May 25, 2024

Como tantos evangélicos foram arrebatados pelo bolsonarismo

 

 P O R PAU LO C E Z A R S OA R ES

 Houve um tempo, no Brasil, em que o pastor evangélico impunha respeito e, entre os fiéis, admiração. As mensagens bíblicas eram elaboradas e pregadas com paixão e alma, sem a manipulação do texto bíblico visando interesses próprios. A pregação, momento singular do culto, era valorizada.

Passadas três décadas da expansão das igrejas evangélicas e da população crente, o que temos, de modo geral, são mensagens preparadas via redes digitais e igrejas lotadas, mas vazias de conteúdo bíblico.

Além disso, o fundamentalismo ­grassa na maior parte das denominações e, não raro, os pastores dão uma ênfase literal a textos poéticos ou fazem o contrário, tratando como metáfora o que é literal. Distante do conteúdo bíblico, essas igrejas tampouco são capazes de contribuir para as transformações sociais.

No livro O Púlpito – Fé, Poder e o Brasil dos Evangélicos, a jornalista Ana ­Virginia Balloussier oferece ao leitor uma cosmovisão do universo evangélico brasileiro, presente nos veículos de comunicação, nos produtos culturais, na internet, e no governo de Jair Bolsonaro, que teve, como se sabe, apoio maciço dos evangélicos.

A autora constrói sua narrativa por meio de um conjunto de entrevistas rea­lizadas tanto com pastores famosos – como Silas Malafaia, Edir Macedo, Valdemiro Santiago e o casal Estevam Hernandes e Sonia Hernandes – quanto com evangélicos anônimos.

Por meio dessas falas, Anna ­Virginia permite que o leitor acompanhe as transformações econômicas e ideológicas ocorridas no meio evangélico – como a questão do dízimo e as pautas de caráter comportamentais – e, por consequência, na própria sociedade brasileira.

As igrejas evangélicas possuem suas raízes na cultura estadunidense e uma estrutura de culto e certos padrões de comportamento que nada têm a ver com a realidade brasileira. No passado, pastores esclarecidos, e preocupados em pregar de forma clara e objetiva para o povo, tentaram aproximar a igreja das lutas populares, por meio da Teologia da Libertação – que é mais conhecida por sua vertente católica, mas existiu também no protestantismo. Foram, no entanto, coibidos pelo golpe de 1964.

Esse movimento, que se deu no contexto do continente latino-americano e tinha um viés de esquerda, teve como marco a Conferência Nordeste, realizada em 1962, em Recife, e que foi organizada por Rubens Alves (1933-2014) e ­Richard Shaull (1919-2002), pastores presbiterianos. A guinada evangélica do País, nos anos que se seguiriam, seria, no entanto, totalmente à direita.

“Líderes neopentecostais, pentecostais e históricos – e nem gosto mais de usar esses rótulos de forma tão estanque – apoiaram em peso Bolsonaro. Me interesso em tentar compreender como chegamos até aqui”, diz Anna Virginia. “Como tantos evangélicos, lembrando que a maioria do segmento é feminina, negra e pobre, foram arrebatados pelo discurso bolsonarista? E por que a esquerda não tem conseguido falar com esse eleitorado? Será que isso não envolve um tanto de preconceito contra ‘os crentes’ e certa incompreensão mesmo, de não conhecer, por exemplo, a linguagem deles?”

A autora ressalta que os evangélicos bolsonaristas não inovaram ao tentar embasar suas convicções com justificativas cristãs. “Lembremos da marcha que evocou Deus e a família antes do golpe de 1964, num Brasil onde o catolicismo ainda era soberano”, recorda ela. “Ou de tantos papas coniventes com atrocidades ao longo dos séculos. A Igreja Universal, na Venezuela, apoia ­Maduro, que tem buscado respaldo evangélico para manter sua ditadura”.

Anna Virginia lembra que a estratégia evangelizadora ganhou novos ares em 1980. Ela cita televangelistas do Hemisfério Norte, como o norte-americano Jimmy Swaggart, primo do cantor Jerry Lee Lewis que impactou uma legião de pastores, e do bispo canadense Robert Mc­Alister, que acabou por mudar-se para o Brasil.

McAlister trouxe para o País o que seria o berço da Igreja da Graça de Deus e da Universal do Reino de Deus, considerada por muitos como não uma igreja, e sim uma seita e que, desde sua criação, tem o objetivo de dominar a comunicação e a política.

Esse novo modelo de “fé” fez com que líderes brasileiros, como Malafaia, passassem a adotar “instrumentos antes repudiados como aliados da causa evangélica”. O principal deles foi a compra de horários nas grades de tevê para, por meio do mais popular meio de comunicação do País, disseminar seus princípios. E foram assim ativando, de pregação em pregação, o que o sociólogo da religião peruano José Luiz Perez Guadalupe chama de “combo teológico”.

No lugar da Teologia da Libertação, passamos a ter, como bem demonstra o livro Púlpito, a Teologia da Prosperidade, a Teologia da Guerra Espiritual e a Teologia do Domínio.

O que o livro também busca deixar claro é que o universo evangélico – aí incluídos pastores e fiéis – não forma um bloco coeso e monolítico. Ou seja, sempre haverá pastores sérios, que praticam um evangelho ético e libertador, seguindo o que o apóstolo Paulo ensinou em 1 Coríntios 14.3: edificar, exortar e consolar. •

 CARTA CAPITAL

O Púlpito – Fé, poder e o Brasil dos evangélicos – Anna Virginia Balloussier. Todavia (205 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

May 23, 2024

Trump’s Scandals Captivate the Courtroom, but Case Hangs on Dry Details

 

Donald Trump at the defendant’s table.

Ben ProtessJonah E. BromwichWilliam K. Rashbaum and

Donald J. Trump is on trial for 34 felony counts of what could be the dullest sounding crime in New York’s penal code: falsifying business records.

Yet, across nine witnesses and two weeks of testimony, jurors have been treated to hours of mesmerizing courtroom theater.

There was talk of a sex scandal with a porn star, a surreptitious recording of a future president and the tearful testimony of a former confidante in the glare of the witness stand. There was even a celebrity roll call: Charlie Sheen, Lindsay Lohan and the reality television star Tila Tequila were all name-checked this week, drawing chuckles in the Lower Manhattan courtroom.

The phrase “falsifying business records,” however, was not uttered to the jury during testimony. Not even once.

That striking omission underscores the prosecution’s strategy for the opening phase of testimony: Spotlight the sleaze, and soft-pedal the records. Although the defense has already taken a swipe at the approach, legal experts say it represents the prosecution’s best shot at winning the case, the first criminal trial of an American president.

In their opening statement, prosecutors from the Manhattan district attorney’s office previewed the false records to the jurors, casting them as straightforward paper “lies” that covered up a hush-money payment to the porn star. But tying Mr. Trump to those records is hardly simple. Only one witness directly links Mr. Trump to falsifying the records, and that person, as the defense is fond of noting, is a convicted liar.

So the prosecution started with the strongest card in its hand, eliciting testimony about the sordid stories that Mr. Trump is accused of covering up. Prosecutors say he concealed them to shield his 2016 campaign from scandal, orchestrating an “illegal conspiracy to undermine the integrity of a presidential election.”

Mr. Trump is not charged with conspiracy, but New York law requires prosecutors to show that Mr. Trump falsified the records to conceal another crime. The purported election conspiracy, in all its lurid detail, would essentially establish his motive.

By foregrounding the conspiracy, prosecutors are captivating the jury while laying a foundation for evidence about the business records to emerge. As soon as next week, prosecutors are expected to begin connecting the dots between the smut and the substance.

Image
A television reporter outside the courthouse on a platform.
The stories told in court stem from a culture obsessed with celebrities and their scandals. Credit...Doug Mills/The New York Times

“It was a smart way to start the case,” said Marc F. Scholl, who served in the Manhattan district attorney’s office for nearly four decades, specializing in white-collar crimes and working on dozens of cases that included the false business records charge.

Likening the trial to a jigsaw puzzle, Mr. Scholl added that, before it is over, the prosecution “will have to provide all the pieces.”

The strategy carries risks, including that jurors could blame the prosecutors for subjecting them to a parade of filth. Two members of the jury are lawyers, the type of arbiters who might tune out what the defense calls “salacious” noise.

Mr. Trump’s lawyers also argue that prosecutors are using a sleight of hand, leveraging the titillating election conspiracy to compensate for a lackluster false records case. They portrayed the records as innocuous paperwork, the drafting of which was “not a crime.”

“This business records violation that the people have brought against President Trump, the 34 counts, ladies and gentlemen, are really just 34 pieces of paper,” Mr. Trump’s lead lawyer, Todd Blanche, told the jury during his opening statement

Those pieces of paper all stem from the $130,000 hush-money payment to the porn star, Stormy Daniels, who in the waning days of the 2016 campaign was shopping her story of a sexual encounter with Mr. Trump. Mr. Trump is not charged with making the payment — his fixer, Michael D. Cohen, was the one to buy her silence — but the former president stands accused of falsifying the 34 records while reimbursing Mr. Cohen.

Those records, 11 checks to Mr. Cohen, 11 invoices from Mr. Cohen and 12 entries in Mr. Trump’s general ledger, disguised the true purpose of the repayment, prosecutors say. The invoices and ledger entries claimed that Mr. Cohen earned the money as legal fees accumulated from a retainer agreement in 2017.

“Those were lies,” Matthew Colangelo, a prosecutor, told the jury during his opening statement. “There was no retainer agreement. Cohen was not being paid for legal services. The defendant was paying him back for an illegal payment to Stormy Daniels on the eve of the election.”

Prosecutors need not prove that Mr. Trump personally falsified the records, only that he “caused” someone like Mr. Cohen to do so. Mr. Cohen, who had a falling-out with Mr. Trump and is expected to be the prosecution’s star witness, will most likely testify that in early 2017 he and Mr. Trump met in the Oval Office and confirmed the scheme. They had agreed that Mr. Cohen would submit the bogus invoices to Mr. Trump’s company, prosecutors say. Soon after, Mr. Cohen received his first check.

Mr. Blanche, who has argued that Mr. Trump “had nothing to do with” the records, has attacked Mr. Cohen’s credibility at every turn, calling him a felon and an “admitted liar.” Mr. Cohen, however, has argued that he committed most of his crimes for Mr. Trump, including a guilty plea to federal charges involving the hush money.

In Manhattan, Mr. Trump is one of dozens of defendants to face the falsifying business records charge over the past decade. Prosecutors can charge it as a felony, rather than a misdemeanor, only if a defendant falsified the records to commit or conceal another crime — and the district attorney’s office almost always charges it as a felony.



Alvin Bragg,in a dark suit and burgundy patterned tie, gesticulates.
Alvin Bragg’s prosecutors are depending on a little-known law against conspiring to affect an election “by unlawful means.”Credit...Jefferson Siegel for The New York Times

In a conversation with the judge last week, Mr. Bragg’s prosecutors confirmed that they have seized on a little-known election law that makes it illegal to “conspire to promote or prevent the election of any person to a public office by unlawful means.”

New York’s law does not require prosecutors to prove that election conspiracy, even though the felony charges are built on it.

Mr. Bragg did not include the election conspiracy in the charges, partly because Mr. Trump’s conduct is too old. A legal deadline to file those charges expired years ago, whereas the false business records law provides greater leeway.

Still, in the first two weeks of testimony, there has been no shortage of evidence suggesting that the conspiracy existed, and worked just as Mr. Trump planned.

The prosecution began its case last week with David Pecker, the former publisher of The National Enquirer, who took jurors behind the scenes of the plot to protect Mr. Trump’s campaign. Soon after announcing his candidacy, Mr. Trump met with Mr. Pecker and Mr. Cohen in his midtown Manhattan office tower, where they hashed out a plan to buy and bury any damaging stories that might arise and imperil the campaign, Mr. Pecker said.

Prosecutors called it “The Trump Tower conspiracy.”

Over several days of testimony, Mr. Pecker laid bare the shady supermarket tabloid practice of “catch and kill,” in which The Enquirer bought the rights to stories that it did not publish. For $150,000, Mr. Pecker caught and killed the story of Karen McDougal, a former Playboy model who said she had a monthslong affair with Mr. Trump while he was married.

Mr. Trump was supposed to repay Mr. Pecker, and on Thursday, prosecutors played the recording Mr. Cohen surreptitiously made of him discussing the deal with Mr. Trump. Mr. Cohen suggested they buy not just Ms. McDougal’s story, but all of the dirt Mr. Pecker had accumulated on Mr. Trump over the years, speaking obliquely about “the transfer of all of that info regarding our friend, David.”

Mr. Trump agreed the transfer would cover them in case something happened to Mr. Pecker or his magazine. “Maybe he gets hit by a truck,” Mr. Trump said.

But when Mr. Cohen suggested they line up “financing” to cover the deal, Mr. Trump balked: “What financing?” he asked, before directing Mr. Cohen to “pay with cash.”

(Mr. Pecker, the jurors already know, was never repaid.)

The prosecution also called Keith Davidson, the lawyer who negotiated the hush-money deal for Ms. Daniels. He offered jurors a window on the machinations, portraying Mr. Trump as the hidden hand controlling the process.

“Michael Cohen didn’t have the authority to actually spend money,” Mr. Davidson told the jury, adding, “My understanding was that Mr. Trump was the beneficiary of this contract.”

On cross-examination, Mr. Trump’s lawyers attacked both Mr. Pecker and Mr. Davidson, questioning their credibility and ethics. One defense lawyer, Emil Bove, even painted Mr. Davidson as a serial extortionist, accusing him of shaking down not only the Trump campaign, but Tila Tequila and Mr. Sheen as well.

Yet those attacks could sully not only the witnesses, but the man they were testifying about, the former and possibly future president, who had allowed them into his circle.

“The fundamental truth is that you take your witnesses as you find them, and inevitably the sleazy, unethical and dubious conduct that was carried out by the witnesses will leave them vulnerable to attack by the defense,” said Steven M. Cohen, a law professor and former federal prosecutor. “But those witnesses will no doubt be quick to remind the jury that they were not the authors of that conduct. Mr. Trump was.”

On Friday, prosecutors questioned Hope Hicks, Mr. Trump’s former spokeswoman, about the Trump campaign’s frenzied effort to contain the fallout when the stories of Ms. McDougal and Ms. Daniels leaked. During cross-examination by Mr. Bove, Ms. Hicks began to cry as she recounted working for the man who launched her career.

But Mr. Bove used his final question of the week to highlight something she said she knew nothing about — the records. The question appeared meant to convey that whatever dramatic details she provided for the jury, none proved that Mr. Trump had committed a crime.

In the coming days, prosecutors are expected to pivot to the accusation that Mr. Trump falsified the records related to Mr. Cohen’s reimbursement. They are likely to question employees at Mr. Trump’s company who handled the payment, and then, in what could be the crucial moment of the trial, call Mr. Cohen to the stand to say that the former president engineered the false records.

At the climax of Mr. Colangelo’s opening statement, after detailing the prosecution’s evidence of the conspiracy, the deal-making and the made-for-tabloid scandal, he returned to the business records.

“Read the documents, the emails, the text messages, the bank statements, the handwritten notes, all of it,” he implored the jury. “It inescapably leads to only one conclusion: Donald Trump is guilty of 34 counts of falsifying business records.”

THE NEW YORK TIMES

 

 

May 21, 2024

Extrativismo “verde” e o canto da sereia da transição energética

 

 


A transformação da energia do sol e do vento em eletricidade depende de uma grande quantidade de minérios, cuja extração causa desestruturação social e degradação ambiental. No fim das contas, a substituição tecnológica nos levaria a trocar a dependência de petróleo, gás e carvão por outro grupo de recursos não renováveis, os chamados minerais críticos

 As mudanças climáticas deixaram de ser uma ameaça remota. Elas ocorrem aqui e agora. Vivemos a intensificação dos eventos climáticos extremos, como em São Sebastião (2023), Petrópolis (2022), sul da Bahia (2021) Rio Grande do Sul (2024), e o aumento da temperatura, com 2023 sendo o ano mais quente dos últimos 125 mil anos.

Do ponto de vista global, o consumo de energia se apresenta como principal responsável pelos gases de efeito estufa (GEEs) na atmosfera, contribuindo com 73% das emissões. Se quisermos desacelerar as mudanças climáticas, a decisão prioritária deveria ser reduzir o consumo e a dependência dos combustíveis fósseis, em um processo chamado de transição energética. Essa transição, porém, tem se mostrado cada menos alcançável. Entre 1992, quando foi criada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, e 2022, o consumo global de combustíveis fósseis aumentou cerca de 64%.

Parte da dificuldade tem
sido criada pelos interesses do setor de
energia. A expectativa dos países pro-
dutores de petróleo e carvão, até 2030,
é aumentar a extração em quantidade
muito acima do que seria seguro para
limitar o aquecimento global a 1,5 ºC. O
Brasil planeja, até 2050, dobrar a produ-
ção de petróleo em relação a 2020.

 
Nesse contexto, como colocado por
Helen Thompson, professora em Cam-
bridge, estamos diante de duas geopo-
líticas energéticas complexas: a geopo-
lítica caótica dos combustíveis fósseis
e a geopolítica da “energia verde”.2 Esta
última vem sendo construída por ins-
tituições multilaterais e corporações
transnacionais que argumentam que
a substituição das fontes fósseis por
energia eólica e solar seria suficiente
para evitar o aprofundamento das mu-
danças climáticas. Assim, resumem a
transição energética à substituição tec-
nológica e evitam questionar a intensi-
dade energética que sustenta o padrão
de consumo dos países do Norte e das
oelites do Sul global

Por exemplo, a Agência Internacional
de Energia (AIE)3 defende que, para co-
locar as emissões de GEEs em uma traje-
tória consistente com o Acordo de Paris,
a instalação anual de células fotovoltai-
cas e turbinas eólicas teria de ser tripli-
cada, e a venda de automóveis elétricos,
expandida em 25 vezes até 2040. Essa
visão tecnocentrada se manifesta por
meio da idealização das chamadas fon-
tes de energia “limpa” ou “verde” – no-
menclatura que cria a ideia equivocada
de que seria possível gerar energia sem
impacto social ou ambiental.

 
Porém, isso não é verdade. A trans-
formação da energia do sol e do ven-
to em eletricidade depende de uma
grande quantidade de minérios, cuja
extração causa desestruturação social
e degradação ambiental. No fim das
contas, essa substituição tecnológica
nos levaria a trocar a dependência de
petróleo, gás e carvão por outro grupo
de recursos não renováveis, os chama-
dos minerais críticos.

 
Ainda segundo a AIE, um carro elé-
trico utiliza seis vezes mais minerais do
que um carro convencional, e um par-
que eólico demanda nove vezes mais
minerais do que uma termelétrica a gás.
Esse aumento levaria a uma expansão
inédita na extração dos minerais críti-
cos. De acordo com a Universidade de
Tecnologia de Sydney,5 se fizéssemos a
substituição de fontes de energia para
atender à demanda de 2050, seria neces-
sário ampliar a extração anual de lítio
em 8.845%, e de cobalto, em 1.788%. As
projeções também indicam que não ha-
veria no mundo reservas de cobalto, lítio
e níquel suficientes para garantir essa
estratégia de transição.

 
No entanto, corporações mineradoras
se utilizam do discurso da necessidade
de minerais para legitimar suas ativida-
des, independentemente dos impactos.
Não por acaso, o Conselho Internacional
de Mineração e Metais afirma que “as
mudanças climáticas são, sem dúvida,
o maior desafio ambiental que enfrenta-
mos. [...] O setor de mineração e metais
tem também papel vital na garantia de
uma transição suave para uma economia
de baixo carbono”.6 No Brasil, uma agen-
da positiva é essencial, especialmente
após a crise de credibilidade que o setor
vive em consequência dos desastres em
Mariana (2015), Brumadinho (2019) e,
mais recentemente, Maceió.

 
Uma transição energética restrita à mu-
dança tecnológica está associada à pro-
posta do chamado “extrativismo verde”
ou “consenso da descarbonização”, que

eriam um desdobramento do período
neoextrativista pelo qual passaram países
da América Latina entre 2000 e 2012. Es-
ses processos se assemelhariam pelo dis-
curso da inevitabilidade, pela concentra-
ção de poder em atores não democráticos
(corporações e agências multilaterais) e
pela ampliação da fronteira extrativista
para atender o mercado global.

 
Essa construção é estratégica para
reduzir a resistência a novos projetos
extrativos e a seus impactos. Por exem-
plo, a extração de lítio é considerada
economicamente viável para teores en-
tre 0,5% e 2,5%; ou seja, para cada to-
nelada de lítio, são “deixadas para trás”
entre 40 e 200 toneladas de resíduos.
Não por acaso, de acordo com o Obser-
vatório dos Conflitos da Mineração no
Brasil, em 2020 foram identificadas 87
situações de conflito envolvendo a ex-
tração ou o beneficiamento de minérios
vinculados à transição energética. Elas
incluíam disputas fundiárias, questões
de saúde dos trabalhadores e contami-
nação e escassez de água.

 
A perspectiva futura sugere desafios
ainda maiores. A distribuição espacial
do interesse por minerais críticos no
país se manifesta em três vetores princi-
pais. Primeiramente, existe um arco que
inclui norte e nordeste de Minas Gerais,
oeste e norte da Bahia e sudeste do Piauí
– áreas do Semiárido. Dado o elevado
consumo hídrico dos projetos de mine-
ração, existe potencial de conflitos por
acesso a água. Um segundo destaque
corresponde ao norte de Goiás e ao sul
do Tocantins, uma área de domínio do
Cerrado que já sofre com altas taxas de
desmatamento. Um terceiro eixo se es-
tende pelo norte de Mato Grosso, sudes-
te e leste do Pará e leste do Amazonas.

 
A expansão da fronteira mineral na
Amazônia tende a criar um paradoxo. A
mineração de grande escala nesse bio-
ma pode gerar um desmatamento até
doze vezes maior do que a área da lavra.8
Se esses projetos forem levados adian-
te, o suprimento de minerais extraídos
para garantir a transição energética
justificaria o aumento do desmatamen-
to da Amazônia, o que intensificaria a
emissão de GEEs.

 
Para evitar o canto da sereia da tran-
sição energética exclusivamente tec-
nológica, é preciso reconhecer que tal
proposta não é capaz de evitar o colap-
so climático. Mais ainda, ela será res-
ponsável por transferir o ônus social e
ambiental para pequenas comunidades
rurais, que sofrerão os impactos da ex-
pansão da extração mineral.

 
O debate precisa ir além: a discussão
sobre transição energética deve tam-
bém incluir como diminuir a voraci-
dade energética das elites urbanas. Ela
igualmente deve se pautar por mudan-
ças de caráter coletivo, como melhoria
da mobilidade urbana, adequação dos
padrões construtivos e urbanísticos
para garantir conforto térmico, e mu-
danças no padrão de produção indus-
trial, com aumento de eficiência ener-
gética e redução da obsolescência dos
bens duráveis. Em vez disso, o que ve-
mos é a defesa de ações individuais cal-
cadas no aumento do consumo, como a
aquisição de carros elétricos ou placas
solares de uso domiciliar. Além disso,
seria necessário repensar a globaliza-
ção, baseada no transporte de maté-
rias-primas, bens intermediários e pro-
dutos finais ao redor do mundo.

 
Portanto, a ideia de que “o mundo
pode contar com o Brasil”9 para centra-
lizar a transição energética requer que se
considere de qual concepção de transi-
ção está se falando, pois uma transição
que aprofunde a desigual relação entre o
Norte e o Sul globais, com base na am-
pliação da extração dos minerais críticos,
tende a exacerbar contradições sociais e
econômicas de uma estrutura sistêmica
que nos levou à crise ambiental-climáti-
ca atual. O debate precisa exigir a recon-
figuração dos atuais padrões de produ-
ção e consumo, e mesmo questionar a
definição de desenvolvimento.

 
*Bruno Milanez é professor da Faculdade
de Engenharia e do Programa de Pós-Gra-
duação em Geografia da Universidade Fe-
deral de Juiz de Fora (PPGEO-UFJF); e
Aline Araújo é aluna de mestrado no PP-
GEO-UFJF.

LE MONDE DIPLOMATIQUE   

ilustração: CAIO GOMEZ  

 


May 19, 2024

Efeito Borboleta

 

 A POPULAÇÃO GAÚCHA PAGA UM ELEVADO PREÇO
PELA IRRESPONSABILIDADE DOS GOVERNANTES E
PARLAMENTARES COM A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL

 Por René Ruschel e Rodrigo Martins

Em Canoas, na Grande Porto Alegre, um grupo de crianças brinca em uma sala nas dependências da Universidade Luterana do Brasil, a Ulbra. Sobre as mesas estão distribuídos brinquedos, jogos e doces. Enquanto os pequenos se distraem, os monitores anotam à mão o nome de cada um, separados de suas famílias durante os resgates em áreas inundadas da cidade. Visivelmente abalado, um homem entra no local e pergunta pelo filho desaparecido. “Só tinha lugar para mais um no barco”, relata o pai, que entregou o garoto aos cuidados dos militares. Ao conferir o nome do filho na lista, o homem desata a chorar. Os monitores tampouco conseguem conter as lágrimas no reencontro.

Nem todos os pais tiveram a mesma felicidade. No domingo 5, havia 249 crianças e adolescentes desaparecidos no município, segundo o Conselho Tutelar. Na noite da terça-feira 7, passadas mais de 48 horas, ao menos cem ainda não haviam sido encontrados. Pior que a angustiante procura só a constatação da tragédia consumada. Em Roca Sales, no Vale do Taquari, uma família inteira sucumbiu a um deslizamento de terra. Sob os escombros da residência, bombeiros encontraram quatro pessoas abraçadas, entre elas uma criança de, aproximadamente, 3 anos de idade. A quinta vítima foi encontrada no lado de fora da casa.

Castigado por implacáveis tempestades
desde o fim de abril, o Rio Grande do Sul
vive o pior desastre climático de sua
história. Ao todo, 1,4 milhão de habitantes
foram afetados por inundações,
deslizamentos de terra e outros estragos
provocados pelas chuvas. Em balanço di-
vulgado na manhã da quinta-feira 9, a De-
fesa Civil contabilizava 107 mortes, núme-
ro que tende a crescer nos próximos dias,
pois ainda havia 136 desaparecidos e 374
feridos. Mais de 67,5 mil gaúchos estavam
desabrigados, instalados em alojamentos
cedidos pelo Poder Público, e outros 164.5
mil seguiam desalojados, abrigados nas
casas de parentes ou amigos. O governo fe-
deral reconheceu a situação de calamida-
de em 336 dos 497 municípios do estado.
O nível do Rio Guaíba, que banha a Re-
gião Metropolitana de Porto Alegre, supe-
rou os 5 metros no cais do porto na sexta-
-feira 3, ultrapassando a marca de 4,76 me-
tros de 1941, até então a maior cheia regis-
trada. A chuva recorde no estado tem re-
lação com um fenômeno corriqueiro, cha-

 mado pelos meteorologistas de “bloqueio
atmosférico”. Quando uma onda de calor se
instala nas regiões Sudeste e Centro-Oes-
te, cria uma espécie de barreira à passagem
de frentes frias e faz com que as chuvas fi-
quem concentradas na Região Sul do País.

 
Esse bloqueio atmosférico é potencia-
lizado pelo El Niño, fenômeno responsá-
vel pelo aquecimento das águas do Pacífi-
co nesta época do ano. Mas, como obser-
va o climatologista Carlos Nobre, que fez
carreira no Instituto Nacional de Pesqui-
sas Espaciais, o El Niño existe há milhões
de anos, sempre induziu chuvas fortes no
Sul, mas jamais produziu um dilúvio tão
grande. “Tudo isso tem a ver com o aque-
cimento global. Os oceanos bateram to-
dos os recordes de aquecimento da histó-
ria desde o último período interglacial, ou
seja, dos últimos 125 mil anos. E quando o
oceano está muito quente, evapora muita
água e essa água é a fonte de energia pa-
ra todos os sistemas de chuva”, explicou
Nobre à agência alemã Deutsche Welle.

 
Um dos pesquisadores res-
ponsáveis pela produção do
quarto relatório do Painel
Intergover na ment a l de
Mudanças Climáticas da ONU
(IPCC), iniciativa agraciada
com o Nobel da Paz de 2007, Nobre acres-
centa que os eventos climáticos extremos
“não têm mais volta”, vão ocorrer com uma
frequência cada vez maior. O Rio Grande
do Sul é a prova. Pelo terceiro ano conse-
cutivo, o estado sofre os impactos não ape-
nas das temporadas de chuvas torrenciais,
mas também de secas prolongadas.

 
Até meados do ano passado, os gaú-
chos enfrentavam uma estiagem históri-
ca, intensificada por La Niña, fenômeno
natural que, ao contrário do El Niño, pro-
voca o resfriamento anômalo das águas
do Pacífico. Foram três anos seguidos de
quebras de safra agrícola no estado pela
seca, com impacto direto na economia. A
participação do Rio Grande do Sul no PIB
nacional despencou de 6,53%, em 2019,
para 5,90%, em 2023, segundo o Depar-
tamento de Economia e Estatística do go-
verno estadual.

 
Diante da sucessão de catástrofes, o
governador Eduardo Leite, do PSDB,
agora fala em um “Plano Marshall” pa-
ra reconstruir o estado, mas convenien-
temente ignora sua responsabilidade na
tragédia, a começar pela pífia verba re-
servada a ações preventivas e mitigação
dos eventos climáticos extremos. Pa-
ra o aparelhamento da Defesa Civil em
2024, o governo separou míseros 50 mil
reais, fato denunciado pelo deputado es-
tadual Matheus Gomes, do PSOL. O va-
lor é 20 vezes inferior ao total da rubri-
ca em 2022. No afã de rebater a crítica, a
Secretaria de Planejamento, Governan-
ça e Gestão apressou-se a informar que
os recursos “estão alocados em diversas
rubricas e diversas secretarias”. O orça-
mento para o conjunto de iniciativas de
respostas a desastres naturais seria mui-
to maior, 117 milhões de reais. Ainda as-
sim, observou Gomes, o valor represen-
ta menos de 0,2% do orçamento estadual,
de 83 bilhões. “É sério que o governador
se orgulha desse porcentual?”

 
O negacionismo climático é eviden-
ciado ainda pelo descaso com a prote-
ção ambiental. No início de abril, sema-
nas antes de os temporais fustigarem o
estado, o governador sancionou o Proje-
to de Lei 151, de autoria do deputado es-
tadual Delegado Zucco (Republicanos),
que flexibiliza o Código Estadual de Meio
Ambiente para permitir a construção de
barragens e açudes em Áreas de Preser-
vação Permanente. O projeto, aprovado
pela Assembleia Legislativa em março,
teve como justificativa a necessidade de
armazenar água para agricultura e pe-
cuária em períodos de estiagem, mas foi
alvo de críticas de ambientalistas. “O P

revê a destruição das margens de cór-
regos, rios e nascentes, ao mesmo tempo
que não trata da recuperação de hectare
algum dos passivos existentes”, obser-
vou o zootecnista Rodrigo Dutra da Sil-
va, analista ambiental do Ibama e repre-
sentante da Coalizão pelo Pampa.

 
Na verdade, o Código Estadual
de Meio Ambiente havia sido
desfigurado por parlamenta-
res gaúchos com as bênçãos do
governador. Em 2019, logo no
primeiro ano de mandato, o tu-
cano limou ou alterou 480 pontos da legis-
lação. O texto promulgado por Leite per-
mitiu, entre outras temeridades, que 49
atividades econômicas, 31 delas com altos
e médios potenciais poluidores, pudessem
fazer autolicenciamento ambiental, sem
análise prévia do Poder Público. Caso uma
vistoria posterior identificasse algum pro-
blema, o estrago estava feito. “Isso impac-
ta diretamente dois dos principais princí-
pios de proteção do meio ambiente, a pre-
caução e a prevenção. Além disso, a gente
sabe das dificuldades de capacidades ope-
racionais e de fiscalização que às vezes o
nosso órgão ambiental pode apresentar, e
isso trará um aspecto de irreversibilidade
para os danos ocasionados”, observou, à
época, Ana Marchesan, coordenadora do
Centro de Apoio Operacional de Defesa
do Meio Ambiente do Ministério Público.

 
O deputado estadual Leonel Radde, do
PT, lembra ainda que foi Leite quem pro-
pôs – e conseguiu aprovar na Assembleia
Legislativa – uma alteração da Lei nº 7.747,
de 22 de dezembro de 1982, para permitir
o uso de agrotóxicos proibidos até mesmo
nos países em que foram produzidos. O go-
vernador fechou ainda os olhos à inciativa
de deputados gaúchos para dispor 48 mi-
lhões de hectares de campos nativos à con-
versão agrícola. O projeto ameaça todos os
biomas brasileiros, mas afeta, sobretudo,
o Pampa, que ficaria com um terço do seu
território desprotegido. O texto original
foi proposto em fevereiro de 2019 por Al-
ceu Moreira, do MDB, e a versão aprova-
da pela Comissão de Constituição e Justi-
ça da Câmara em 20 de março é um subs-
titutivo do relator tucano Lucas Redecker,
correligionário do governador. “Isso mos-
tra a absoluta negligência de Leite com as
políticas de meio ambiente”, avalia Radde.
 
Preso na armadilha ambiental que ele
próprio montou, Leite não teve escolha
senão pedir socorro ao governo federal,
ainda que tenha preferido lançar mão de
uma jogada populista: solicitou auxílio por
meio de uma publicação em redes sociais,
como se o presidente Lula tivesse se recu-
sado a atender o telefone. O episódio pare-
ce ter aberto a porteira para o estouro de
uma boiada ávida para colher dividendos
políticos da tragédia. Em um evento em
Manaus, na sexta-feira 3, Jair Bolsonaro
pediu um minuto de silêncio pelas vítimas
da tragédia e aproveitou a bola levantada
por Leite para balbuciar um cínico discur-
so: “Os nossos irmãos do Rio Grande do Sul
estão sofrendo muito com uma catástro-
fe natural, eu lamento a ineficiência do Es-
tado brasileiro. Vivemos outras situações
no meu governo, e eu estaria lá com meus
ministros”. O ex-capitão só se esqueceu
de mencionar que Lula “estava lá” no dia
anterior, anunciando medidas emergen-
ciais, e retornaria ao estado no domingo 5.

 
Já Bolsonaro não se dignou a interromper
as férias, na passagem de 2021 para 2022,
para prestar auxílio à população da Bahia,
à época atingida por grandes inundações.
“O presidente da República estava passe-
ando num jet ski em Fernando de Noronha
e não se preocupou”, lembrou Lula, em re-
cente participação no programa Bom Dia,
Presidente, do CanalGov.

 
Aproveitando-se da onda de solidarie-
dade com as vítimas da tragédia, no Bra-
sil e no exterior, apareceram todos os tipos
de oportunistas. Aboletada em um cargo

comissionado na Secretaria Executiva de
Articulação Nacional do governo de San-
ta Catarina, Letícia Firmo, filha mais ve-
lha da ex-primeira-dama Michelle Bol-
sonaro, pediu Pix para sua conta bancá-
ria pessoal, prometendo repassar os valo-
res aos atingidos pelas chuvas. Expedien-
te semelhante foi adotado pelos deputados
federais Coronel Zucco e Carla Zambelli,
ambos do PL, que pediram doações para o
Instituto Harpia Brasil, sediado em Goiás
e presidido pelo ex-deputado Vitor Hugo,
ex-líder do governo Bolsonaro na Câmara.

 
Ofestival de mentiras que inun-
dou as redes sociais parecia
não ter fim. Kim Kataguiri,
deputado pelo União Brasil e
um dos fundadores do MBL,
compartilhou a fake news de
que a única rede de internet disponível no
Rio Grande do Sul era a Starlink, do bilio-
nário Elon Musk. Fosse verdade, os gaú-
chos estariam perdidos. O serviço via sa-
télite prestado pela empresa tem cerca de
150 mil pontos de acesso no Brasil, 0,3%
do mercado, segundo a Anatel. Na realida-
de, as operadoras Claro, Vivo e TIM conti-
nuam a operar no estado e até liberaram o
acesso à internet gratuita aos clientes das
regiões afetadas pelas enchentes – até a
conclusão desta reportagem, não consta
que o filantropo Elon Musk tenha aberto
o sinal para todos. Confrontado com os fa-
tos, Kataguiri limitou-se a apagar o post.

 
Outra bobagem compartilhada à exaus-
tão: Luciano Hang, dono das Lojas Havan,
teria cedido dois helicópteros para auxi-
liar nas buscas, o mesmo número de aero-
naves supostamente utilizadas pela For-
ça Aérea Brasileira. De fato, o empresá-
rio bolsonarista posou para fotos sobre-
voando as áreas inundadas e anunciou o
empréstimo. As Forças Armadas mobili-
zaram, porém, ao menos 30 helicópteros,
4 aeronaves, 866 viaturas e 182 embarca-
ções, além de enviarem quase 900 homens
do Exército, Marinha e Aeronáutica para
reforçar as equipes de resgate. Outros 734
agentes da Força Nacional, da Polícia Fe-

deral e da Polícia Rodoviária Federal fo-
ram enviados ao estado, com uma logística
de apoio a incluir 48 caminhonetes espe-
ciais, 20 viaturas comuns, 18 botes de res-
gate, 9 embarcações, 6 viaturas-reboque,
4 helicópteros, 2 caminhões, um jet ski e
uma carreta-tanque para abastecimento.
Não bastasse, as milícias digitais bolso-
naristas espalharam o boato de que o go-
verno federal investiu mais recursos no
show de Madonna, realizado na Praia de
Copacabana no sábado 4, do que no socor-
ro às vítimas do estado. Delírio completo.

 
O governo federal não investiu um centa-
vo sequer no espetáculo, custeado princi-
palmente com recursos privados do Ban-
co Itaú e da cervejaria Heineken, com va-
lores não divulgados. Houve ainda uma
complementação de 10 milhões de reais
da prefeitura do Rio de Janeiro e outros 10
milhões do governo do estado – uma baga-
tela, diante dos 300 milhões de reais que
o evento movimentou na economia local.

 
Em articulação com o Congresso, Lula
anunciou a liberação imediata de 580 mi-
lhões em emendas parlamentares indivi-
duais com aplicação direta em 448 muni-
cípios. O reconhecimento do estado de ca-
lamidade em 336 cidades facilita o repas-
se de verbas da União às prefeituras. Além
disso, o ministro do Desenvolvimento So-
cial, Wellington Dias, elencou uma série
de medidas para amparar diretamente a
população afetada. “Estamos disponibi-
lizando 807,2 milhões de reais em ajuda
humanitária, incluindo antecipação do
pagamento do Bolsa Família e BPC, auxí-
lio-gás, cestas de alimentos, kits de higie-
ne e limpeza, roupas, colchões e lençóis.”

 
O governo federal não pode ser acusa-
do de omissão de socorro, mas pode (e de-
ve) ser cobrado pelo descuido com a pre-
venção. Nos últimos dez anos, as verbas
federais para gestão de risco e resposta a
desastres naturais foram reduzidas a um
terço. Em 2014, foram reservados 4,3 bi-
lhões de reais em valores da época (cor-
rigido pelo IPCA, o montante chega a 7,8
bilhões). Neste ano, a previsão é de par-
cos 2,6 bilhões. Além disso, o Ministério
do Meio Ambiente ainda não apresentou
um plano consistente para adaptação cli-
mática, como o próprio presidente reco-
nheceu. “É preciso que a gente pare de cor-
rer atrás da desgraça. É preciso que a gen-
te veja com antecedência o que pode acon-
tecer de desgraça, para poder combater”,
afirmou a jornalistas no domingo 5. Na

 prática, observa o ambientalista Carlos
Bocuhy, presidente do Instituto Brasilei-
ro de Proteção Ambiental e colunista do
site de CartaCapital, a proposta em debate
ainda se encontra em plano teórico, “com
baixa capacidade transformadora, sem os
vínculos necessários com os entes federa-
dos e sem a intersetorialidade contida na
proposta inicial da ministra Marina Silva”.

 
Ainda que os meteorologistas
reconheçam que o dilúvio gaú-
cho superou todas as previ-
sões, especialistas acreditam
que os efeitos na região central
de Porto Alegre poderiam ter
sido menores. “Sempre me perguntam se
o sistema de proteção da capital está ul-
trapassado, e eu respondo que não. É um
sistema seguro, clássico e eficiente, mas
que demanda manutenção constante e
alguma modernização”, afirma Augusto
Damiani, ex-diretor do Departamento
de Esgotos Pluviais e do Departamento
Municipal de Água e Esgoto. O engenhei-
ro lamentou que, em 2019, o então pre-
feito Marchezan Júnior, do PSDB, des-
perdiçou, por descumprimento de pra-
zos, uma verba federal de 121,9 milhões
de reais destinada a obras de preven-
ção e cheias do Guaíba e de outros cur-
sos d’água. A atual gestão, do emedebis-
ta Sebastião Melo, tampouco se preocu-
pou em investir no sistema antienchente.

 
A prefeitura de Porto Alegre não
aplica recursos na área desde o início
de 2023. No Portal da Transparência,
a rubrica “melhorias no sistema contra
cheias” aparece zerada. O corte de in-
vestimentos contrasta com o superávit
do Departamento Municipal de Água e
Esgotos, que registrou lucro de 31,3 mi-
lhões de reais em 2023. “Na verdade, o
DMAE possui mais de 400 milhões de
reais em aplicações financeiras. Há,
sim, dinheiro para obras de infraestru-
tura”, afirma Damiani. Na avaliação do
diretor do Sindicato dos Municipários
de Porto Alegre, Edson Zomar, a estra-
tégia de Melo é sucatear a empresa para
depois privatizá-la. “Assim, fica mais fá-
cil convencer a população de que o servi-
ço público é ineficaz”, afirma. Trata-se
do mesmo artifício usado por Leite, em
2021, para entregar o braço de distribui-
ção da Companhia Estadual de Energia
Elétrica ao Grupo Equatorial, por mó-
dicos 100 mil reais.

 
Ex-presidente do Conselho de Arquite-
tura e Urbanismo do Rio Grande do Sul,
Tiago Holzmann da Silva acrescenta que o
governo estadual e as prefeituras gaúchas
têm um longo histórico de “destroçar a le-
gislação ambiental e os planos diretores
das cidades” para acomodar os interes-
ses do agronegócio e do mercado imobili-
ário. Esse processo, ressalta, deixou a po-
pulação ainda mais vulnerável às intem-
péries. “Em situação de normalidade, os
efeitos desta catástrofe poderiam ter si-
do minimizados”, diz. “Preci-
samos romper esse ciclo vicio-
so. Não adianta adotar ações
emergenciais, para estancar a
atual crise, e depois aguardar
a próxima tragédia.”

 
A avaliação é compartilha-
da por Nobre. “O que aconte-
ce no Rio Grande do Sul não
é uma tragédia natural”, sus-
tenta. “É consequência da
ação humana, da irrespon-
sabilidade e do descaso com
o meio ambiente.” •


CARTA CAPITAL