Marcus Faustini
Não surpreende que o Rio esteja passando por um aumento da violência. O
esvaziamento de políticas sociais e o abandono de um pensamento estratégico na
política de segurança devem estar no centro de qualquer entendimento que encare
a questão com seriedade. Negar-se essa perspectiva é se entregar a uma das
piores marcas de nossa História: a ideia de Rio selvagem.
Depois de dois anos desempregado, um pai sumiu de casa, deixando esposa e três filhos. A família foi pra fronteira da fome, a quantidade de novas exigências no Bolsa Família impediu o acesso. A solidariedade dos vizinhos os manteve vivos. Seu filho do meio largou a escola, o mais novo vivia em casa; não demorou, o mais velho entrou para o tráfico. Pôs dinheiro em casa, ocupou o lugar do pai. Tudo aconteceu rápido. Logo foi recrutado para uma boca de fumo nova, próxima à escola da região. Buscando maior rentabilidade em tempos de crise, as bocas precisam ficar em pontos mais visíveis. Ser recrutado para participar de seu primeiro assalto não foi surpresa. As conversas com quem dividia a atividade já indicavam que esse dia estava próximo. O tráfico precisava de mais dinheiro — para manter a rede de pessoas que possui e para toda a trama de vínculos e subornos necessários para o negócio existir. Além da necessidade de armas mais potentes para inibir invasão de outros grupos. No assalto, matou e morreu na tentativa de roubar um caminhão.
As manchetes no dia seguinte não perdoaram: Rio de Janeiro selvagem! Os cliques na notícia encorajaram mais uma série de reportagens na mesma linha. Logo a repercussão ganha o embate das redes sociais. Um sociólogo, respeitado no assunto, tentou explicar os acontecimentos a partir da perspectiva de que não é possível encarar mais esse problema apenas pela lógica da repressão. Mas é tarde: a ideia de uma política de segurança que não tenha o confronto como centralidade está desacreditada. Um fanático escreve num post: já tiveram a chance de vocês com as UPPs, agora é do nosso jeito. Bandido tem que ser exterminado do convívio da sociedade! Likes infinitos por dias na postagem foram a senha para políticos que buscam se manter nas esferas de poder surfarem na onda e assumirem a mesma postura.
Essa história acima não é nova, é um perverso clichê que insiste em ser real. Estamos de volta ao Rio selvagem, quem vive e pensa a cidade conhece de perto. Já se fala que estamos de volta aos anos 1990, e desta vez com chances de ser pior pela descrença criada com o fracasso da política de segurança. Outros dizem que o problema é da classe política, e outros se guardam no tranquilo lugar de afirmar que nada cessará sem o fim do sistema capitalista. Desta forma, vai se consolidando o espaço que fortalece a ideia de Rio selvagem como única saída. E o que ele é?
O Rio selvagem é a nossa resposta ao fenômeno da violência apenas com guerra aos seus efeitos, é deixarmos de pensar as desigualdades. O Rio selvagem é voltar a acreditar que, para o subúrbio, as periferias e as favelas, a única opção é a presença da polícia e fechar os olhos para a precarização dos outros serviços públicos que fazem direitos estarem presentes. O aumento da violência num momento de crise é uma das provas de que a dimensão social tem peso grande em sua existência. Além disso, mostra que, desacompanhada de outras políticas, a ocupação policial em regiões populares, mantendo a lógica de confrontos, é ceifadora de vidas de todos os lados e mantém tudo como está.
A chegada de uma ajuda federal em curto prazo para a contenção em áreas centrais e nobres tende a ser apenas mais uma ação que reforçará o Rio selvagem — aquele onde existem regiões que são ilhas da fantasia enquanto outras são sacrificadas. Sem a dimensão social, sem pensar a cidade e sem transparência da política de segurança, teremos o mesmo efeito que já conhecemos em outros momentos. Para não se entregar a essa lógica, é preciso pensar a cidade também a partir de suas regiões, e não se entregar ao discurso que pede reação sem inteligência.
Não faltam instrumentos para isso. Dados do Instituto de Segurança Pública e de aplicativos como o Fogo Cruzado mostram o acompanhamento regional com relatórios diários. Falta cruzamento com dados da educação e das políticas sociais, como afirma Silvia Ramos. Grande parte dos 480.000 empregos que o Estado do Rio de Janeiro perdeu nos últimos 27 meses está concentrada na cidade, como aponta Mauro Osório. Essas duas falas acima são exemplos das dimensões sociais que alimentam a violência. A participação do governo federal na saída do Rio é decisiva, mas ela não pode ser traduzida apenas com a presença da polícia. Sem encarar essas dimensões, nos entregaremos ao Rio selvagem. É duro defender algo mais complexo num momento de medo, mas precisamos ter a coragem de ser contra o Rio selvagem.
Depois de dois anos desempregado, um pai sumiu de casa, deixando esposa e três filhos. A família foi pra fronteira da fome, a quantidade de novas exigências no Bolsa Família impediu o acesso. A solidariedade dos vizinhos os manteve vivos. Seu filho do meio largou a escola, o mais novo vivia em casa; não demorou, o mais velho entrou para o tráfico. Pôs dinheiro em casa, ocupou o lugar do pai. Tudo aconteceu rápido. Logo foi recrutado para uma boca de fumo nova, próxima à escola da região. Buscando maior rentabilidade em tempos de crise, as bocas precisam ficar em pontos mais visíveis. Ser recrutado para participar de seu primeiro assalto não foi surpresa. As conversas com quem dividia a atividade já indicavam que esse dia estava próximo. O tráfico precisava de mais dinheiro — para manter a rede de pessoas que possui e para toda a trama de vínculos e subornos necessários para o negócio existir. Além da necessidade de armas mais potentes para inibir invasão de outros grupos. No assalto, matou e morreu na tentativa de roubar um caminhão.
As manchetes no dia seguinte não perdoaram: Rio de Janeiro selvagem! Os cliques na notícia encorajaram mais uma série de reportagens na mesma linha. Logo a repercussão ganha o embate das redes sociais. Um sociólogo, respeitado no assunto, tentou explicar os acontecimentos a partir da perspectiva de que não é possível encarar mais esse problema apenas pela lógica da repressão. Mas é tarde: a ideia de uma política de segurança que não tenha o confronto como centralidade está desacreditada. Um fanático escreve num post: já tiveram a chance de vocês com as UPPs, agora é do nosso jeito. Bandido tem que ser exterminado do convívio da sociedade! Likes infinitos por dias na postagem foram a senha para políticos que buscam se manter nas esferas de poder surfarem na onda e assumirem a mesma postura.
Essa história acima não é nova, é um perverso clichê que insiste em ser real. Estamos de volta ao Rio selvagem, quem vive e pensa a cidade conhece de perto. Já se fala que estamos de volta aos anos 1990, e desta vez com chances de ser pior pela descrença criada com o fracasso da política de segurança. Outros dizem que o problema é da classe política, e outros se guardam no tranquilo lugar de afirmar que nada cessará sem o fim do sistema capitalista. Desta forma, vai se consolidando o espaço que fortalece a ideia de Rio selvagem como única saída. E o que ele é?
O Rio selvagem é a nossa resposta ao fenômeno da violência apenas com guerra aos seus efeitos, é deixarmos de pensar as desigualdades. O Rio selvagem é voltar a acreditar que, para o subúrbio, as periferias e as favelas, a única opção é a presença da polícia e fechar os olhos para a precarização dos outros serviços públicos que fazem direitos estarem presentes. O aumento da violência num momento de crise é uma das provas de que a dimensão social tem peso grande em sua existência. Além disso, mostra que, desacompanhada de outras políticas, a ocupação policial em regiões populares, mantendo a lógica de confrontos, é ceifadora de vidas de todos os lados e mantém tudo como está.
A chegada de uma ajuda federal em curto prazo para a contenção em áreas centrais e nobres tende a ser apenas mais uma ação que reforçará o Rio selvagem — aquele onde existem regiões que são ilhas da fantasia enquanto outras são sacrificadas. Sem a dimensão social, sem pensar a cidade e sem transparência da política de segurança, teremos o mesmo efeito que já conhecemos em outros momentos. Para não se entregar a essa lógica, é preciso pensar a cidade também a partir de suas regiões, e não se entregar ao discurso que pede reação sem inteligência.
Não faltam instrumentos para isso. Dados do Instituto de Segurança Pública e de aplicativos como o Fogo Cruzado mostram o acompanhamento regional com relatórios diários. Falta cruzamento com dados da educação e das políticas sociais, como afirma Silvia Ramos. Grande parte dos 480.000 empregos que o Estado do Rio de Janeiro perdeu nos últimos 27 meses está concentrada na cidade, como aponta Mauro Osório. Essas duas falas acima são exemplos das dimensões sociais que alimentam a violência. A participação do governo federal na saída do Rio é decisiva, mas ela não pode ser traduzida apenas com a presença da polícia. Sem encarar essas dimensões, nos entregaremos ao Rio selvagem. É duro defender algo mais complexo num momento de medo, mas precisamos ter a coragem de ser contra o Rio selvagem.
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