Arnaldo Bloch
Acordo.
Mais uma manhã de crise. No estado. Na cidade. No país. Para onde eu
olho, vejo crise. Todos foram roubados e estão com os bolsos vazios
matutando por aí. Violência urbana é pouco. Violência institucional é o
bicho. Roubaram os impostos de toda a gente. Roubaram nas obras.
Roubaram as sobras. Roubaram as passagens de ônibus. Roubaram da
cultura, das escolas, dos hospitais. E ergueram um inferno à luz do dia.
Os piores, como diz outro ditado, não são os que ladram. São os que, calados, mordem e enfiam as patas nas goelas para roubar até a comida que já se engoliu. E, junto, roubam a coragem, o espírito, a arte e o ímpeto, agora débil, de construção da cidadania. Quem imaginaria que, já vão três décadas da redemocratização, depois de tudo pelo que se lutou, cairíamos, como uns patos depenados, neste fosso?
Fosse ele só econômico, seria justo olhar para a frente e imaginar que reformas, ideias, vontade política, visão, pactos entre poderes e sociedade (ainda existe isso?), lá adiante, seriam capazes de, sob novo leme, nos levar a um porto mais seguro. Mas é só parar para pensar um segundo: o leme, em que mãos? Chegamos a um ponto em que o retrocesso que nos carregou a tantas léguas da terra firme levou, junto, um continente de conquistas que pareciam asseguradas e, de repente, escoam na arrebentação.
Tudo que se balizou nas fundações de nossa nova democracia cada vez mais velha e menos plena está atolado no limbo da catástrofe ética/moral, e seus fios já não se conectam com uma massa crítica suficientemente forte para produzir, como deveria ser, um debate que integre a sociedade como um todo. E alimente, com sua riqueza e sua energia, uma real transformação.
Sob nova direção, as tripulações das naus executiva e legislativa permanecerão as mesmas e, dos passageiros, acorrentados em porões conjunturais, poucos terão alguma voz. A galé está à mercê dos algozes de sempre.
Ou alguém acredita que, se o presidente cair, seu substituto imediato (cansei de escrever nomes) irá se revelar um grande líder unificador e, quem sabe, alçar ao convés um ministério de notáveis para, num lance de bravo capitão, desfazer a lambança e levantar velas de grandeza altaneira?
Quem crê que uma nova aliança político-partidária, imbuída de renovados sentimentos cívicos (talvez com a ajuda de uma anistia geral e irrestrita), sustentará a travessia, abraçando as melhores plataformas e unindo-se a alguns iluminados (aos quais terá restado certa decência) que, como zumbis, erram pelos ralos das rampas e das esplanadas?
Mesmo assim, por falta de opção e por uma questão de sobrevivência, a maioria tenta se segurar à noção de que, se e quando o presidente cair, e o quanto antes isso ocorrer, estaremos em prontas condições de rearrumar a casa. É uma espera perplexa, exausta, envenenada pela sensação de que é inútil, neste momento, se manifestar como se deve: nas ruas.
Para que, se a inflação está baixa? Deixe estar, que “os outros” resolvem. Aí está a força-tarefa a zelar por nós. O procurador-geral está com a faca na boca e o queijo fatiadinho. É só ir servindo que a turma faz o resto. Ninguém perde por esperar: hoje, amanhã, semana que vem, ou até o Natal, todos os presos ainda renitentes delatarão, políticos, empresários, alguns magistrados, talvez até o próprio presidente, e o ex-presidente, e todos os presidentes, os senadores, os coronéis, os encarcerados, delatarão, e todos os mortos ressuscitarão numa espécie de apocalipse travestido em paraíso.
Com o que ficaremos quando acordarmos desse sonho abissal? O que se fará, até 2018, e depois de 2018, para curar a doença que corroeu o corpo da democracia antes de ela atingir a maturidade? Como dissipar esta nuvem, esta massa de ar empedrado que cismou de estacionar na encruzilhada com um jeito de coisa ruim que nunca mais vai sair? Qualquer olhar mais atento, um ligeiro desvio para o que está dentro da casa pode esfacelar, em segundos, os mais sinceros e otimistas vislumbres de esperança.
O que se pode esperar da geração que está no poder, e das novas que estão chegando? Como manter os olhos abertos e vigilantes e tentar separar joio de trigo quando tudo parece entrelaçado numa mesma teia povoada por criaturas soturnas? Como esperar que a pinguela da pinguela se mantenha de pé se, em quase todo espectro, vicejam ainda o sangue e a lama da grande espoliação?
Há quem tente povoar o deserto com um novo sonho: o de que virá algum grande gestor (ou gestora), líder que, através da negação da política (mas, certamente, não da ideologia), empunhando a varinha mágica da eficiência e a vassoura da objetividade, dará um fim a esta velharia.
Um mundo novo, em que cultura é desperdício, carnaval é o mal, indígenas são vagabundos, Amazônia dá um baita estacionamento, armas para todo mundo etc. Afinal, o parlamento vem avançando nessas matérias, e o Brasil... Ah, é uma tendência! Trump. Macri. Macron? Crise de representatividade. Reciclagem. Sei lá, mil coisas. É melhor deixar vir, e não descuidar do estoque de alho.
O GLOBO, julho 2017
Os piores, como diz outro ditado, não são os que ladram. São os que, calados, mordem e enfiam as patas nas goelas para roubar até a comida que já se engoliu. E, junto, roubam a coragem, o espírito, a arte e o ímpeto, agora débil, de construção da cidadania. Quem imaginaria que, já vão três décadas da redemocratização, depois de tudo pelo que se lutou, cairíamos, como uns patos depenados, neste fosso?
Fosse ele só econômico, seria justo olhar para a frente e imaginar que reformas, ideias, vontade política, visão, pactos entre poderes e sociedade (ainda existe isso?), lá adiante, seriam capazes de, sob novo leme, nos levar a um porto mais seguro. Mas é só parar para pensar um segundo: o leme, em que mãos? Chegamos a um ponto em que o retrocesso que nos carregou a tantas léguas da terra firme levou, junto, um continente de conquistas que pareciam asseguradas e, de repente, escoam na arrebentação.
Tudo que se balizou nas fundações de nossa nova democracia cada vez mais velha e menos plena está atolado no limbo da catástrofe ética/moral, e seus fios já não se conectam com uma massa crítica suficientemente forte para produzir, como deveria ser, um debate que integre a sociedade como um todo. E alimente, com sua riqueza e sua energia, uma real transformação.
Sob nova direção, as tripulações das naus executiva e legislativa permanecerão as mesmas e, dos passageiros, acorrentados em porões conjunturais, poucos terão alguma voz. A galé está à mercê dos algozes de sempre.
Ou alguém acredita que, se o presidente cair, seu substituto imediato (cansei de escrever nomes) irá se revelar um grande líder unificador e, quem sabe, alçar ao convés um ministério de notáveis para, num lance de bravo capitão, desfazer a lambança e levantar velas de grandeza altaneira?
Quem crê que uma nova aliança político-partidária, imbuída de renovados sentimentos cívicos (talvez com a ajuda de uma anistia geral e irrestrita), sustentará a travessia, abraçando as melhores plataformas e unindo-se a alguns iluminados (aos quais terá restado certa decência) que, como zumbis, erram pelos ralos das rampas e das esplanadas?
Mesmo assim, por falta de opção e por uma questão de sobrevivência, a maioria tenta se segurar à noção de que, se e quando o presidente cair, e o quanto antes isso ocorrer, estaremos em prontas condições de rearrumar a casa. É uma espera perplexa, exausta, envenenada pela sensação de que é inútil, neste momento, se manifestar como se deve: nas ruas.
Para que, se a inflação está baixa? Deixe estar, que “os outros” resolvem. Aí está a força-tarefa a zelar por nós. O procurador-geral está com a faca na boca e o queijo fatiadinho. É só ir servindo que a turma faz o resto. Ninguém perde por esperar: hoje, amanhã, semana que vem, ou até o Natal, todos os presos ainda renitentes delatarão, políticos, empresários, alguns magistrados, talvez até o próprio presidente, e o ex-presidente, e todos os presidentes, os senadores, os coronéis, os encarcerados, delatarão, e todos os mortos ressuscitarão numa espécie de apocalipse travestido em paraíso.
Com o que ficaremos quando acordarmos desse sonho abissal? O que se fará, até 2018, e depois de 2018, para curar a doença que corroeu o corpo da democracia antes de ela atingir a maturidade? Como dissipar esta nuvem, esta massa de ar empedrado que cismou de estacionar na encruzilhada com um jeito de coisa ruim que nunca mais vai sair? Qualquer olhar mais atento, um ligeiro desvio para o que está dentro da casa pode esfacelar, em segundos, os mais sinceros e otimistas vislumbres de esperança.
O que se pode esperar da geração que está no poder, e das novas que estão chegando? Como manter os olhos abertos e vigilantes e tentar separar joio de trigo quando tudo parece entrelaçado numa mesma teia povoada por criaturas soturnas? Como esperar que a pinguela da pinguela se mantenha de pé se, em quase todo espectro, vicejam ainda o sangue e a lama da grande espoliação?
Há quem tente povoar o deserto com um novo sonho: o de que virá algum grande gestor (ou gestora), líder que, através da negação da política (mas, certamente, não da ideologia), empunhando a varinha mágica da eficiência e a vassoura da objetividade, dará um fim a esta velharia.
Um mundo novo, em que cultura é desperdício, carnaval é o mal, indígenas são vagabundos, Amazônia dá um baita estacionamento, armas para todo mundo etc. Afinal, o parlamento vem avançando nessas matérias, e o Brasil... Ah, é uma tendência! Trump. Macri. Macron? Crise de representatividade. Reciclagem. Sei lá, mil coisas. É melhor deixar vir, e não descuidar do estoque de alho.
O GLOBO, julho 2017
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