Jogadores excepcionais não simplesmente se somam, mas se multiplicam
José Miguel Wisnik
Hoje  eu quero simplesmente fazer a festa do óbvio ululante. O óbvio  ululante, neste caso, é: nada como a seleção brasileira de futebol ser  uma seleção brasileira de futebol. Nada como chamar para jogar melhor  quem melhor sabe jogar. Nada como aceitar o poder da renovação. Nada  como não querer impedir que isso aconteça. As circunstâncias do amistoso  contra os Estados Unidos, na última terça-feira, assim logo depois da  Copa, fizeram com que a partida assumisse, quisessese ou não, um caráter  de prova e de contraprova.
Como se comportaria então aquela  parte do futebol brasileiro que Dunga renegou, chamada em peso por Mano  Menezes, agora com volantes jovens e inteligentes como Lucas e Hernanes a  se somarem a Ramires, com um cérebro cheio de vislumbres e um domínio  pleno da bola como os de Paulo Henrique Ganso, com atacantes ágeis e  surpreendentes como Neymar e Alexandre Pato a se somarem a Robinho?
Com um dia e meio de treino, o resultado foi melhor que a encomenda, e  está longe de se resumir no placar de dois a zero. O que se viu foi uma  troca rápida e contínua de passes que mantinha a posse de bola e  inventava entradas súbitas e verticais, com deslocamentos, dribles  oportunos e cruzamentos precisos. Imobilizar e inibir as iniciativas de  um adversário como os Estados Unidos (cujos componentes jogaram a Copa e  não fizeram má figura) a partir de uma postura atacante e destemida é  algo que depende do talento em todos os fundamentos.
Mas é justamente  a aliança entre o toque de bola refinado e a inteligência imediata das  variações do espaço do campo que produz, quando a c o n t e c e , u m  efeito de lumin o s a a l e g r i a , gritando em sua obviedade:  jogadores excepcionais não simp l e s m e n t e s e somam, mas se  multiplicam. Essa evidência vai c o n t r a a q u e l a atitude mental  que não se permite passar além da conta de somar e de diminuir, da troca  de um por um e de seis por meia dúzia.
Nesse sentido, essa jovem  seleção brasileira que gratificou o nosso gosto pelo futebol é, pela  atitude, uma espécie de Santos Futebol Clube mais encorpado, a  confirmação daquilo que o time santista trouxe de volta como afirmação  de um campo de possibilidades que faz da incompatibilidade entre beleza e  resultado uma falsa questão.
O Santos, aliás, que fez de seu ano  até aqui uma demonstração viva desse fato, já tinha por isso mesmo  suscitado ou ressuscitado a figura rodriguiana do “idiota da  objetividade”.
(Vocês estão vendo que a minha festa do óbvio  ululante é também uma homenagem ao Nelson Rodrigues cronista de futebol e  ao inclassificável João Saldanha técnico de futebol e escritor). Há  muito tempo o “idiota da objetividade” parecia aposentado por não ter  muito com o que contrastar: o mundo do futebol dominante parecia ser uma  extensão da ideia de que toda aventura do princípio do prazer está  condenada ao brejo. É que o “idiota da objetividade” extrai prazer  exatamente da maneira fingidamente realista com que investe no desejo  desse fracasso.
É ele que está me dizendo agora, por exemplo, que  esse jogo com os Estados Unidos foi apenas um episódio sem maior  significação, uma partida sem compromisso, valendo nada, contra um time  nem tão bom nem tão interessado, com o Brasil lançando estreantes que  deverão ser substituídos oportunamente pelos verdadeiros titulares, mais  experientes.
Como se a gente não soubesse que as verdadeiras  dificuldades estão pela frente, que o efeito atual da surpresa  encontrará oponentes mais fortes e mais avisados (Mano Menezes tem  consciência disso), que o time jovem deverá s e r m e s c l a d o com a  experiência, que só vai crescer evidenciando também suas fragilidades e  contradições, que nada está ganho.
Mas nada está g a n h o n u n c  a , nem para sempre — gozemos d u r a n t e . N ã o acredito  literalmente na objetividade das estatísticas futebolísticas, mas sei  que elas podem trazer indícios interessantes e sintomáticos. A seleção  da E s p a n h a , p o r e x e m p l o , mostrou uma qualidade rara  nesta Copa, que a fez campeã: a posse de bola, a troca rápida de passes,  superando o número de 500 por jogo, traduzindo-se em belos  deslocamentos, cortaluzes e domínio territorial.
Leio no entanto  sobre os números do jogo do Brasil algo que confirma a impressão: a  amostra de passes rápidos da seleção brasileira nesse jogo supera os  600, com um altíssimo grau de acerto (93%), superior à excepcional média  espanhola, acrescido ainda de oportunidades de gol, finalizações e  dribles inesperados que, como sabemos, não foram o forte da Espanha  campeã. No perfil da vocação futebolística brasileira, a conferir em  outros campos, a eficácia cresce sintomaticamente com a própria  gratificação da liberdade de criação, e não o contrário.
Hoje sou  todo a alegria do desafogo, porque o tamanho dessa potencialidade  criativa e lúdica estampada no jogo — óbvia e ululante como  potencialidade — esteve na sombra e à míngua
O Globo, 14 de agosto de 2010
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