Cora Rónai: 
Quem sabe agora, diante do desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência
A
 epidemia de zika e o aumento explosivo do número de casos de 
microcefalia puseram na ordem do dia o debate sobre a descriminalização 
do aborto. Da escuridão, às vezes, nasce a luz: tenho a impressão de 
que, em menos de um mês, foram publicados mais artigos e entrevistas 
sobre o assunto do que nos dez anos anteriores. Amaldiçoado com uma das 
classes políticas mais cínicas e calhordas do mundo, que foge de 
qualquer tema que possa desagradar aos religiosos, o Brasil está se 
devendo essa discussão há tempos — mas a simples menção da palavra 
“aborto” basta para que os nossos legisladores, salvo raras e heroicas 
exceções, virem para o lado e façam cara de paisagem. Pouco importam, 
para eles, as vítimas da sua covardia. Quem sabe agora, diante do 
desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência.
Interromper
 uma gravidez, em qualquer situação, é prerrogativa da mulher. A maioria
 dos países do Primeiro Mundo — aqueles que melhor resolveram as suas 
desigualdades econômicas e sociais — já reconheceu isso. O aborto é 
legal, sem restrições, em toda a América do Norte, na Europa (com as 
significativas exceções da Polônia e da Irlanda), na Austrália e numa 
boa parte da Ásia, para não falar em países que nem são tão 
desenvolvidos assim, mas que têm feito um esforço nesse sentido, como 
nosso vizinho Uruguai ou a África do Sul. Em outros, como Índia, Japão 
ou Islândia, foram estabelecidos limites de tempo para a interrupção da 
gravidez, mas mesmo esses limites podem ser flexibilizados em casos de 
doença grave da mãe ou do feto, ou circunstâncias socioeconômicas 
adversas. Eles entendem que a maternidade é um compromisso para a vida 
inteira, e que um aborto é muito menos traumático, individual e 
coletivamente, do que uma criança indesejada.
O 
Brasil, porém, está alinhado com o Afeganistão, a Somália, a Líbia, o 
Sudão, o Mali, o Burundi, o Iêmen ou o Haiti, países onde a vida humana,
 caracteristicamente, vale muito pouco. Até Paquistão e Arábia Saudita, 
que tratam as suas mulheres feito lixo, têm leis melhores do que as 
nossas, para não falar numa quantidade de países da África subsaariana, 
como Zâmbia, Namíbia ou Quênia.
Um excelente mapa 
interativo do Center for Reproductive Rights mostra a legislação sobre o
 aborto no mundo. Ele pode ser visto em goo.gl/340WF.
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Digo
 que o Brasil precisa discutir o aborto, mas eu mesma, pessoalmente, não
 tenho mais ânimo para isso. Sei que existem pessoas boas genuinamente 
angustiadas com a sorte dos fetos alheios, para além de dogmas 
religiosos e falsos moralismos, mas essas pessoas têm sido minoria nas 
discussões acaloradas da internet.
Nessas 
discussões, as pessoas que mais se dizem horrorizadas com as mortes de 
fetos — chamando-os de “crianças” para maior efeito dramático, fingindo 
desconhecer o fato de que “crianças”, ao contrário de embriões, 
conseguem sobreviver fora do corpo da mãe — são estranhamente 
insensíveis às mortes das mulheres obrigadas a abortar em condições 
sub-humanas. Para elas, a vida, tão preciosa dentro do útero, deixa de 
ter valor do lado de fora. Defendem a inviolabilidade da vida, e 
sustentam que a legislação brasileira, retrógrada ao extremo, basta para
 qualquer mulher; não veem contradição nenhuma em defender o aborto em 
casos de estupro e em gritar que toda vida é sagrada. Mas, se é, que 
diferença há entre os fetos gerados por estupro e os fetos gerados por 
amor? As “crianças” não são todas iguais?
Hipocrisia é o nome do jogo.
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Defender
 a criminalização do aborto é fechar os olhos para o fato de que quase 
um milhão de abortos são realizados anualmente no Brasil, com cerca de 
200 mil internações decorrentes de procedimentos mal feitos; é ignorar 
as estatísticas mundiais que mostram que o número de abortos se mantém 
estável quando a legislação muda a favor da mulher; é contribuir para a 
desigualdade social, porque mulheres ricas continuarão fazendo aborto 
sempre que necessário.
Mas defender a 
criminalização do aborto é, acima de tudo, um ato de inacreditável 
soberba, que põe todos os “juízes” acima da mulher que optou por 
interromper a gravidez. Ora, fazer aborto não é uma decisão fácil ou 
leviana; nenhuma mulher faz aborto por esporte. Qualquer uma que chega a
 essa decisão já pensou muito, e já pesou, dentro da sua capacidade, os 
prós e contras da questão — mas os senhores e senhoras que a condenam 
acham que conhecem melhor as suas condições e os seus sentimentos do que
 ela mesma, e se acreditam no direito de castigá-la.
Quem
 pede a legalização do aborto não pede a ninguém que aborte ou seja “a 
favor do aborto”; pede apenas que seja dado às mulheres o direito de 
decidirem o seu futuro por si mesmas, sem correr riscos de saúde 
desnecessários, e sem que Estado ou Igreja se metam onde não são 
chamados.
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Este 
assunto me tira do sério muito mais do que qualquer outro (ou, vá lá, 
quase qualquer outro) porque nele vejo, além da hipocrisia, muita 
maldade, falta de compaixão e todo o tipo de chicana moral e religiosa 
para continuar mantendo as mulheres na posição de submissão em que foram
 mantidas ao longo dos séculos.
A verdade é simples: a criminalização do aborto é um crime contra a mulher.
O GLOBO, 4 DE FEVEREIRO DE 2016  
 
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