a personagem? O narrador? O autor? A literatura? A história? Talvez, para mudarmos a literatura que lemos, precisamos, antes dos livros, mudar o mundo.
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