Washington Farjado
A
 marreta descrevia um arco silencioso no espaço interrompido pelo som 
seco, ocre, do concreto que se partia. O cimento do chão vibrava e 
craquelava, abrindo-se a cada golpe.
Dois esforços
 são empenhados na marreta. Primeiro erguê-la. Impõe-se força de 
arranque em que os bíceps realizam um espasmo vigoroso. Uma grande 
energia corre dos ombros aos braços e aos pulsos. As mãos firmam-se no 
cabo de madeira umedecendo-se pela intensa compressão. A maça é erguida.
 O único som é a respiração forte do homem a manuseá-la. Inicia então 
trajetória ascendente para cima da cabeça. Dedos dos pés agarram a 
sandália fazendo lastro no solo. A aceleração sobre a matéria anula 
momentaneamente seu peso. É um ato de desobediência à hegemonia da 
gravidade. A marreta é assim libertada da sordidez dos quilogramas das 
coisas pesadas. Num milissegundo a densa cabeça de ferro vale nada. É ar
 nas mãos. Por um ato sublime um erê a toca.
Os 
dedos do Operário, sentindo a leveza do instrumento que agora já é parte
 do mesmo corpo e mais rápidos que qualquer sinapse neural, implementam 
um segundo esforço, paralelo ao enunciado de Newton, forçando veloz 
parábola descendente pelo empuxo dos braços. Nova energia é colocada 
condenando o objeto ao chão.
O concreto abriu-se de uma vez só. Junto com fragmentos e terras veio uma pedra porosa que fez som suave ao repicar no solo.
“Isso é osso.” A mão que coçava a barriga vai à cabeça. “Mestre! Olha!”
“É coisa de bicho!”, disse o velho. “Continua.”
Mais ossos. Um fêmur. Uma mandíbula humana.
“Morreu
 gente aqui. Muita. Mexo nisso não.” O Mestre tira a marreta 
agressivamente das mãos do jovem e rapidamente golpeia mais e mais. Mais
 osso. “Melhor falar com eles”, aceita, enfim.
A 
Mulher e o Homem donos da obra se assustam. “Ditadura?”, imagina um. 
“Vou ligar na polícia”, diz ela. O Policial chega. “Arqueologia. Isso é 
arqueologia, não é comigo, não.” Chama o Arqueólogo. Ele chama o 
Burocrata. Chama o Intendente. Chama a Historiadora. Chega o Vizinho.
O
 osso daquele menino nagô que morrera aos seis anos de idade, apenas 
dois dias após o desembarque no Valongo, via o sol pela primeira vez em 
207 anos. Seu corpo foi jogado na vala comum que eufemisticamente 
denominavam “cemitério dos pretos novos”, junto aos restos de uma mula 
sacrificada, pois quebrara a pata. Alguém tinha afeição ao bicho e 
chorou por ele. Ninguém chorou pelo menino. Já era órfão ao embarcar. 
Veio febril desde a paragem em Cabo Verde, recuperou-se, mas não 
conseguia ganhar os alimentos jogados ao porão do navio negreiro. Pouco 
se movia no apertado espaço. Perdera tônus muscular. Fraco, magérrimo, 
moribundo, chegou ao Rio. Viu uma luz muito forte. E ventava fresco. Uma
 mão pegou-lhe pela cabeça, mas o recusou. Entendeu-se fruta dispensada.
 Morreu num canto. Seu corpo voltou ao solo, reiniciando o ciclo da 
vida, e agora era o seu fragmento de osso, deitado eternamente em berço 
esplêndido, que relatava aos olhos daquelas pessoas reunidas em círculo,
 como se missa fosse, como se festa fosse, na Rua Pedro Ernesto, na 
Gamboa, em 1996, a sua história.
A Mulher ouvira 
atenciosamente tudo que lhe contavam. Que era um cemitério, que havia um
 complexo econômico da escravidão no Porto do Rio, que era um sítio 
arqueológico, que era bem cultural da União, que era um achado, que não 
mexesse, que pesquisas seriam feitas, que era importante, que outras 
pessoas viriam. Muitas vieram. E foram embora.
“Eles
 não foram respeitados nem na vida e nem na morte”, a Mulher falou. O 
Homem fitava-a com carinho e certeza. “Vamos mostrar, expor esses 
achados”. Ele concordou, “É nossa missão. Os governos vão ajudar.”
O
 trabalho escravo de crianças, mulheres e homens impregnava as paredes 
daquela casa e de todas as outras da rua. Também estava nos solares, 
igrejas e aquedutos. Estava nas roupas, nas palavras, sabores e sons. 
Estava eternizado em marretas míticas a golpear o inexorável, forjando 
transformação.
Vinte anos depois, o Instituto dos 
Pretos Novos é um espaço de memória que, por meio da arqueologia, torna 
materialmente visível a história da população afro-brasileira. É um 
documento que pode ser lido denunciando a escravidão e o racismo da 
segregação territorial. Expõe a morte da juventude negra ainda como vala
 comum estatística das cidades brasileiras e não como emergência. Mas, 
por meio da educação e do conhecimento, esse sítio fornece gratuitamente
 a poética necessária para a luta pelo reconhecimento. Cada fragmento 
encontrado naquele sítio foi um dia uma pessoa que ergueu forçosamente 
nosso país e definiu generosamente nossa cultura. São pedaços preciosos 
da história brasileira ainda à espera da República.
 
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