Washington Fajardo
O Rio de Janeiro sempre sofrerá com chuvas. É a nossa neve. Mas isso não quer dizer que não possamos viver com ela. Existem ações de curto prazo para lidar com eventos extremos. E necessários planos de maior tempo de implementação. Ambos não podem ser negligenciados.
A ação da natureza destrói teses sobre planejamento urbano e expõe incompetência administrativa. Se mais observadores fôssemos da nossa própria realidade, mais soluções poderíamos encontrar para enfrentar a convivência com esses fenômenos. Muitas vezes importamos modelos e desconsideramos o fator humano.
A cidade que nos cerca é uma construção de acúmulo histórico, que nos ilude com seu devir. Queríamos ser europeus, depois tentamos ser norte-americanos, e esses desejos por modelos importados de cidade, às vezes mais, às vezes menos sensíveis ao nosso clima, criaram modos de construir, de pavimentar, de harmonizar urbanização e natureza.
Seguindo tendência mundial, e já com certo atraso, visto o histórico de fatalidades, a prefeitura do Rio construiu e preparou um Centro de Operações dedicado a monitorar a cidade e fornecer dados para a tomada de decisões. Tão importante quanto a tecnologia de ponta é a mesa onde se sentam os responsáveis pela gestão. Esse contato direto entre técnicos e líderes tem a função de acelerar decisões e criar ação. Vidas podem ser perdidas numa omissão da administração pública. Informação sobre eventos meteorológicos precisa ser compartilhada com a população. São fatos científicos que precisam de fatos administrativos. Ignorá-los é obscurantismo. É ameaça à segurança.
As chuvas dos últimos dois dias mostraram claramente que não há plano de resiliência ou tecnologia de cidade inteligente que resista a gente burra.
Por isso termos como resiliência, smart city, big data, economia circular, que tem função clara de democratizar conhecimentos sobre sustentabilidade para o grande público, me parece que muitas vezes criam muito marketing e pouco senso crítico sobre sua importância e a necessidade de manter compromisso com práticas cotidianas. E, pior, parece que viraram conteúdos político-partidários. Assim refutar um protocolo de ação para uma metrópole tropical como o Rio vira birra de um governo contra o outro. Sair do Acordo de Paris vira uma mesquinharia da administração Trump contra o governo Obama.
Aspectos científicos sobre o mundo atual podem ser deturpados ao bel prazer da onda conservadora atual. Tenho então um desejo a confessar. Anseio pela recusa à lei da gravitação universal. Poder flutuar pelo ar deve ser um grande prazer. Poderia votar em quem conseguisse revogar essa lei imposta pelo maldito Newton. O problema será a Terra caindo no Sol, os oceanos dissolvendo-se no espaço sideral e o ar escapando da atmosfera, enquanto a Lua cai sobre nós. Mesmo assim, talvez valha poder descolar-se do chão por alguns segundos.
O curioso é que esse desejo mórbido pela ilusão, por uma mística capaz de inventar outras realidades parece ser uma marca da nossa época. Negar mudanças climáticas, não usar o espaço de operações quando urgente e necessário, investir em campeões nacionais, dar amplo espaço e proteção à Joesley Batista, colocar um Cristo Redentor de posto de gasolina de beira de estrada na Orla de Copacabana, são na verdade, uma mesma ordem de loucura.
Voltando à ciência, a China, de clima temperado, consumiu em três anos, de 2011 a 2013, mais cimento que os Estados Unidos em todo o século XX, segundo a agência científica estado-unidense USGS. Em 2016, mais de 300 pessoas morreram em enchentes na bacia do rio Yangtze. Não é a toa o compromisso do governo chinês com a agenda das mudanças climáticas.
De todas as grandes metrópoles tropicais do futuro, nenhuma delas possui uma floresta dentro da sua mancha urbana. Portanto deveria o Rio ser lugar de invenção de soluções para o mundo e não da simples importação de modelos.
O reflorestamento, a arborização urbana, os tetos verdes têm função estratégica de retardar a vazão da chuva. Quanto mais a água acessa diretamente o solo impermeável maior a necessidade de grandes redes de drenagem. Tornar mais permeáveis os solos, as calçadas, as ruas, assim como renaturalizar leitos fluviais e proteger corpos hídricos são ações fundamentais. E planejar a escala territorial maior, a partir das bacias hidrográficas, controlando expansões e ocupações indesejáveis, como em direção às Vargens e Guaratiba, por exemplo. Essas são decisões que também não podem ser iludidas.
A chuva é nossa companheira fatal, castigando os mais vulneráveis e mais pobres. Diminuir sua importância, fazer pouco caso, é uma fuga da razã
O GLOBO, JUNHO 2017
A ação da natureza destrói teses sobre planejamento urbano e expõe incompetência administrativa. Se mais observadores fôssemos da nossa própria realidade, mais soluções poderíamos encontrar para enfrentar a convivência com esses fenômenos. Muitas vezes importamos modelos e desconsideramos o fator humano.
A cidade que nos cerca é uma construção de acúmulo histórico, que nos ilude com seu devir. Queríamos ser europeus, depois tentamos ser norte-americanos, e esses desejos por modelos importados de cidade, às vezes mais, às vezes menos sensíveis ao nosso clima, criaram modos de construir, de pavimentar, de harmonizar urbanização e natureza.
Seguindo tendência mundial, e já com certo atraso, visto o histórico de fatalidades, a prefeitura do Rio construiu e preparou um Centro de Operações dedicado a monitorar a cidade e fornecer dados para a tomada de decisões. Tão importante quanto a tecnologia de ponta é a mesa onde se sentam os responsáveis pela gestão. Esse contato direto entre técnicos e líderes tem a função de acelerar decisões e criar ação. Vidas podem ser perdidas numa omissão da administração pública. Informação sobre eventos meteorológicos precisa ser compartilhada com a população. São fatos científicos que precisam de fatos administrativos. Ignorá-los é obscurantismo. É ameaça à segurança.
As chuvas dos últimos dois dias mostraram claramente que não há plano de resiliência ou tecnologia de cidade inteligente que resista a gente burra.
Por isso termos como resiliência, smart city, big data, economia circular, que tem função clara de democratizar conhecimentos sobre sustentabilidade para o grande público, me parece que muitas vezes criam muito marketing e pouco senso crítico sobre sua importância e a necessidade de manter compromisso com práticas cotidianas. E, pior, parece que viraram conteúdos político-partidários. Assim refutar um protocolo de ação para uma metrópole tropical como o Rio vira birra de um governo contra o outro. Sair do Acordo de Paris vira uma mesquinharia da administração Trump contra o governo Obama.
Aspectos científicos sobre o mundo atual podem ser deturpados ao bel prazer da onda conservadora atual. Tenho então um desejo a confessar. Anseio pela recusa à lei da gravitação universal. Poder flutuar pelo ar deve ser um grande prazer. Poderia votar em quem conseguisse revogar essa lei imposta pelo maldito Newton. O problema será a Terra caindo no Sol, os oceanos dissolvendo-se no espaço sideral e o ar escapando da atmosfera, enquanto a Lua cai sobre nós. Mesmo assim, talvez valha poder descolar-se do chão por alguns segundos.
O curioso é que esse desejo mórbido pela ilusão, por uma mística capaz de inventar outras realidades parece ser uma marca da nossa época. Negar mudanças climáticas, não usar o espaço de operações quando urgente e necessário, investir em campeões nacionais, dar amplo espaço e proteção à Joesley Batista, colocar um Cristo Redentor de posto de gasolina de beira de estrada na Orla de Copacabana, são na verdade, uma mesma ordem de loucura.
Voltando à ciência, a China, de clima temperado, consumiu em três anos, de 2011 a 2013, mais cimento que os Estados Unidos em todo o século XX, segundo a agência científica estado-unidense USGS. Em 2016, mais de 300 pessoas morreram em enchentes na bacia do rio Yangtze. Não é a toa o compromisso do governo chinês com a agenda das mudanças climáticas.
De todas as grandes metrópoles tropicais do futuro, nenhuma delas possui uma floresta dentro da sua mancha urbana. Portanto deveria o Rio ser lugar de invenção de soluções para o mundo e não da simples importação de modelos.
O reflorestamento, a arborização urbana, os tetos verdes têm função estratégica de retardar a vazão da chuva. Quanto mais a água acessa diretamente o solo impermeável maior a necessidade de grandes redes de drenagem. Tornar mais permeáveis os solos, as calçadas, as ruas, assim como renaturalizar leitos fluviais e proteger corpos hídricos são ações fundamentais. E planejar a escala territorial maior, a partir das bacias hidrográficas, controlando expansões e ocupações indesejáveis, como em direção às Vargens e Guaratiba, por exemplo. Essas são decisões que também não podem ser iludidas.
A chuva é nossa companheira fatal, castigando os mais vulneráveis e mais pobres. Diminuir sua importância, fazer pouco caso, é uma fuga da razã
O GLOBO, JUNHO 2017
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