ARNALDO BLOCH
E stive pensando em como a questão das drogas, por si só,  provoca distorções de percepção, por mais careta que seja, ou esteja, a  pessoa que se envolve em discussões sobre o assunto. Por exemplo, o Jojó  entorna uns chopes, dá dois num baseado e passa uma cantada grosseira  numa senhora de boa família. A grande maioria dos observadores dirá que o  Jojó agiu assim por causa do bagulho e da gelada. Só uns gatos pingados  dirão que o Jojó é assim mesmo, inconveniente, que o goró tem pouco, ou  nada, a ver com o caso.
Se, por outro lado, o Jojó for para casa e,  antes de puxar um ronco, telefonar para o Retiro dos Artistas anunciando  uma doação gorda para a Páscoa dos velhinhos, os que souberem de seu  ato dirão que o Jojó é generoso, um cara legal, um santo. Poucos  atribuirão seu impulso à maconha e ao álcool, a não ser, é claro, que o  Jojó seja um tremendo mão-deporco que só coça o bolso quando bebe e  fuma.
Assim caminha o senso comum.
E o senso comum é ótimo quando  não exclui a inteligência. Quando manipulado para criar verdades  absolutas sem reflexão, tornase uma arma perigosa. Difundir em massa,  por exemplo, que a morte do cartunista Glauco é uma evidência  incontestável de que o Daime produz assassinos impiedosos é manipular o  senso comum. Quantos assassinos os círculos que tomam o chá “produziram”  nas últimas décadas? Há outros casos suspeitos relatados? Por outro  lado, quantas são, comparativamente, as mortes provocadas por uso  indevido de remédios e álcool? Alguém já investigou a influência de  surtos de ansiedade por ingestão de litros de café por jornada de  trabalho num comportamento criminoso? Dizer que o ayahuasca (a bebida  indígena utilizada pelo Daime e outras congregações, a maior parte  religiosas) agrava surtos de esquizofrenia (doença da qual o assassino  de Glauco sofria) é chover no molhado. A ingestão de qualquer substância  que amplie os sentidos pode agravar uma psicose.
Um indivíduo  diagnosticado como esquizofrênico deve ser resguardado de ingerir  qualquer coisa que não sejam as drogas receitadas por seu psiquiatra.  Se, contudo, a família decide que ele pode frequentar cultos de Daime e  seus líderes o recebem com o propósito de curá-lo, é um risco calculado  por todos. Isto, é claro, não garante, nem de longe, que o ato que levou  à morte de Glauco esteja associado ao processo que ele viveu naquela  comunidade, inclusive porque o assassino, usuário de cocaína e crack,  drogas que consumiu a caminho do local da tragédia. Usar tais  correlações categóricas para questionar o fato de o ayahuasca ser hoje  uma bebida legalmente utilizada é tão irresponsável quanto o eventual  mau uso da substância.
Já tomei o chá em dois âmbitos. Da  primeira vez, com uma tribo no Acre, durante uma noite inteira, no meio  da floresta, sem qualquer ligação com o culto do Santo Daime.  Interessavame mais beber com os índios, num ambiente dissociado do  caráter sincrético-religioso que em muito desvirtua o sentido de seu uso  original. Da segunda vez, no Rio, participei de uma celebração do Daime  com quase trinta pessoas. Não experimentei, nas duas ocasiões, nem  êxtase nem desespero. Não senti alterações na noção do tempo. O que  vivi, ao contrário, foi um longo percurso de exame existencial em estado  de alta consciência, e, em paralelo, um conjunto de visões que, entre  si, formavam uma lógica de integração dessas percepções individuais com o  que estava à minha volta (sobretudo na Amazônia, embalado pelos sons e o  céu da floresta).
Nas duas experiências, só vi, no comportamento  dos outros, ímpetos de comunhão e busca de paz. A culpa que havia ali  estava na consciência de cada um, confrontada com um sentido ampliado do  inconsciente e da ancestralidade.
O que chamo de ancestralidade,  independentemente de estar ou não relacionada com espíritos ou  entidades (como creem os índios) ou com Jesus e Maria (como creem os  cultores do Daime) integra o conjunto de símbolos que constroem a psique  humana em sua marcha civilizacional, transmitida de geração em geração.  Símbolos que, estimulados pela bebida, desfilam ante o pensamento, que  traduz as metáforas num léxico que muito ensina sobre o que somos, o que  fomos e o que podemos vir a ser. A maioria de pessoas que tomaram o chá  com quem conversei relatam, em essência, a mesma coisa. Algumas creem  que divindades estão presentes. Outras, como eu, pensam que isso nada  tem de sobrenatural.
E que tem tudo a ver com evolução.
Foi  a experiência mais significativa que vivi.
Se eu morrer hoje, já  terei visto aquilo que precisava ver. Sou judeu e tenho uma tendência  ao agnosticismo que inclui ciclos de maior e menor aproximação com a  ideia de Deus.
Bem sei das mazelas que a religião, com ou sem  chá, podem provocar. Bem sei, também, que o ayahuasca pode precipitar,  em alguns casos, problemas psíquicos ainda não manifestos num indivíduo,  como outros estímulos, químicos ou emocionais, podem fazer.
Sei  também que, embora entorpeça e provoque vivências dolorosas dentro desse  exame que uns chamam de “trabalho”, não intoxica, não pesa no fígado,  e, na maior parte das vezes só traz boas emanações, num espectro  coletivo. Por incrível que pareça, não conheço relato de alguém que  tenha burlado a proibição de se vender o ayahuasca, o que é um tanto  misterioso. E raríssimos relatos de uso individual, sem assistência,  desta poderosa poção que se populariza mundo afora.
Glauco,  certamente, sabia disso. A infelicidade que se abateu sobre sua família e  sua comunidade não justifica invalidar-se, com meia dúzia de loquazes  fórmulas preconceituosas, tudo de bom que se acumulou através do uso de  um chá milenar, já conhecido de civilizações pré-colombianas de alto  saber, e que tem muito mais história que as vozes desejosas de parar o  tempo através da amplificação consciente do medo e da ignorância.
O Globo, 27 demarço de 2010
 
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