June 30, 2021

Governo Bolsonaro pediu propina de US$ 1 por dose, diz vendedor de vacina

 

  O diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias

Constança Rezende


O representante de uma vendedora de vacinas afirmou em entrevista à Folha que recebeu pedido de propina de US$ 1 por dose em troca de fechar contrato com o Ministério da Saúde.

Luiz Paulo Dominguetti Pereira, que se apresenta como representante da empresa Davati Medical Supply, disse que o diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, cobrou a propina em um jantar no restaurante Vasto, no Brasília Shopping, região central da capital federal, no dia 25 de fevereiro.

Roberto Dias foi indicado ao cargo pelo líder do governo de Jair Bolsonaro na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). Sua nomeação ocorreu em 8 de janeiro de 2019, na gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (DEM). A Folha tentou, sem sucesso, contato com Dias na noite desta terça-feira (29). Ele não atendeu as ligações.

A empresa Davati buscou a pasta para negociar 400 milhões de doses da vacina da AstraZeneca com uma proposta feita de US$ 3,5 por cada (depois disso passou a US$ 15,5). "O caminho do que aconteceu nesses bastidores com o Roberto Dias foi uma coisa muito tenebrosa, muito asquerosa", disse Dominguetti.

A Folha chegou a Dominguetti por meio de Cristiano Alberto Carvalho, que se apresenta como procurador da empresa no Brasil e também aparece nas negociações com o ministério. Segundo Cristiano, Dominguetti representa a empresa desde janeiro.

"Eu falei que nós tínhamos a vacina, que a empresa era uma empresa forte, a Davati. E aí ele falou: 'Olha, para trabalhar dentro do ministério, tem que compor com o grupo'. E eu falei: 'Mas como compor com o grupo? Que composição que seria essa?'", contou Dominguetti.

"Aí ele me disse que não avançava dentro do ministério se a gente não compusesse com o grupo, que existe um grupo que só trabalhava dentro do ministério, se a gente conseguisse algo a mais tinha que majorar o valor da vacina, que a vacina teria que ter um valor diferente do que a proposta que a gente estava propondo", afirmou à Folha o representante da empresa.

Dominguetti deu mais detalhes: ​"Aí eu falei que não tinha como, não fazia, mesmo porque a vacina vinha lá de fora e que eles não faziam, não operavam daquela forma. Ele me disse: 'Pensa direitinho, se você quiser vender vacina no ministério tem que ser dessa forma".

A Folha perguntou então qual seria essa "forma". "Acrescentar 1 dólar", respondeu. Segundo ele, US$ 1 por dose. "Dariam 200 milhões de doses de propina que eles queriam, com R$ 1 bilhão."

"E, olha, foi uma coisa estranha porque não estava só eu, estavam ele [Dias] e mais dois. Era um militar do Exército e um empresário lá de Brasília", ressaltou Dominguetti.

Questionado se teria certeza que o encontro foi com o diretor de Logística do ministério, Dominguetti respondeu: "Claro, tenho certeza. Se pegar a telemetria do meu celular, as câmeras do shopping, do restaurante, qualquer coisa, vai ver que eu estava lá com ele e era ele mesmo".

"Ele [Dias] ainda pegou uma taça de chope e falou: 'Vamos aos negócios'. Desse jeito. Aí eu olhei aquilo, era surreal, né, o que estava acontecendo."

"Eu estive no ministério, com Elcio [Franco, ex-secretário-executivo do ministério], com o Roberto, ofertando uma oferta legítima de vacinas, não comprou porque não quis. Eles validaram que a vacina estava disponível."

Segundo Dominguetti, o jantar ocorreu na noite do dia 25 de fevereiro, na véspera de uma agenda oficial com Roberto Dias no Ministério da Saúde e um dia após o país ter atingido a marca de 250 mil mortos pela pandemia do coronavírus.

"Fui levado com a proposta para o ministério e chegando lá, faltando um dia antes de eu vir embora, recebi o contato de que o Roberto Dias tinha interesse em conversar comigo sobre aquisição de vacinas", disse.

"Quando foi umas 17h, 18h [do dia 25], meu telefone tocou. Me surpreendi que a gente ia jantar. Fui surpreendido com a ligação de que iríamos encontrar no Vasto, no shopping. Cheguei lá, foi onde conheci pessoalmente o Roberto Dias", afirmou.

Dominguetti ​disse que recusou o pedido de propina feito pelo diretor da Saúde.

"Aí eu falei que não fazia, que não tinha como, que a vacina teria que ser daquela forma mesmo, pelo preço que estava sendo ofertado, que era aquele e que a gente não fazia, que não tinha como. Aí ele falou que era para pensar direitinho e que ia colocar meu nome na agenda do ministério, que naquela noite que eu pensasse e que no outro dia iria me chamar."

Dominguetti continuou então o relato daqueles dois dias. "Aí eu cheguei no ministério para encontrar com ele [Dias], ele me pediu as documentações. Eu disse para ele que teriam que colocar uma proposta de compra do ministério para enviar as documentações, as certificações da vacina, mas que algumas documentações da vacina eu conseguiria adiantar", afirmou.

Segundo ele, o encontro na Saúde não evoluiu. "Aí ele [Dias] me disse: 'Fica numa sala ali'. E me colocou numa sala do lado ali. Ele me falou que tinha uma reunião. Disso, eu recebi uma ligação perguntando se ia ter o acerto. Aí eu falei que não, que não tinha como."

"Isso, dentro do ministério. Aí me chamaram, disseram que ia entrar em contato com a Davati para tentar fazer a vacina e depois nunca mais. Aí depois nós tentamos por outras vias, tentamos conversar com o Élcio Franco, explicamos para ele a situação também, não adiantou nada. Ninguém queria vacina", afirmou.

Segundo ele, Roberto Dias afirmou que "tinha um grupo, que tinha que atender a um grupo, que esse grupo operava dentro do ministério, e que se não agradasse esse grupo a gente não conseguiria vender".

Questionado pela Folha sobre que "grupo" seria esse, ele respondeu: "Não sei. Não sei quem que eram os personagens. Quando ele começou com essa conversa, eu já não dei mais seguimento porque eu já sabia que o trem não era bom".

"A Davati começou a operar nessas vendas de insumos pro Covid. A Davati era uma empresa muito séria e aí me ofereceram a parceria de trabalhar com ela, de apresentar os produtos. E quando a Davati teve acesso a vacina, né, que realmente se concretizou que tinha acesso aos donos da vacina, aos investidores, me veio a proposta no sentido de tentar colocar a vacina no Brasil", afirmou Dominguetti.

"Era um sonho, na verdade era um sonho nosso. É uma realização até pessoal porque se a gente pegar um valor da vacina que ela tá sendo vendida lá fora e que ia ser colocado no Brasil era o mesmo. Não existia aquele negócio de majorar, de ganhar, era mais um sonho, a gente sonhava com isso. Fazia parte do processo, entrar na história como alguém que ajudou", disse.

O deputado Ricardo Barros negou, em rede social, ter indicado Roberto Dias para o cargo no Ministério da Saúde.

“Em relação à matéria da Folha, reitero que Roberto Ferreira Dias teve sua nomeação no Ministério da Saúde no início da atual gestão presidencial, em 2019, quando não estava alinhado ao governo. Assim, repito, não é minha indicação. Desconheço totalmente a denúncia da Davati.”

A suspeita sobre a compra de vacinas veio à tona em torno da compra da vacina indiana Covaxin, quando a Folha revelou no último dia 18 o teor do depoimento sigiloso do servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda ao Ministério Público Federal, que relatou pressão "atípica" para liberar a importação da Covaxin.

Desde então, o caso virou prioridade da CPI da Covid no Senado. A comissão suspeita do contrato para a aquisição da imunização, por ter sido fechado em tempo recorde, em um momento em que o imunizante ainda não tinha tido todos os dados divulgados, e prever o maior valor por dose, em torno de R$ 80 (ou US$ 15 a dose).

Meses antes, o ministério já tinha negado propostas de vacinas mais baratas do que a Covaxin e já aprovadas em outros países, como a Pfizer (que custava US$ 10).

A crise chegou ao Palácio do Planalto após o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), irmão do servidor da Saúde, relatar que o presidente havia sido alertado por eles em março sobre as irregularidades. Bolsonaro teria respondido, segundo o parlamentar, que iria acionar a Polícia Federal para que abrisse uma investigação.

A CPI, no entanto, averiguou e constatou que não houve solicitações nesse sentido para a PF. Ao se manifestar sobre o assunto, Bolsonaro primeiro disse que a Polícia Federal agora vai abrir inquérito para apurar as suspeitas e depois afirmou que não tem “como saber o que acontece nos ministérios”.

Nesta terça, o Ministério da Saúde decidiu suspender o contrato com a Precisa Medicamentos para obter 20 milhões de doses da Covaxin. Segundo membros da pasta, a decisão atual é pela suspensão até que haja novo parecer sobre o caso. A pasta, porém, já avalia a possibilidade de cancelar o contrato.

á nesta segunda-feira (28) a Folha também revelou que o advogado do deputado Ricardo Barros atuou como representante legal da vacina chinesa Convidecia no Brasil, participando inclusive de reunião com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Sócio do genro de Barros até março deste ano, o advogado Flávio Pansieri participou de reunião com a Anvisa no último dia 30 de abril. Segundo o site da agência, a pauta da reunião referia-se às “atualizações sobre a desenvolvimento da vacina do IVB [Instituto Vital Brazil] & Belcher & CanSinoBio a ser submetida a uso emergencial para a Anvisa”.

Integrantes da CPI da Covid querem apurar a negociação da Convidecia com o Ministério da Saúde. A empresa Belcher Farmacêutica, com sede em Maringá (PR), atuou como representante no país do laboratório CanSino Biologics no Brasil, responsável pelo imunizante.

No último domingo (27), Barros divulgou nota por ter sido citado pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) em depoimento à CPI da Covid como parlamentar que atuou em favor da aquisição de vacinas superfaturadas. Para se defender, o líder do governo apresentou a íntegra da defesa preliminar enviada à Justiça Federal. O documento é assinado por Pansieri.

O advogado também assumiu a defesa de Barros no STF (Supremo Tribunal Federal), após o deputado ter sido delatado por executivos da construtora Galvão Engenharia.

Além de atuar na defesa de Barros, Pansieri acompanhou o líder do governo durante encontro com o presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto no dia 24 de fevereiro, durante a posse do deputado do centrão João Roma (Republicanos-BA) como ministro da Cidadania.

 

FOLHA

 

 

 

 

 

June 29, 2021

Levantamento revela ligação de 80 agentes de forças de segurança com a milícia de Ecko

 Na casa onde Ecko estava escondido, policiais encontraram farda da PM, que ele usava para andar pela Zona Oeste sem ser reconhecido Foto: Reprodução / TV Globo

São pelo menos 51 PMs, 16 ex-PMs, sete policiais civis, cinco agentes penitenciários e um ex-policial civil; miliciano, que nunca foi policial, foi morto durante operação no último dia 12 

 Carolina Heringer e Rafael Soares

 Apesar de nunca ter sido policial, Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefe da maior milícia do Rio morto durante operação da Polícia Civil no último dia 12, tinha uma farda da PM. A vestimenta " que ostentava a patente de capitão na manga e a inscrição Braga, com o tipo sanguíneo A+ no peito " foi apreendida por policiais civis num armário da casa onde o miliciano foi encontrado, em Paciência, na Zona Oeste do Rio. Segundo a polícia, Ecko usava a farda para se locomover sem ser reconhecido. O "capitão Braga" tinha uma tropa sob seu comando: um levantamento feito pelo GLOBO em processos judiciais, inquéritos policiais e boletins internos da Polícia Militar identificou 80 agentes egressos de forças de segurança acusados ou investigados por integrarem ou se associarem à milícia de Ecko.


Ao todo, 51 PMs " 45 da ativa e outros seis reformados " são investigados ou foram acusados, ao longo dos últimos cinco anos, por ligação com o Bonde do Ecko. Outros 16 agentes que já foram expulsos da PM também aparecem no levantamento. Pelo menos dois policiais egressos da corporação ocupavam cargos de destaque na hierarquia da quadrilha: o ex-PM Carlos Eduardo Benevides Gomes, o Benê, e o sargento Antonio Carlos de Lima. Os dois são apontados como lugares-tenentes de Ecko em Itaguaí, na Baixada Fluminense, para onde a milícia se expandiu e fundou uma espécie de franquia em 2018.
Benê foi expulso da PM após ser preso portando uma arma em situação irregular num bar, em 2008. A partir de então, passou a trabalhar em tempo integral para o grupo paramilitar. Já o sargento Lima era um agente duplo: de serviço, dava expediente no 27º BPM (Santa Cruz), responsável por patrulhar a região que virou a base da milícia de Ecko; na folga, ajudou a quadrilha a invadir Itaguaí. Lá, Benê e Lima replicaram o modelo que garantiu o domínio da maior parte da Zona Oeste por Ecko: cobranças de taxas a moradores, assassinatos de adversários e exploração da venda de gás, gatonet e transporte alternativo.


A investigação da Polícia Civil e do Ministério Público que culminou na denúncia de Benê e Lima à Justiça, em 2018, também identificou outros integrantes das forças de segurança dentro do grupo. O agente penitenciário Adenilson Santos de Trindade é apontado como o antigo chefe da milícia local que perdeu o comando ao se aliar ao grupo de Ecko após sua chegada a Itaguaí. Já oito PMs do 24º BPM (Queimados), batalhão responsável pela área de Itaguaí, são citados ao longo do inquérito como responsáveis por intimidar as vítimas de extorsão do grupo. A denúncia do MP contra o grupo aponta que a "aliança com forças policiais" permitia que a milícia atuasse com "liberdade e desenvoltura". Segundo o documento, entre o fim de 2014 e o de 2018 a PM não realizou qualquer prisão em flagrante de integrantes da milícia em Itaguaí.


Lima e Trindade foram condenados e estão presos " o segundo, em regime domiciliar. Ambos ainda não foram expulsos de suas corporações e continuam recebendo salário. Já Benê morreu em uma troca de tiros com policiais civis na Rodovia Rio-Santos, em outubro do ano passado. Ao fim da investigação, os oito agentes do 24º BPM não chegaram a ser denunciados e seguem trabalhando normalmente.


Outra investigação revelou a participação de PMs em outra franquia da milícia de Ecko, a que atua nos bairros Ouro Verde e Jardim Canaã, em Nova Iguaçu, também na Baixada. Segundo um inquérito da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense que levou às prisões de seis PMs, o chefe do bando é o soldado Igor Ramalho Martins, lotado na UPP São João. Uma mensagem enviada por Igor a um comparsa revela que a milícia de Ecko fornece munição à filial.


Numa discussão sobre a quantidade de cartuchos que o bando tem à disposição, em janeiro de 2020, Igor afirma que "de 9mm, temos 12 caixas aqui, 6 mil munições que pegamos com o Tandera" " referência a Danilo Dias Lima, ex-braço direito de Ecko. O PM está preso desde o ano passado, mas segue na corporação.


Cinco dos agentes identificados no levantamento tinham como função prover segurança aos chefes da milícia. Um deles é o ex-sargento PM Fabiano da Cunha Lamarca, preso em flagrante, em outubro de 2015, atuando como guarda-costas de Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, irmão de Ecko, hoje cotado para assumir a chefia da milícia.
pm como segurança


Na ocasião, Lamarca foi capturado por policiais civis do lado de fora de uma barbearia em Paciência, onde o chefe era atendido. O sargento, na época ainda na ativa, admitiu que fazia segurança do miliciano. Zinho também confirmou a versão, mas negou sua participação na milícia: afirmou ser empresário e disse ter resolvido andar com seguranças por ter medo de ser roubado.


Em 2017, Lamarca foi condenado a 15 anos de prisão por porte ilegal de arma de fogo de uso restrito e por integrar organização criminosa. Ele chegou a ficar preso, mas hoje recorre da sentença em liberdade.


Há também policiais civis na lista. Em 2018, um delator contou ao MP que agentes da 36ª DP (Santa Cruz), cobraram propina de Zinho, para não prendê-lo em flagrante por desmatamento ilegal de um terreno. Zinho argumentou que a milícia pagava propina semanalmente à delegacia. Os agentes foram presos na Operação Quarto Elemento.


Procurada, a PM alegou que os agentes citados que ainda seguem na corporação respondem a Conselho de Disciplina e podem ser expulsos. A Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) afirma que o agente Adenilson Santos de Trindade responde a processo administrativo disciplinar. A Polícia Civil informou que os policiais citados respondem a processos administrativos disciplinares.

 

June 26, 2021

Ao flertar com tragédia e glória, Dinamarca mostra seu DNA imponderável no futebol

 


Alex Sabino

São Paulo

Em pouco mais de uma semana, a Dinamarca viveu extremos em sua jornada na Eurocopa. Foi do drama ao êxtase. Agora pode fazer história outra vez.

Em 12 de junho, durante a estreia da seleção contra a Finlândia, o meia Christian Eriksen sofreu parada cardíaca em campo e teve de ser ressucitado pela equipe médica. Na última segunda (21), o time fez 4 a 1 na Rússia e conseguiu o que parecia ser uma improvável classificação para as oitavas de final.

A quase tragédia e reviravolta fizeram a Dinamarca se transformar na preferida do torcedor neutro na competição europeia. O que não é novidade.

"Nós ousamos sonhar grande, mas sabemos que há equipes maiores com melhores chances de vencer. É futebol, e em 90 minutos tudo pode acontecer", diz o técnico Kasper Hjulmand.

Neste sábado (26), às 13 horas (de Brasília), o rival será o País de Gales, em Amsterdã, com transmissão do SporTV. É uma campanha que pode reviver os anos em que a Dinamarca era a seleção mais cult do planeta.

Cada jogo na Copa do Mundo do México era como se fosse carnaval", afirma o jornalista Mike Gibbons, um dos autores do livro Danish Dynamite: The Story of the Football Greatest Cult Team (Dinamite Dinamarquesa: A História do Maior Time Cult da História, em inglês), sobre aquela equipe dos anos 1980.

Na primeira vez em que se classificaram para o torneio europeu, em 1984, chegaram à semifinal. Seus jogadores não foram as únicas atrações. A Eurocopa nunca tinham visto torcedores como aqueles, dispostos a festejar por 24 horas, sem arrumar brigas e a trocarem souvenirs com gente de outras nações.

Dois anos mais tarde, no Mundial de 1986, enquanto algumas seleções se encastelaram em concentrações, a Dinamarca passou o torneio em hotel na Cidade do México que era aberto a torcedores, imprensa e cidadãos locais.

"Eles se tornaram tão populares que no dia em que foram embora, após a eliminação, os funcionários do hotel choraram", lembra o jornalista do país Lars Eriksen, outro autor da obra.

A imagem de alegria não a Dinamarca ser detestada nem pelo maior rival. Quando foi a improvável campeã europeia de 1992, em Gotemburgo, seus torcedores festejaram com os suecos, anfitriões do torneio.

"Fomos azarões a campanha inteira. Nem deveríamos estar lá e jogamos a semifinal contra a Holanda e a final contra a Alemanha. Sempre tivemos a torcida de quem não era holandês ou alemão", constatou o atacante Brian Laudrup após a maior zebra da história da Eurocopa.

O país não havia se classificado para o torneio. Pouco mais de uma semana antes da abertura, foi convidado a participar na vaga da Iugoslávia, suspensa por causa da guerra nos Balcãs. A maioria dos jogadores estava de férias e teve de voltar às pressas.

Tratou-se apenas de mais um imponderável de quem se se habituou a não ser comum no futebol.

Até 1971, o esporte na Dinamarca era amador, apesar de ter uma das federações fundadoras da Fifa. Isso significava que se o atleta fosse para um clube do exterior e passasse a viver financeiramente do futebol, não seria mais convocado. O profissionalismo fez a qualidade local crescer. O meia Allan Simonsen ganhou a Bola de Ouro de melhor jogador da temporada em 1977.

A condição de time cult apareceu com a chegada do alemão Sepp Piontek, em 1979. Ele mesmo um técnico difícil de se achar. Aceitou o convite do ditador Jean-Claude Baby Doc Duvalier para dirigir a seleção do Haiti em 1976 e tinha de visitá-lo regularmente para falar sobre táticas. Claro que a experiência não deu certo. Em parte também, ele afirma, porque os jogadores se trancavam nos quartos nas noites anteriores aos jogos para beber e praticar sessões de vodu.

Piontek os viu ficarem em estado alucinógeno tão grande que passavam dias como zumbis. A gota d'água para ele foi quando reclamou da qualidade da comida na concentração e o cozinheiro sacou uma metralhadora.

Ele era o nome certo para transformar a seleção da Dinamarca. Era preciso saber administrar um elenco tão talentoso quanto improvável. Michael Laudrup foi para a Copa de 1986 como o menino prodígio do time. Para o volante Xavi, do Barcelona, o dinamarquês é o maior jogador da história.

Seu companheiro de ataque era Elkjaer-Larsen, campeão italiano com a Hellas Verona em 1985. Artilheiro e colunista de revista pornográfica em seu país, o jogador instituiu um bordel de Copenhagen como concentração informal da equipe.

"Para muitos de nós, não era informal, não. Era a oficial mesmo", se recorda o líbero Morten Olsen.

Foi essa a equipe que conquistou torcedores neutros na Eurocopa de 1984, na França, e no Mundial de 1986, no México, iniciou a trajetória improvável da Dinamarca em torneios internacionais. O time que naquele mundial foi capaz de fazer 6 a 1 no Uruguai e ser eliminado após perder por 5 a 1 para a Espanha.

A Dinamarca há muito tempo produz gente peculiar no futebol. Como Niels Bohr, nome amador de clubes locais que ficou tão frustrado por não conseguir chegar à seleção que abandonou a carreira e prometeu fazer algo para ficar marcado na história.

le ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1922. Depois trabalhou no Projeto Manhattan, que inventou a bomba atômica, fundou a CERN, entidade que criaria a internet e tem um elemento da tabela periódica batizado em sua homenagem.

"Nós gostamos de contrariar o que é lógico. E também gostamos de sonhar alto", define o atacante Mikkel Damsgaard, autor do primeiro gol na goleada sobre a Rússia que classificou o time para enfrentar o País de Gales neste sábado.

June 20, 2021

Vacinação em Paquetá: os bastidores do experimento científico que imunizará um bairro inteiro pela primeira vez

 O bebê André Dimopoulos é testado para Covid-19 no colo da mae, que cantarolava Cazuza para acalmar o filho Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Rodrigo de Souza

 O sol ainda brota na Baía de Guanabara, mas para eles o dia já começou há muito tempo. Embora o evento longamente aguardado só aconteça no domingo, a barca com destino a Paquetá que saiu do Centro do Rio nesta sexta-feira, às 6h20 da manhã, já estava lotada de voluntários da Secretaria municipal de Saúde. Eles vão atuar no projeto "PaqueTá Vacinada", que pretende imunizar toda a população adulta da ilha e, assim, averiguar os efeitos da vacinação contra a Covid-19 em larga escala. São 230 jovens estudantes de diferentes áreas, como medicina, enfermagem e até estatística — todos vindos "do continente", como dizem os moradores da ilha. Jovens que não receberão nada por seu trabalho exceto o dinheiro da passagem da barca, movidos por nenhum outro incentivo além de seu compromisso com a ciência e com a vida.

Um deles é Lígia Wanderley, de 20 anos, aluna do 5° período de medicina da Unigranrio. Moradora de Laranjeiras, na Zona Sul, ela desembarcou em Paquetá acompanhada de outros cinco colegas de faculdade, provenientes de lugares como Sulacap e Taquara, na Zona Oeste, e Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.

 

— Já estávamos envolvidos nesse processo de vacinação no Rio, atuando em alguns postos na Zona Oeste, e por isso resolvemos ajudar aqui também. Não ganhamos nada além de hora complementar na faculdade, mas a experiência vale mais do que qualquer outro tipo de recompensa. É clichê, mas é verdade. A troca que a gente tem com a população é o que importa — diz Lígia.

Veja: Carnaval fora de época em Paquetá após conclusão de experimento sobre vacinação divide moradores, que temem turistas

De quinta a sábado, os voluntários trabalharão no inquérito epidemiológico do Instituto Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que tem como objetivo monitorar o perfil imunológico da população de Paquetá após a vacinação. Coordenados pelo infectologista José Cerbino Neto, os pesquisadores também querem saber se a vacina de Oxford/Astrazeneca, o imunizante em estudo, já garante proteção após a primeira dose ou se só após a segunda. Uma outra força-tarefa de testagem, ainda sem data definida, acontecerá depois que os vacinados no domingo já tiverem tomado a injeção de reforço. E, na etapa seguinte, Paquetá sediará o primeiro evento-teste da cidade, que o prefeito Eduardo Paes já chegou a chamar de “carnaval fora de época”. Segundo a SMS, a comemoração terá lugar num local aberto, o Parque Darke de Mattos, e receberá cerca de 600 pessoas, todas elas habitantes de Paquetá ou vacinados.

— O objetivo do projeto é antecipar, em Paquetá, uma situação de proteção coletiva que a gente vai alcançar na cidade daqui a alguns meses. Assim, vamos poder antecipar também uma série de medidas de controle e de vigilância de casos quando alcançarmos o mesmo nível de cobertura vacinal na capital — diz Cerbino.

Covid-19: Rio vacina esta semana todos os moradores acima de 50 anos; confira o calendário

Com a ajuda dos estudantes, a Prefeitura do Rio espera testar, em três dias, 3 dos 4,1 mil moradores do bairro. Em consonância com o espírito de colaboração que arrebatou a ilha, o processo seletivo do voluntariado teve quase 600 inscrições num só dia, segundo Luiz Felipe Pinto, assessor especial da Secretaria de Saúde.

— Tivemos que encerrar o processo antes da hora, senão haveria aglomeração de voluntários aqui. Nosso critério foi dar preferência a quem já tinha experiência prévia de pesquisa ou estava mais avançado na faculdade — afirma.

Calendário: Rio acelera vacinação e prevê primeira dose para todos os adultos até o fim de agosto

Nos testes, a população da ilha foi dividida em três grupos: maiores de 18 anos que já tomaram a vacina, cerca de 1800 pessoas; menores de 18 anos, cerca de 700 pessoas; e maiores de 18 que não se vacinaram ainda, cerca de 1600 pessoas. Além do exame sorológico, cada pessoa examinada também teve de dizer, por meio de um questionário, se já teve sintomas de Covid-19, com que frequência costuma sair da ilha e se está em home office, entre outras perguntas. Depois de cada turno de trabalho, as amostras de sangue são levadas por helicóptero à sede da Fiocruz, em Manguinhos. Os resultados devem ser divulgados no dia 20 de junho de 2022.

Lígia e seus amigos foram designados para trabalhar no Paquetá Iate Club, que recebeu o grupo 2, composto por crianças e adolescentes, todos acompanhados pelos pais. Fernanda Cardoso, de 6 anos, foi a primeira a receber o teste rápido na manhã desta sexta-feira. Tímida, foi sucinta ao descrever como se sentia por poder participar do estudo: “Feliz”. Já a segunda da fila, Maria Isabel, de 7 anos, foi tagarela. Vestida com o uniforme da rede municipal de Educação, repetia: “Quero ser médica”.

As crianças também foram testadas: a menina Maria Isabel Quintino é testada para Covid-19 Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Corrida da vacina: Cláudio Castro fica 'parado', e calendário estadual não tem previsão de antecipação

Durante a coleta, a técnica de enfermagem Andreia dos Santos, de 47 anos, cantava baixinho versos de “Exagerado”, de Cazuza, para acalmar o pequeno André Dimopoulos, de 11 meses, que esperneava com o furo no pezinho. Enquanto o filho chorava, Andréia chorou junto, mas sabia que tudo aquilo valeria a pena.

— Ele não sabe nada do que está acontecendo, não sabe o quanto está sendo importante — diz. — A gente viu tanta gente morrendo, tanto terror. Só de sabermos que, da noite para o dia, a cidade vai estar toda vacinada… É o medo que vai embora.

O bebê André Dimopoulos é testado para Covid-19 no colo da mae, que cantarolava Cazuza para acalmar o filho Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Prefeito: Eduardo Paes é vacinado na Portela e pode acelerar o calendário em reunião com Queiroga nesta sexta-feira

Por outro lado, há quem já esteja vacinado faz algum tempo e que, mesmo com todos os motivos para ficar em casa, resolveu colaborar como pôde. Foi o caso de Dinah Proença, de 85 anos.

— Eu particularmente não viria, porque minha veia é horrível para colher sangue, é sempre um sacrifício. Mas, como soube que era para fazer pesquisa, achei necessário vir. Meu recado para a população de Paquetá é: venham e contribuam — afirma a dona de casa.

Covid-19:Projeção aponta que vacinação na cidade do Rio já salvou a vida de mais de 1.500 idosos

Segundo o vendedor Gustavo Pjader, de 24 anos, que também realizou exame de sangue ontem no posto Manoel Arthur Villaboim, toda a ilha foi tomada por um desejo de fazer o projeto dar certo:

— Vejo uma mobilização de pessoas, inclusive das que já se vacinaram, para fazer a coleta. Uma mobilização importante para a pesquisa. É muito legal ver o pessoal querendo ajudar, querendo fazer o bem para o outro. Isso é humanidade, é assim que a gente evolui.

A polêmica do ‘carnaval’


Como tantos outros paquetaenses, Dinah se opõe ao “carnaval” que Eduardo Paes anunciou, por achar que “ainda não é hora de comemorar”.

Segundo a SMS, o evento só deve ocorrer em meados de setembro, ou quando já não houver mais casos de doença na cidade. Mesmo assim, o assunto dá pano para manga. Entre os jovens da ilha, a ideia foi recebida de um jeito diferente.

Turismo da vacina: Cidade do Rio já aplicou 85 mil doses em pessoas de outros estados

— O pessoal está muito alegre, porque seremos o primeiro bairro completamente vacinado contra a Covid-19. E, com essa notícia de que talvez haja um carnaval adiantado aqui, os jovens estão querendo essa vacina o mais rápido possível. Estou ansioso para poder passear no continente de novo, ir a praia, shopping… — afirma o vendedor Márcio Martins, de 26 anos.

Os jovens de Paquetá serão os primeiros a se vacinar em todo o Rio. Mas, em muitos casos, a ansiedade não se deve só à possibilidade de diversão.

— Trabalho como vendedor no Centro do Rio, e por isso me exponho muito. Também vi muita gente querida morrendo, por isso a vacina me dá mais segurança — diz Gustavo Pjader.

Segundo a Secretaria municipal de Saúde, Paquetá tem uma população de 4.180 moradores, dos quais 3.530 são maiores de 18 anos cadastrados. Até a manhã de 17 de junho, 1.946 moradores da ilha já tinham recebido a primeira dose e 1.132 já tinham tomado a segunda.

Às 9h desta quinta-feira, 2 mil doses da vacina de Oxford/Astrazeneca saíram do Rio de Janeiro rumo a Paquetá, onde serão distribuídas neste domingo após uma cerimônia que contará a participação do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e pela presidente da Fiocruz, Nisia Trindade.

Os voluntários e servidores da prefeitura embarcarão na Praça XV rumo a Paquetá amanhã às 7h. Já as comitivas das autoridades partirão da Ilha do Governador numa lancha em horário próximo. A vacinação só deve começar quando todos chegarem. Serão quatro postos: o Parque Darke de Mattos, o Paquetá Iate Clube, o posto Manoel Arthur Villaboim e a Casa de Artes Paquetá. Para evitar aglomerações, a população comparecerá aos postos em horários escalonados, seguindo o critério de idade.

O Globo

Temor por turistas: Carnaval fora de época em Paquetá após conclusão de experimento sobre vacinação divide moradores

 

Estudantes voluntários de universidades são orientados a lidar com o público Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Estudantes voluntários de universidades são orientados a lidar com o público Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Voluntarios da Fiocruz tiram sangue de paquetaenses no experimento de vacinaçao em massa na Ilha Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Voluntarios da Fiocruz tiram sangue de paquetaenses no experimento de vacinaçao em massa na Ilha Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

 

June 18, 2021

As marcas da pandemia

 

 

POR ANA FLÁVIA GUSSEN

Dez meses depois de vencer
a Covid-19, Jéssica Laís
sente cheiro de sangue.
Sentar-se à mesa com a
família tornou-se uma
tortura, por causa do enjoo incontrolá-
vel que temperos básicos lhe provocam.
Gabriel Ribeiro evita sair às ruas. Sete
meses depois de testar positivo, ele não
consegue ter a mesma mobilidade nas
pernas. O medo de tropeçar e cair faz
com que evite sair de casa para fazer as
coisas mais básicas. Clarissa Ymasuda
é médica e desde que foi infectada viu
suas funções neurológicas mudarem.
As sequelas cognitivas a deixam triste:
“Parece que estou mais lenta para tu-
do”. Luiza viu mais da metade dos fios
de cabelo caírem.


Jéssica, Gabriel, Clarissa e Luiza in-
tegram o universo de 1,7 milhão de bra-
sileiros que desenvolveram a chamada
“síndrome pós-Covid” até 12 semanas
após o contágio, segundo projeções da
Organização Mundial da Saúde. Outros
3,25 milhões apresentam sintomas por
até quatro semanas depois de testarem
positivo. Os dados não deixam dúvidas,
há uma segunda crise sanitária, total-
mente silenciosa, em meio ao colapso pú-
blico causado pela pandemia no Brasil.

Em 22 de abril, a revista científica
Nature divulgou o maior estudo publi-
cado a respeito do tema até agora. Con-
duzida por pesquisadores da Escola de
Medicina da Universidade de Washing-
ton, a pesquisa envolveu 87 mil diag-
nosticados com Covid-19 e 5 milhões
de indivíduos saudáveis. De acordo com
a publicação, o risco de morte entre os
infectados é 59% maior, mesmo entre
aqueles que haviam sido diagnostica-
dos seis meses antes. Além das sequelas
pulmonares, descobriram os pesquisa-
dores, foram desenvolvidos distúrbios
neurocognitivos, de saúde mental, me-
tabólicos, cardiovasculares, gastroin-
testinais, mal-estar, fadiga, dores mus-
coesqueléticas e anemia. Casos de in-
fartos e arritmias são inúmeros. Es-
pecialistas afirmam que 80% dos pa-
cientes de Covid-19 relataram sentir ao
menos um desses sintomas. “Estou há
dez meses com olfato e paladar distor-
cidos. Não posso comer perto de nin-
guém, porque temperos como alho e ce-
bola têm um cheiro horrível para mim.
Tenho sentido cheiro de carne crua. Se
meu marido chega suado do trabalho,
eu sinto cheiro de sangue. Tenho me-
do de prejudicar a educação alimentar
de meus filhos de 5 e 7 anos”, desabafa
Laís, de 29 anos, moradora de Joinvil-
le, que não chegou a ser hospitalizada.


Luiza, que tem 30 anos e prefere não
se identificar, perdeu metade dos cabe-
los. Ela buscou tratamento com dife-
rentes médicos, seus exames estão to-
dos sob controle, mas o problema não 

cessa desde que se curou do vírus, em
fevereiro. “É desesperador. Não para de
cair e ninguém consegue me ajudar.”
Ribeiro, de 38 anos, ficou 42 dias inter-
nado e dez dias entubado. Hoje, convi-
ve com as sequelas da internação e tam-
bém com novos distúrbios que surgi-
ram depois de ter deixado um hospital
na capital paulista. “Eu tinha uma es-
cara de 8 centímetros de profundidade
e quase 8 de largura. Cinco meses de-
pois ela está com 1 centímetro, mas ain-
da preciso trabalhar de bruços, pois sin-
to muita dor se fico sentado muito tem-
po. Um médico também me diagnosti-
cou com ‘pé equino’. Fiz fisioterapia
pra voltar a andar, mas disseram que
posso ficar com sequelas. Tenho medo
de andar na rua e cair. Ainda não acho
que venci a Covid”, afirma. Ele também
relata lentidão no raciocínio, sintoma
muito comum entre os infectados, ao
lado de depressão e ansiedade.


Ribeiro passou pelo terror que muitos
jovens vivem com a P1, conhecida como
“variante brasileira”. Após três testes
negativos, a doença só foi confirmada
depois da internação. No hospital, ele
teve de optar pela entubação. Ribeiro
conta que ligou para a mãe, a tia e um
amigo e colega de trabalho, que viria a
falecer de Coronavírus quatro meses
depois, para avisar da decisão. “Minha
mãe ficou desesperada. Fiz uma cha-
mada de vídeo com eles e avisei que se-
ria entubado. Os piores dias foram os
cinco primeiros, quando minha con-
dição respiratória piorou, meus rins
também e precisei até fazer diálise.”

No fim, ele escapou das estatísticas.
No ano passado, 80% dos entubados
não sobreviveram.


Um estudo brasileiro apresenta
conclusão alarmante sobre a síndro-
me pós-Covid: diferentemente do que
se pensa, 89% daqueles que desenvol-
veram sequelas nem sequer chega-
ram a ser internados. Dos 8 mil ava-
liados, quase 52% apresentaram fadi-
ga e cansaço, 43% problemas de memó-
ria, 32,9% dores de cabeça e quase 20%
problemas com atividades motoras ou
dificuldade de coordenação, segundo a
pesquisa NeuroCovid, coordenada pela
neurologista Clarissa Yasuda, profes-
sora assistente de Neurologia da Facul-
dade de Ciências Médicas da Unicamp.
Vale ressaltar que a maior parte dos pa-
cientes que desenvolveram sequelas,
segundo a pesquisa da Unicamp, teve
sintomas semelhantes a uma “gripezi-
nha”, nas palavras de Jair Bolsonaro.


“Temos de considerar que a maioria
dos pacientes avaliados ficou isolada em
casa durante a doença. Temos de pen-
sar que, quando um paciente é entubado
ou internado devido à baixa saturação,
ele tem um quadro de hipoxia, então há,
na maior parte das vezes, uma pau-
sa respiratória e chances maiores
de lesão. Mas, neste caso, estamos
falando de quem nem sequer preci-
sou ser internado”, alertou a neuro-
logista, igualmente afetada por sequelas
da Covid-19. “Sinto na pele o que muitos
relatam. Fiquei em casa isolada e agora

sinto mudanças neurológicas, como se
fosse mais lenta. É triste”, conta a médi-
ca, que apresentou sua pesquisa em um
encontro organizado pela Organização
Mundial da Saúde em 20 de abril.


Os casos relatados a CartaCapi-
tal têm em comum a dificuldade de
encontrar respostas para os problemas
surgidos após a doença. “Me sinto com-
pletamente sozinha”, afirma Laís. O es-
tudo da Nature sugere que organizações
sanitárias e governos criem protocolos
e orientem as redes pública e privada
para enfrentar a síndrome pós-Covid,
que tende a se intensificar nos próxi-
mos meses e afetar a economia. Muitos
pacientes relatam dificuldade para tra-
balhar. No Brasil, passado mais de um
ano do início da pandemia, o Ministério
da Saúde foi, no entanto, incapaz de pre-
parar um protocolo nacional para o tra-
tamento da doença, nem se fale de pla-
nejar medidas que atenuem a síndrome.


“Estamos experimentando não só um
impacto na economia, com trabalha-
dores com dificuldade de exercer suas
funções, mas estamos vendo resultados
de um nó no sistema de saúde, com atra-
sos em diagnósticos de doenças como
câncer, HIV, pois temos falta de ofer-
ta de vários serviços”, afirma Wla-
dimir Queiroz, consultor da Socie-
dade Brasileira de Infectologia. Se-
gundo Yasuda, a “variante brasilei-
ra” amplia consideravelmente a so-
brecarga do sistema de saúde. “Pre-
cisamos que o governo ajude. Não vejo
iniciativas para lidar com essa deman-
da de retorno dos pacientes. Há luga-
res que tentam organizar a reabilita-
ção que envolve o pós-Covid, mas não
vejo isso como política nacional.” En-
quanto uma CPI se desenrola no Con-
gresso e os números de óbitos não sensi-
bilizam Bolsonaro, muitos, como Laís,
se sentem sozinhos em busca de respos-
tas que parecem longe de ser prioridade
no país que caminha para 500 mil mor-
tos pelo vírus. • 

CARTA CAPITAL



June 15, 2021

Série 'Meu amigo Bussunda' reconstrói trajetória e morte do humorista

  Bussunda: os pais do homorista achavam que ele

Maria Fortuna

 A série “Meu amigo Bussunda” é recheada de histórias hilárias sobre o mais carismático integrante da turma do Casseta & Planeta. Mas a passagem mais forte do documentário, que estreia no Globoplay quinta-feira, data dos 15 anos de sua morte, vai fazer muita gente chorar. Com direção geral do parceiro de grupo Claudio Manoel, o programa reconstrói o dia da súbita partida do humorista Cláudio Besserman Vianna durante a cobertura da Copa do Mundo da Alemanha, em 2006.

 Em depoimentos emocionados, amigos e equipe de trabalho relembram as gravações do programa na cidade de Parsdorf e a pelada no campo de futebol do hotel, que Bussunda encarou após traçar um joelho de porco regado a tulipas de cerveja. Também relatam o instante em que ele sofreu uma parada cardíaca.

— Não é que vi o Bussunda, o cara que eu mais gostava na vida, morrer metaforicamente. Foi literalmente mesmo — lamenta Claudio Manoel. — Enfrentar a dor esmagadora não foi possível. Então, durante muito tempo, tentei fugir ou me fazer de invisível diante dela.

Júlia Besserman: 'Quando meu pai morreu, eu fiquei míope', diz filha de Bussunda

Na série, Claudio, que é ao mesmo tempo entrevistador e testemunha, conta que sequer conseguia tocar no assunto. Carregava a culpa por ter sido o autor da ideia da tal partida de futebol. Se o tempo não cura tudo, ameniza. E, agora, ele não só fala sobre o tema como rodou um documentário, produzido por Emoções Baratas e Kromaki, que funciona como catarse. Claudio joga ali toda a carga sentimental de suas perdas nos últimos 15 anos. Seis meses depois da morte de Bussunda, ele perdeu o irmão. Em seguida, o pai. Um dia antes de começar a gravar programa, ano passado, foi a vez de sua mãe. O diretor dedica o trabalho aos três.

Fora as dores, a série é, sobretudo, uma bonita celebração da existência de Bussunda, dividida em quatro episódios. Os três primeiros, com direção e roteiro de Claudio e Micael Langer, lançam mão de imagens inéditas e de arquivo, entrevistas com parentes e amigos, colegas e integrantes do Casseta para narrar a trajetória do humorista, da infância à juventude. É quando surge o famoso apelido, resultado da aglutinação dos nomes Besserman e sujismundo. Por causa da falta de banho na colônia de férias que frequentava, acabou virando o “Besserman Sujismundo”. Depois, a alcunha evoluiu para “Bessermundo” e, por fim, “Bussunda”.

Parceria: Micael Langer e Claudio Manoel dirigem
Parceria: Micael Langer e Claudio Manoel dirigem 'Meu amigo Bussunda' Foto: Lucas Seixas

Pouco antes do sucesso do “Casseta & Planeta Urgente” na TV Globo, os pais do humorista reuniram os outros dois filhos (o economista Sergio e o médico Marcos) para pedir que sustentassem o irmão que “não daria em nada”. Mal sabiam que o estudante de Comunicação da UFRJ, que fora jubilado da faculdade, se tornaria o mais famoso dos três. E continuaria nem aí para dinheiro. Chegou até a esquecer o cheque de seu primeiro salário na Globo por meses na mesa de cabeceira. “Só lembrou quando recebeu o segundo pagamento. Aí comprou uma fatiadora, porque queria comer mortadela”, lembra a viúva, Angélica Nascimento.

Bussunda com a filha, Júlia Foto: arquivo / Arquivo pessoal
Bussunda com a filha, Júlia Foto: arquivo / Arquivo pessoal

O quarto episódio tem direção da filha de Bussunda, Júlia Besserman (leia entrevista exclusiva com ela) de 27 anos. Incomodada com o tom de certas graças do pai, Júlia problematiza piadas convidando humoristas da nova geração a debaterem o assunto. Desta forma, ela traz um olhar e reflexões atuais para a série. O público fica sabendo que mesmo naqueles tempos de humor politicamente incorreto, os Cassetas tiveram que lidar com críticas por batizarem de “preto com um buraco no meio” o vinil lançado com composições do grupo. O próprio Bussunda lembra a madrugada em que teve que dar explicações à feminista Lélia Gonzalez sobre a letra “mãe é mãe, paca é paca.../ mulher é tudo vaca”.

Júlia Besserman, filha de Bussunda, dirigiu um episódio do documentário sobre o pai Foto: Lucas Seixas
Júlia Besserman, filha de Bussunda, dirigiu um episódio do documentário sobre o pai Foto: Lucas Seixas

Além de saber da influência do Casseta na comédia atual e testemunhar debate sobre mudanças no humor ao longo do tempo, o espectador se diverte com “causos” de Bussunda, “verdadeiro isca de polícia”. Um dia, barbado, cabeludo e vestindo Havaianas, como sempre, foi parado em blitz na estrada. O policial encontrou papel de seda no porta-luvas e o perguntou: “Cadê a maconha?”. Resposta: “Vou comprar lá em Teresópolis”. E o guarda: “Mas não sabe que é proibido?”. No que Bussunda encerrou: “Ah, então, pode deixar que não vou comprar, não”.

Teve a vez em que encarnou Tim Maia no “Faustão”. O cantor deu o cano no programa, e Bussunda entrou em cena com enchimentos que aumentavam suas já generosas medidas. Foi o bastante para provocar a ira de Tim, que o ameaçou com uma surra. “Só não tenho medo porque sei que, na hora da porrada, ele não vai aparecer”, divertiu-se o humorista, ao comentar o episódio em uma entrevista.

Fingir-se de cego no ônibus para arrecadar dinheiro e depois torrar no bar era uma de suas gaiatices. Em outro golpe, fazia de conta que era péssimo na sinuca. Assim que um desavisado se aproximava, dizia que só jogava a dinheiro. Pensando estar diante de uma barbada, o inocente apostava e... tomava uma coça.

Por trás dessas gaiatices, havia uma pessoa doce, que ficava possesso com exemplos de falta de civilidade, como o tráfego em acostamentos. Única mulher do Casseta, Maria Paula define Bussunda como “um ursinho de pelúcia que cuidava de mim”. Hélio de La Peña destaca o otimismo (“sempre achava que tudo ia dar certo”), reforçado por Beto Silva: “Quando todo mundo ficava nervoso, a gente olhava para ele para saber se estava tudo bem assim como olha a aeromoça na hora que avião começa a balançar”.

— Quem assistir à série vai se apaixonar pelo ser humano encantador, justo, equilibrado, sarcástico, companheiro. Um cara que gostaríamos de ter como amigo, de quem ninguém fala mal — diz Micael Langer. — Quando li a biografia do Bussunda, só pensava em como minha vida era sem graça.

O GLOBO

 

 

June 5, 2021

Cova América

 

 


ESCÁRNIO Bolsonaro ignorou por meses as ofertas de vacinas,
mas deu aval ao torneio de futebol em tempo recorde


POR VICTOR CALCAGNO 

Em agosto de 2020, a Pfizer
encaminhou ao Ministério
da Saúde três ofertas para
fornecimento de 70 milhões
de doses de vacina. Todas
elas previam entregas ainda no ano
passado, mas foram ignoradas pelo gover-
no. Em 12 de setembro, quando o CEO do
laboratório, Abert Bourla, encaminhou
carta ao presidente Jair Bolsonaro e seus
principais ministros, a indústria farma-
cêutica colecionava dez e-mails não
respondidos. Em depoimento à CPI da
Pandemia, o ex-secretário de Comunica-
ção da Presidência, Fábio Wajngarten,
confirmou que a missiva ficou sem res-
posta por outros dois meses. Apenas em
novembro a equipe de Jair Bolsonaro

começou a negociar com a Pfizer, e o acor-
do só foi celebrado em março deste ano. 

Aparentemente, o governo tinha – e
ainda tem – outras prioridades em meio
a uma pandemia que matou 460 mil bra-
sileiros. Para realizar uma competição
esportiva rejeitada por outros dois pa-
íses, a Conmebol não precisou de mais
que dois ou três telefonemas para obter
o aval presidencial. Na segunda-feira 31,
a entidade comunicou que o Brasil­ vai se-
diar a Copa América, com início previs-
to para 13 de junho. O anúncio foi feito
dois dias após dezenas de milhares de ci-
dadãos ocuparem as ruas das principais
capitais do ­País por mais vacinas e pelo­
impeachment de Bolsonaro, “mais pe-
rigoso que o vírus”, como bradavam os
Sem ter a quem recorrer e com ape-
nas duas semanas para organizar um
campeo­nato com patrocinadores e con-
tratos estabelecidos, a entidade pergun-
tou à CBF, na manhã da segunda-feira 31,
se o Brasil não poderia receber o torneio.

Originalmente planejada para ter jogos
divididos entre Argentina e Colômbia, a
Copa América foi descartada pelos gover-
nos de ambos os países, que alegaram ra-
zões diferentes. O governo colombiano pe-
diu que o torneio fosse adiado em decor-
rência dos violentos protestos que deixa-
ram ao menos 17 mortos desde as primei-
ras mobilizações contra as reformas do
presidente Iván Duque. Diante do pedido,
a Conmebol preferiu excluir de vez o país-
-sede e realizar todos os jogos em estádios
argentinos. No domingo 30, o governo de
Alberto Fernández anunciou, porém, que
não mais levaria a ideia adiante. O moti-
vo alegado é o aumento recente no núme-
ro de infecções e mortes por Covid entre
os argentinos – o país tem 80 mil óbitos
acumulados desde o início da pandemia.
começou a negociar com a Pfizer, e o acor-
do só foi celebrado em março deste ano.

Sem ter a quem recorrer e com ape-
nas duas semanas para organizar um
campeo­nato com patrocinadores e con-
tratos estabelecidos, a entidade pergun-
tou à CBF, na manhã da segunda-feira 31,
se o Brasil não poderia receber o torneio.
O presidente da confederação brasileira,
Rogério Caboclo, falou diretamente com
Bolsonaro. Com relação amistosa, a dupla 

aproximou-se quando o ex-capitão defen-
deu a retomada das partidas de futebol no
ano passado, mesmo com a pandemia fo-
ra de controle. Com a resposta positiva
em mãos, a Conmebol celebrou a decisão

“O Brasil receberá a Copa América 2021!
A Conmebol agradece ao presidente Jair
Bolsonaro e sua equipe”.

 A reação veio de imediato. O governo

de Pernambuco, que administra uma das
arenas que abrigaram partidas da Copa de
2014, foi enfático ao dizer em comunicado
que “o atual cenário epidemiológico não
permite a realização de eventos do porte
da Copa América”. Da mesma forma, o go-
verno do Rio Grande do Norte, onde está a
Arena das Dunas, disse que o estado não
tem “segurança epidemiológica” para os
jogos. No Rio Grande do Sul, a opção de
sediar a competição foi considerada “ino-
portuna e inconsequente” pelo governa-
dor Eduardo Leite, do PSDB. Parlamen-
tares da CPI da Pandemia também criti-
caram a decisão. O relator Renan Calhei-
ros, do MDB, chamou o torneio de “cam-
peonato da morte”, e o vice-presidente da
comissão, Randolfe Rodrigues, da Rede,
classificou a iniciativa como “afronta às
mais de 450 mil vidas perdidas”.


Argentina e Colômbia
rejeitaram o certame
que o ex-capitão
topa abrigar


Diante das exaltadas reações, o mi-
nistro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ra-
mos, foi rápido em afirmar, ainda na
noite da segunda-feira 31, que a realiza-
ção do evento não estava completamen-
te garantida. Destacou, ainda, que os jo-
gos não teriam torcidas e todas as dele-
gações deveriam ser vacinadas. Segun-
do a pasta, as negociações ainda estavam
em estágio inicial e a CBF nem havia en-
viado um pedido oficial para o governo,
solicitando a execução do torneio. Mas,
no dia seguinte, Bolsonaro bateu o mar-
telo e confirmou que quatro estados to-
param receber os jogos: Distrito Fede-
ral, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Goiás 

Com dez seleções a desembarcar no
País, a realização da competição também
preocupa pela adoção de protocolos sa-
nitários que mantenham esses profissio-
nais seguros em seus deslocamentos, ao
mesmo tempo que protejam os cidadãos
brasileiros. Com anúncio a toque de cai-
xa, não houve detalhamento de como es-
se planejamento sanitário será feito, ou
mesmo se seria realizado. O presiden-
te da Comissão de Esportes da Câmara­
dos ­Deputados, Felipe Carreras, protoco-
lou requerimento para que o ministro da
Saúde, Marcelo Queiroga, seja convoca-
do para prestar esclarecimentos sobre as
medidas sanitárias para o evento.


“É a medalha de ouro do desprezo à vi-
da que tem Bolsonaro, é mais um capítu-
lo no campeonato genocida do governo, a
continuação dessa gincana negacionista
em que vive o País”, afirma o deputado e
ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha,
do PT. Ainda na segunda-feira, o partido
apresentou ao ministro Ricardo Lewan-
dowski, do Supremo Tribunal Federal, pe-
dido para suspender a realização da Copa
América no Brasil, por meio de um aden-
do à Ação por Descumprimento de Precei-
to Fundamental (ADPF) das Va-
cinas contra a Covid. Segundo o
PT, a decisão de sediar o evento
foi “sem transparência”, “irres-
ponsável” e “põe em risco a saú-
de da população do País e das de-
legações estrangeiras”.


O documento ainda requer
a intimação de Bolsonaro e
dos ministros da Saúde, Ca-
sa Civil e Relações Exterio-
res, além do secretário nacio-
nal do Esporte, citados em co-
municado oficial da Conme-
bol. A mesma estratégia foi
adotada com os governado-
res, em ofícios que pedem pa-
ra os estados não receberem
o evento. O PSB também in-
gressou com um mandado de
segurança preventivo encaminhado ao
presidente do STF, Luiz Fux.


“Bolsonaro ignorou ofertas de deze-
nas de milhões de doses de vacinas en-
tre junho e novembro, mas aceitou a Co-
pa América em menos de 12 horas”, in-
digna-se Padilha. Segundo ele, a inten-
ção do governo ao aceitar a competição
é “a mesma desde o início da pandemia”:
deixar o vírus correr solto até que o País­
alcance a suposta imunidade de rebanho.
Além disso, “a atitude defensiva” do Pla-
nalto viria para “provocar mais divisão”
no momento em que se vê acuado pela
CPI e pelas ruas. “A Argentina desistiu
do evento pela grave situação sanitária
e a Colômbia pela instabilidade política:
o Brasil reúne as duas coisas.”


No sábado 29, atos contra o presidente
foram registrados em mais de 200 cidades

brasileiras, incluindo grandes mobiliza-
ções nas 26 capitais e no Distrito Federal,
além de protestos no exterior. Apesar da
tímida cobertura da mídia nativa, os pro-
testos tiveram ampla repercussão inter-
nacional. Além do Le Monde, mencionado
no iníciodo do texto, o britânico The Guar-
dian destacou que “dezenas de milhares”
foram às ruas para pedir o impeachment
de Bolsonaro, por sua “catastrófica res-
posta” ao vírus. O New York Times, por
sua vez, enfatizou que foram “os maiores
protestos desde o início da pandemia”. A
CNN Internacional, a rede árabe Al Jaze-
era, o jornal italiano Corriere Della Sera, o
espanhol La ­Vanguardia, a revista alemã
Der Spiegel e várias outras publicações es-
trangeiras deram destaque aos atos.
No Recife, a repressão policial aos
manifestantes foi responsável por ferir
permanentemente duas pessoas sem re-
lação com os protestos. Daniel Campelo e
Jonas Correia foram atingidos nos olhos
por balas de borracha e perderam parte da
visão. A Polícia Militar de Pernambuco­ se-
rá alvo de dois inquéritos, um para apon-
tar os responsáveis pela lesão corporal
gravíssima e outro para apurar a violen-
ta conduta dos agentes nos pro-
testos. Durante os atos, poli-
ciais também dispararam spray
de pimenta contra a vereadora
Liana Cirne, do PT, arrastaram
e prenderam o cantor Afroito e
atingiram Roberto Rocha, ad-
vogado e presidente da Comis-
são de Direito Parlamentar da
OAB de Pernambuco, com qua-
tro tiros de bala de borracha.
De forma previsível, Bolsona-
ro minimizou os atos. Segundo
o ex-capitão, eles tiveram “baixa
adesão” porque a Polícia Fede-
ral tem feito grandes operações
Recife. Dois atingidos por balas 

de borracha perderam a visão

De forma previsível, Bolsona-
ro minimizou os atos. Segundo
o ex-capitão, eles tiveram “baixa
adesão” porque a Polícia Fede-
ral tem feito grandes operações
para conter o tráfico de drogas.
“Faltou erva”, disse para apoia-
dores na porta do Palácio da Al-
vorada em tom jocoso. •

CARTA CAPITAL

May 31, 2021

A VERDADE A GALOPE

 

 

 


p or A N DRÉ BA R RO C A L

 No governo do presidente
Pinóquio, mentir é virtu-
de. Eduardo Pazuello e Er-
nesto Araújo não são mais
ministros da Saúde e das
Relações Exteriores, mas
seguem virtuosíssimos.


Na CPI da Covid, esbalda-
ram-se em lorotas e cinismo. Na semana
anterior, outro ex-colaborador de Jair Bol-
sonaro mentira, e o presidente da comis-
são, Omar Aziz, do PSD, fraquejara diante
do pedido do relator, Renan Calheiros, do
MDB, para prender Fábio Wajngarten, ex-
-chefe da propaganda governamental. Re-
sultado: um liberou geral para inverdades,
queixa feita nos bastidores da CPI por Otto
Alencar, colega de partido de Aziz.


Alencar, que é ortopedista, atendeu Pa-
zuello no primeiro dia de depoimento do
general da ativa, a quarta-feira 19, e diag-
nosticou-o com síndrome vasovagal, a
falta momentânea de sangue no cérebro.
Imagine-se se o fardado não tivesse ido à
CPI munido de um habeas corpus do Su-
premo Tribunal Federal que lhe permitia
calar para não se incriminar. Seu advoga-
do invocou o direito ao silêncio uma vez no
dia 19, quando Pazuello fora confrontado
com contradições quanto à falta de oxigê-
nio em Manaus em janeiro, episódio que é
uma das razões de ser da CPI e de um pro-
cesso criminal contra o general.

Calheiros cobra de Aziz a criação de um
grupo de assessores capaz de pegar no ato
mentiras de depoentes. Que tal um polí-
grafo? Apesar das inverdades, a CPI já
delineia os crimes do presidente e de Pa-
zuello, prenúncio de um relatório final
duro – Calheiros fará nos próximos dias
um relatório sobre o primeiro mês da co-
missão. O que não significa que o ex-capi-
tão cairá. As conclusões dos senadores só
virarão processo criminal contra Bolso-
naro na Justiça se o procurador-geral da
República, Augusto Aras, quiser. E só le-
varão ao impeachment no Congresso, por
crime de responsabilidade, se o presiden-
te da Câmara, Arthur Lira, do PP, quiser.
E nenhum dos dois deseja jogar Pinóquio
ao mar. Aras até espera ser reconduzido
ao cargo, em setembro, pelo ex-capitão

“Esta é uma CPI diferente das outras,

pois é construída em cima de fatos sa-
bidos e os responsáveis por esses fatos
igualmente são sabidos. Nosso trabalho
é confirmar o desleixo, o descuido, a
omissão do governo, do presidente, do
Ministério da Saúde”, diz o senador
Humberto Costa, do PT, membro titular
da comissão. “O que foi apurado até ago-
ra aponta claramente que governo falhou
absurdamente. O relatório final vai apon-
tar crime comum contra a saúde pública,
os direitos humanos e genocídio indígena,
e crime de responsabilidade.” Por causa
do genocídio de indígenas, tratados com
desdém e cloroquina por Brasília, o rela-
tório deverá ser enviado ao Tribunal Pe-
nal Internacional, onde há uma denúncia
contra Bolsonaro por incitar o genocídio
antes da pandemia.

Para colaborar com as investigações,
a CPI pediu a professores da Faculdade
de Saúde Pública da USP e a advogados 

da ONG de direitos humanos Conectas a atu-
alização de um estudo de janeiro. O docu-
mento do início do ano examinava 3 mil
normas federais editadas na pandemia e
concluía: o governo trabalhou para disse-
minar o vírus, em busca da imunidade de
rebanho (contágio de uns 70% da popu-
lação e a consequente produção de anti-
corpos). E agiu assim para manter a eco-
nomia aberta. Duas ilustrações da políti-
ca pró-vírus: o veto presidencial à lei do
uso obrigatório de máscaras no País e um
decreto que ampliou a lista de atividades
essenciais (que não poderiam parar), pa-
ra incluir construção civil, salão de bele-
za e academia de ginástica.


A atualização do estudo será en-
tregue à CPI até o dia 28. Se-
gundo um dos autores, Fer-
nando Aith, professor de Po-
lítica, Gestão e Saúde da USP,
foram mapeadas mais 600 ou-
tras iniciativas federais pró-vírus adota-
das em 2021. “Imunidade de rebanho só
existe com vacinação. Por contágio é um
absurdo, nunca se aplicou em lugar ne-
nhum do mundo, porque significa mortes
em massa. E não apenas mortes por Covid,
mas também mortes indiretas, em razão
do colapso do SUS”, afirma.


À CPI, Luiz Henrique Mandetta, minis-
tro da Saúde no início da pandemia, con-
firmou que Bolsonaro namorou a imuni-
dade de rebanho. Uma das teorias sopra-
das ao presidente, segundo Mandetta,
por conselheiros paralelos. Quantos bra-
sileiros estariam vivos se o governo hou-
vesse tido bom senso na crise sanitária e,
além disso, apostado na vacina? Respon-
der esta pergunta é um dos próximos pas-
sos da CPI, segundo os senadores Alessan-
dro Vieira, do Cidadania, e Rogério Carva-
lho, ambos suplentes da comissão.


O epidemiologista Pedro Hallal, co-
ordenador de estudos sobre Covid-19 na
Universidade Federal de Pelotas, tem um
número na ponta da língua: 3 de 4 mor-
tes eram evitáveis. Ou seja, 330 mil pes-
soas não teriam sido enterradas – esta-
mos com 440 mil falecidos. Hallal fez es-
timativas para um cenário em que o Bra-
sil aceita as primeiras ofertas de vacina da
Pfizer, em agosto de 2020. Essas propos-
tas previam 4,5 milhões de doses a mais
até o fim de junho de 2021, na compara-
ção com a quantidade do contrato de mar-
ço do governo com o laboratório, uma das
informações dadas à CPI pelo presidente
da Pfizer na América Latina, o boliviano
Carlos Murillo. Segundo Hallal, escapa-
riam de 5 mil a 25 mil pessoas.


Na avaliação de Aziz, está claro, a

partir dos depoimentos, que de início
o governo não quis comprar vacinas e
abraçou a imunidade de rebanho e a clo-
roquina. Para dimensionar quantas vi-
das teriam sido salvas com a vacinação
em massa, Carvalho quer a ajuda do epi-
demiologista matemático Eduardo Mas-
sad, da FGV e da USP.

Massad fez alguns cálculos logo após o
início da vacinação, em 17 de janeiro. Es-
timava que 130 mil morreriam este ano de
Covid, mas, se toda a população fosse imu-
nizada em fevereiro, 89 mil escapariam. O
SUS, segundo Massad, consegue vacinar
a população toda em um mês. Se o fizesse
em março, 57 mil se salvariam. Em abril,
33 mil. Em maio, 19 mil. Números obtidos
a partir de um modelo matemático defa-
sado, que não leva em conta, por exemplo,
a variante P1 surgida no Amazonas, mais
contagiante e letal, daí a decisão de Mas-
sad de atualizar os cálculos.


A falta de vacinação ainda custará mui-
tas vidas. A imunização vai a passo de tar-
taruga. Em números absolutos, tínhamos
aplicado 54 milhões de doses até a terça-
-feira 18, quinta maior quantidade – somos
a quinta maior população mundial, ressal-
te-se. Em termos relativos, porém, estáva-
mos em 13o poosição no ranking global. 

Entre os vacinados a cada
cem habitantes, estávamos em 61o lugar.

O ritmo de vacinação caiu por falta de
doses. Em abril, a média diária tinha sido
de 822 mil. Em maio, estava em 682 mil
até o dia 18. O governo reviu de maio pa-
ra setembro a previsão de imunizar todos
os 77 milhões de brasileiros prioritários. O
Instituto Butantan, fabricante da Corona-
Vac, parou a produção dia 14 e, segundo o
governador paulista, João Doria Jr., do PS-
DB, retomará dia 26. O insumo importado
da China, o chamado IFA, acabou. O em-
baixador chinês, Yang Wanming, se reuni-
ria na quinta-feira 20 com o governador do
Piauí, Wellington Dias, do PT, represen-
tante do consórcio de governadores, pa-
ra conversar sobre o tema. Teria a China
de o início. Em 5 de maio, o presidente não
citou a China, mas deixou claro que se re-
feria a ela ao apontar uma “guerra quími-
ca” por trás do surgimento do Coronaví-
rus e ainda que tal “guerra” favoreceu a
economia chinesa. Na época, Aziz co-
mentou que a China daria o troco. Não é
a primeira vez que há dificuldade na che-
gada de insumos chineses ao Butantan e
à Fiocruz. Em janeiro, o então presidente
da Câmara, Rodrigo Maia, foi a Wanming,
tratar do assunto, pois no governo federal
havia quem fizesse corpo mole.


Na última entrevista como ministro da
Saúde, em 15 de março, Pazuello afirmou
que tinha havido um “hiato” em janeiro
e fevereiro na fabricação de vacinas pe-
la Fiocruz, órgão federal. “Estávamos no
cronograma extremamente positivo e per-
demos aí de 30 a 40 dias nesse cronogra-
ma por um atraso dessa entrega do IFA. E
até hoje nós não compreendemos por que
atrasou. Não há um posicionamento do
governo chinês.” Não entendeu, general?


Além de Bolsonaro, Ernesto
Araújo, que deixou o governo
duas semanas após Pazuello,
colecionou manifestações
hostis à China quando chan-
celer. Apesar disso, afirmou à
CPI, na terça-feira 18, que não havia “hos-
tilidade” sua, que não fez “nenhuma de-
claração anti-chinesa” e que não há rela-
ção entre essas posições e o atraso na vin-
da de insumos asiáticos. Um dia depois,
Pazuello também chafurdava em menti-
ras na CPI, e uma delas foi sobre a China.
“Nunca o presidente da República man-
dou eu desfazer qualquer contrato, qual-
quer acordo com o Butantan.” Um debo-
che, a fim de proteger o ex-chefe, de quem,
aliás, disse jamais ter recebido ordem pa-
ra coisa alguma.


Pazuello anunciou a governadores,
em 20 de outubro de 2020, a compra da
CoronaVac. No dia seguinte, Bolsonaro

dizia em entrevista: “Já mandei cance-
lar. O presidente sou eu e não abro mão
da minha autoridade”. Pouco antes, es-
crevera no Twitter: “Não será compra-
da”. Foi esse episódio que levou Pazuello
a dizer, ao lado do presidente, em 22 de
outubro: “É simples assim: um manda, o
outro obedece”. Na CPI, ignorou a decla-
ração do presidente em entrevista e falou
só da tuitada presidencial: “Uma posta-
gem na internet não é uma ordem”, é uma
posição de “agente político”.


O “aconselhamento paralelo” – expres-
são usada por Mandetta – recebido por
Bolsonaro na pandemia parece ter servi-
do aos propósitos do “agente político”. En-
tre os próximos passos da CPI, está iden-
tificar quem fazia parte desse grupo, cha-
mado por Renan Calheiros de “Ministério
da Morte”. Já foram mencionados na co-
missão alguns nomes que integrariam o
time, e o destaque é para um dos filhos de
Bolsonaro, o vereador Carlos.


Mandetta contou ter partici-
pado de reuniões governa-
mentais sobre Coronaví-
rus, das quais Carlos par-
ticipava e fazia anotações.
O rapaz apareceu em outra
quando Mandetta havia deixado o cargo.
Foi em 7 de dezembro de 2020, uma con-
versa no Palácio do Planalto do então che-
fe da Comunicação Social da Presidência,
Fábio Wajngarten, com duas diretoras da
Pfizer, Shirley Meschke (Jurídico) e Eliza
Samartini (Relações Governamentais),
conforme depoimento de Carlos Murillo.
Wajngarten havia topado fazer lobby no
governo pela vacina da empresa ao saber
que ninguém, Bolsonaro incluído, havia
respondido, dois meses depois, uma car-
ta de 12 de setembro.


Por que Carlos se metia nesse assun-
to? É o que Humberto Costa e Alessandro
Vieira, proponentes da convocação dele,
querem saber. Não é difícil imaginar a ra-
zão. Bolsonaro decidiu desde o início po-
litizar a pandemia. Para fidelizar apoia-
dores radicais, atacava a China, Doria,
vacinas, OMS. Como afirmou um dia após
Mandetta depor, Carlos é seu “marque-
teiro”. Tradução: seu termômetro quan-
to ao humor no bolsonarismo. Ainda não
há, porém, consenso no G7, o bloco que dá
as cartas na CPI, para botar o filho do pre-
sidente no banco de depoentes. Aziz, por
exemplo, por ora, é contra.


Outro do “Ministério da Morte” na
mira é o deputado Osmar Terra, do MDB
gaúcho, igualmente mencionado por
Mandetta. Vieira e Carvalho querem con-
vocá-lo. Apesar de médico, Terra sempre
fez prognósticos que minimizavam a gra-
vidade do Coronavírus e mostrava-se a
favor da imunidade de rebanho. Em 7 de
abril de 2020, com menos de um mês de
pandemia, disse que morreriam 950 bra-
sileiros por ano. Recorde-se: terminamos
2020 com 195 mil cadáveres.


Seria o conselho paralelo capitanea-
do pelo bilionário curitibano Carlos Wi-
zard? É a desconfiança de Calheiros e
Vieira. Em 2 de julho de 2020, Wizard
despontou na TV Brasil, do governo, ao
lado da imunologista Nise Yamaguchi,
grande cloroquinista. Ali, disse que ha-
via passado cerca “de um mês em Brasí-
lia, juntamente com o (então) ministro
Pazuello, atuando como conselheiro do
Ministério da Saúde” e que tivera então
“a oportunidade de conhecer autoridades
médicas” que “participam desse conse-
lho científico independente”. Disse ainda
que “nós criamos esse conselho científico
independente para conscientizar a popu-
lação, a comunidade médica, os gestores
públicos que a Covid-19 tem tratamento
sim, quando atendido logo”. Em suma, um
bando de cloroquinistas. À CPI, Pazuello
admitiu ter se reunido com o grupo uma
vez, só uma, a pedido de Wizard.


“Ser negacionista ou idiota não é crime,
mas tomar decisões administrativas com
base em negacionismo e idiotia é crime de

responsabilidade, no mínimo”, diz Viei-
ra, proponente da convocação de Wizard.
Bolsonarista da gema, o bilionário orga-
nizou, ao lado do colega Luciano Hang, a
tentativa de arrancar, em Brasília, a per-
missão para empresários comprarem va-
cinas por conta própria e as aplicarem nos
funcionários. A causa teve aval presiden-
cial, foi aprovada pelos deputados, mas
não no Senado – por enquanto. Teria Wi-
zard financiado o “Ministério da Morte”?
É o que Vieira quer averiguar, ao propor
a quebra dos sigilos bancário, fiscal e co-
municacional do bilionário desde março
de 2020, início da pandemia.


Maçom, Wizard é amigo de Pazuello.
Conheceu-o em 2018, ambos em Roraima
em razão da Operação Acolhida, de recep-
ção de refugiados venezuelanos. Quan-
do o general assumiu a Saúde, em maio
de 2020, convidou-o para ser secretário
de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insu-
mos. A nomeação não se confirmou, se-
gundo Pazuello, devido aos negócios de
Wizard. O cargo prometido ao empresá-
rio é o principal representante do Minis-
tério da Saúde na Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias ao SUS. Pa-
ra ser comprado pela Saúde, um medica-
mento precisa de aval da Conitec. À CPI,
Mandetta disse que o colegiado jamais
aprovaria a aquisição de cloroquina para
Covid, por motivos científicos. Na quinta-
-feira 20, a comissão decidiria sobre o re-
médio, e seu ponto de partida era um do-
cumento contrário à prescrição.


Naquele dia, iria à CPI Mayra Pinhei-
ro, secretária de Gestão do Trabalho e
da Educação do Ministério da Saúde. O
depoimento ficou para a terça-feira 25,
em razão do prosseguimento do teste-
munho de Pazuello. Mayra é conheci-
da como “capitã” cloroquina. Ela re-
quereu ao Supremo habeas corpus pa-
ra silenciar na CPI, mas não conseguiu.
Um documento obtido por CartaCapital
mostra o cloroquinismo dela na crise
amazônica. Em 11 de janeiro, Mayra pe-
diu à Secretaria de Saúde de Manaus pa-
ra ir a postos do SUS pregar o “tratamen-
to precoce”. Para Aziz, ex-governador do
Amazonas, o estado foi “cobaia” federal
na cloroquina. O atual vice-governador,
Carlos Almeida Filho, disse à Folha em
5 de maio que o Amazonas foi “laborató-
rio” da imunidade de rebanho, por deci-
são do governador bolsonarista Wilson
Lima, do PSC, com quem rompeu.


Almeida deverá ser chamado a
depor à CPI. A comissão tam-
bém logo ouvirá médicos e
acadêmicos sobre cloroquina,
entre outros assuntos, com a
presença, inclusive, de profis-
sionais bolsonaristas favoráveis ao dito
tratamento precoce. “Hitler também ti-
nha seus médicos, como o Mengele”, diz
Humberto Costa. Para Rogério Carva-
lho, apostar na cloroquina no início da
pandemia, em março de 2020, até pode-
ria ser um caminho, pois ainda não havia
posição internacional a respeito. Em ju-
nho de 2020, porém, os Estados Unidos
e a OMS cancelaram testes e desistiram
desse caminho. E por aqui?


Em 5 de maio, já com a CPI em curso,
Bolsonaro chamou de “canalha” quem é
contra o tratamento precoce, sinônimo de
cloroquina. Em uma transmissão na web
dia 13, criticou o uso de máscaras, que se-
riam uma “ficção” como proteção à con-
taminação por Coronavírus. A apoiado-
res na porta do Palácio da Alvorada, dia
17, disse que eram “idiotas” aqueles que
ainda ficam em casa. “A CPI já tem ele-
mentos suficientes para provar crime
contra a saúde pública”, diz Carvalho. “E
o que temos visto são crimes em flagran-
te, continuados. O presidente continua fa-
zendo propaganda contra todas as medi-
das de combate à pandemia. A Procurado-
ria- Geral da República pode até não fazer
nada com o relatório final, mas esses cri-
mes vão prescrever em cinco anos e ou-
tros procuradores poderão agir.” •

CARTA CAPITAL








May 23, 2021

As digitais do Tio Sam

 

 





 

POR RODRIGO MARTINS

Em 17 de dezembro de 2015, o
Le Monde publicou um elo-
gioso perfil de Sergio Moro,
no qual o juiz era compara-
do a Eliot Ness, o lendário
agente do Tesouro dos EUA que conse-
guiu colocar Al Capone atrás das grades.
À época, o diário francês parece não ter
notado o absurdo de se comparar um ma-
gistrado, de quem se espera isenção e
equidistância entre as partes, a um poli-
cial à caça de gângsteres. Ou, ainda mais
ridículo, de ilustrar a reportagem com
uma charge na qual Moro figura como
um Cristo Redendor. “Este juiz do inte-
rior do Paraná, com cara de policial de
filmes B, provoca calafrios nos caciques
políticos em Brasília e empresários de
São Paulo”, dizia o texto, assinado pela
correspondente Claire Gatinois.


Cinco anos depois, o Le Monde parece
buscar a redenção por meio de uma con-
tundente reportagem de três páginas, a
demonstrar como a Lava Jato foi usada pa-
ra atender aos interesses estratégicos dos
Estados Unidos. Embora não traga exata-
mente uma grande revelação, o texto assi-
nado por Nicolas Bourcier e Gaspard Es-
trada tem o mérito de acrescentar relatos
de autoridades do Departamento de Justi-
ça, confirmando o interesse da Casa Bran-
ca em usar a operação para proteger suas
empresas. “Para os EUA, trata-se de re-
duzir a influência geopolítica do Brasil na
América Latina, mas também na África.”
CartaCapital tem exposto a pegada de
espiões norte-americanos em solo pátrio
desde 1999, mas o jornal francês destaca
que, após os ataques de 11 de setembro de
2001, o governo Bush procurou ampliar
a “ação contraterrorista” no Brasil. “Para
contornar a frieza das autoridades brasi-
leiras – que consideravam o risco terro-
rista deliberadamente exagerado pelos
EUA – a embaixada americana em Brasí-
lia começou a criar uma rede de especia-
listas locais, capazes de defender as posi-
ções americanas ‘sem parecer peões’ de
Washington, para usar a frase do embai-
xador Clifford Sobel em telegrama diplo-
mático que o Le Monde pôde consultar.”


Por sua atuação no caso Banestado, no
qual colaborou com autoridades norte-
-americanas, Moro foi convidado a parti-
cipar de um programa de relacionamen-
to financiado por Washington. “Foi or-
ganizada então uma viagem aos Estados
Unidos em 2007, durante a qual ele fez
uma série de contatos no FBI, no Depar-
tamento de Justiça e no Departamento
de Estado, ou seja, relações exteriores”,
relata o Le Monde. No ano seguinte, Ka-
rine Moreno-Taxman, procuradora 

especializada no combate à lavagem de
dinheiro e ao terrorismo, criou o “Proje-
to Pontes”, que oferecia cursos para au-
toridades judiciárias brasileiras sobre as
técnicas anticorrupção, inclusive as de-
lações premiadas. Os seminários realiza-
dos, alguns deles com a participação de
Moro como palestrante, serviram ainda
ao propósito de favorecer o compartilha-
mento informal de informações. Ou seja,
“fora dos tratados bilaterais de coopera-
ção judiciária”, emenda o jornal.


Dois anos depois, Moreno-Taxman foi
convidada para falar em uma conferên-
cia de agentes da Polícia Federal realiza-
da em Fortaleza. Diante de 500 partici-
pantes, ensinou aos brasileiros a tática do
xadrez anticorrupção: “É preciso ir atrás
do rei de maneira sistemática”, para então
derrubá-lo. “Para que o Judiciário possa
condenar alguém por corrupção, é preci-
so que o povo o odeie”, enfatizou. “A socie-
dade deve sentir que ele realmente abusou
de seu cargo e exigir a sua condenação.”
Qualquer semelhança com os espúrios
métodos lavajatistas não é coincidência.


 

Moro assistiu à palestra na primeira fila.
Com a deflagração da Lava Jato, o De-
partamento de Justiça dos EUA usou uma
“grande isca” para atrair os procuradores
brasileiros: a divisão das multas aplicadas
pelas autoridades de lá às empresas brasi-
leiras por meio da Foreign Corrupt Prac-
tices Act, a lei que proíbe cidadãos e com-
panhias com atuação nos EUA de subor-
nar governos estrangeiros. “Para prestar
garantias de boa vontade, os investigado-
res brasileiros organizam uma visita con-
fidencial a Curitiba, em 6 de outubro de
2015, de 17 integrantes do Departamen-
to de Justiça, do FBI e do Departamento
de Segurança Interna para que estes rece-
bam explicações detalhadas dos procedi-
mentos em andamento”, diz o Le Monde.
“Eles dão acesso a advogados de empresá-
rios chamados a ‘colaborar’ com a Justiça

americana, sem que o Poder Executivo
brasileiro seja informado. Mas isso tem
um preço: cada uma das multas impostas
às empresas brasileiras pela FCPA terá de
incluir uma parcela destinada a Brasília,
mas também à operação.”


Não por acaso, nas mensagens
hackeadas de procuradores da Lava Ja-
to e apreendidas na Operação Spoofing,
há tantas referências a autoridades dos
EUA, como CartaCapital noticiou nas
edições 1143 e 1144. Em 4 de novembro
de 2015, menos de um mês após a visita si-
gilosa dos agentes do FBI, Moro disse ser
preciso “colocar US attorneys (procura-
dores norte-americanos) para trabalhar,
pois até agora niente”. Dallagnol concor-
da: “Eles estão só sugando por enquanto.
Hoje falei com eles sobre as contas lá da
Ode (Odebrecht) pra ver se fazem algo”.
Os procuradores brasileiros ti-
nham cuidado para não desagradar

aos parceiros. Em 19 de maio de 2016,
Dallagnol sugere “fazer um acordo con-
junto com os americanos” em relação à
Braskem, petroquímica do Grupo Ode-
brecht. “Se não formos fazer, temos que
pelo menos ver se eles se sentem confor-
táveis com solução diversa”, acrescenta.
Em 29 de setembro do mesmo ano, o pro-
curador Júlio Noronha pergunta se há
alguma objeção a um comunicado que a
Braskem pretendia divulgar ao mercado.

“Carol PGR” não vê problemas, mas se
preocupa com a opinião dos parceiros:
“Os americanos concordaram?”


As tratativas eram clandestinas. O
Acordo de Assistência Judiciária em Ma-
téria Penal entre Brasil e EUA prevê que
a cooperação internacional seja media-
da pelo Ministério da Justiça, no caso do
Brasil, e pelo Departamento de Justiça,
no caso dos EUA. Além disso, todos os
documentos recebidos precisam ter um
comprovante de entrega. Moro e Dallag-
nol passaram por cima do governo brasi-
leiro. Em resposta à defesa de Lula, que
obteve um mandado de segurança para
ter acesso aos dados compartilhados, o
Departamento de Recuperação de Ati-
vos e Cooperação Jurídica Internacio-
nal, vinculado à pasta da Justiça, disse
não ter registros de pedidos de coopera-
ção da Lava Jato com os norte-america-
nos. Em novembro de 2020, o ministro
Ricardo Lewandowski determinou que a
Corregedoria do Ministério Público Fe-
deral apure se houve, de fato, intercâm-
bio de informações com autoridades es-
trangeiras. O mistério persiste.


A participação de Tio Sam na opera-
ção tem sido denunciada há tempos. Em
2018, o site Consultor Jurídico revelou a
cooperação informal de agentes do FBI
com a força-tarefa da Lava Jato em Curi-
tiba, feito admitido com naturalidade
por funcionários do bureau de investiga-
ção durante um evento promovido pelo
escritório de advocacia CKR Law, de São
Paulo, em fevereiro daquele ano. Em ju-
lho de 2020, foi a vez de a AgênciaPúbli-
ca seguir o rastro deixado por investiga-
dores do FBI, entre eles a agente especial
Leslie Backschies, que, após atuar na La-
va Jato, virou chefe da Unidade de Cor-
rupção Internacional do FBI.


A reportagem do Le Monde foi publica-
da dias antes de o plenário do STF ana-
lisar uma decisão monocrática de Edson
Fachin, que anulou as condenações de
Lula nos casos do tríplex do Guarujá e do

sítio em Atibaia, ao reconhecer que Curi-
tiba não era o foro competente para julgar
os processos. Embora tenha restituído os
direitos políticos do ex-presidente, o vere-
dicto é visto como manobra do magistra-
do para prejudicar a análise da suspeição
de Moro, que acabou reconhecida pela Se-
gunda Turma do STF duas semanas de-
pois, contra a vontade de Fachin.


Às vésperas do julgamento, o jornal O
Globo publicou um curioso editorial, reco-
mendando à Corte o reconhecimento da
incompetência do juízo de Curitiba com o
arquivamento da decisão sobre a parciali-
dade de Moro. “Caso seja mantida a suspei-
ção, é esperado que ela não só acabe por ser
estendida aos demais processos envolven-
do Lula, mas que seja usada por outros réus
da Lava Jato para alegar a própria inocên-
cia, pois a promiscuidade atribuída à rela-
ção de Moro com os procuradores da for-
ça-tarefa se tornaria um argumento váli-
do para questionar qualquer ação em que
ambos tenham atuado”, diz o texto.


A pretexto de “preservar o trabalho da
Lava Jato”, o braço midiático da operação
busca salvar a biografia de Moro e validar
“provas” contra Lula coletadas sob a ins-
trução de um juiz parcial. Além disso, a
suspeição do magistrado não pode ser es-
tendida a outros réus, afirma o advogado
Marco Aurélio de Carvalho, fundador do
Grupo Prerrogativas. “A suspeição é uma
condição personalíssima, de um juiz pa-
ra um determinado réu, não tem como
afetar processos de outros acusados.”

Na verdade, a decisão de Fachin nem
sequer deveria ser submetida ao plenário,
passando por cima da Segunda Turma,
como seria o rito natural. “Minha estra-
nheza é que, dos milhares de habeas cor-
pus que a Primeira e a Segunda Turma
julgam o ano todo, por que justamente
o caso do ex-presidente é submetido
ao plenário? Será que o processo tem
nome, e não apenas capa?”, criticou
Ricardo Lewandowski, contrariado com
a inovação, avalizada pelos colegas. “A
última vez em que se fez isso custou ao ex-
presidente 580 dias de prisão, e causou
a sua impossibilidade de se candidatar
novamente a presidente da República.”


O julgamento do mérito seria retoma-
do na tarde da quinta-feira 14, após a con-
clusão desta reportagem. Na avaliação de
Carvalho, a ideia de anular a suspeição de
Moro, com base na esdrúxula tese de que
a decisão da Segunda Turma ficou preju-
dicada pela decisão anterior de Fachin, é
completamente descabida. “No Direito
Processual Penal, a suspeição de um juiz,
por ser um vício mais grave, tem prece-
dência. Mas, ainda que essa primazia não
fosse respeitada, a incompetência do fo-
ro de Curitiba apenas reforça a suspeição
de Moro”, avalia o advogado. “Desde o iní-
cio, ele sabia que não poderia julgar casos
sem relação com a Petrobras, mas produ-
ziu, em conluio com os procuradores da
Lava Jato, uma jurisdição artificial, com
o objetivo de perseguir Lula, para retirá-
-lo das eleições presidenciais de 2018. Em
outras palavras, Moro é suspeito também
por ser incompetente para julgar o caso.”
Para o especialista, a Corte está dian-
te de uma oportunidade singular de dar
um basta nos abusos da Lava Jato. O

problema é que o nome do réu ainda me-
xe com a cabeça dos magistrados, como
lembrou Lewandowski. Em 23 de mar-
ço, horas após a Segunda Turma do STF
declarar Moro suspeito, o juiz Luiz Anto-
nio Bonat, de Curitiba, suspendeu o en-
vio dos processos de Lula para o Distri-
to Federal, como havia ordenado Fachin.
O juiz argumentou que, com a nova deci-
são, o reconhecimento da incompetência
do juízo do Paraná havia sido “prejudi-
cado”. Pouco depois, ele recuou e despa-
chou a papelada para Brasília, mas man-
teve o bloqueio de bens do petista.


Não é tudo. O Supremo permitiu o aces-
so da defesa de Lula ao acordo de leniên-
cia da Odebrecht, mas os procuradores
da Lava Jato se recusam a compartilhar
os dados, que poderiam provar a ilegal
cooperação com autoridades dos EUA e
da Suíça. Diante dos reiterados atos de
desobediência, os advogados do ex-pre-
sidente pediram, na segunda-feira 12, o
trancamento da ação do sítio em Atibaia
e dos processos do Instituto Lula. “Em
completo abandono de qualquer noção
que seja de fair-play processual, os pro-
curadores da extinta ‘força-tarefa’, além
de ocultar, lavar e distorcer provas e de
manterem relações espúrias com Mo-
ro, agiram decisivamente nos bastido-
res para que as ilegalidades perpetradas
não fossem questionadas ou reforma-
das”, observa a peça da defesa.


“O problema mais grave nos acordos de
leniência celebrados pela força-tarefa da
Lava Jato é a falta de transparência nas
tratativas junto a autoridades estrangei-
ras e na gestão dos recursos bilionários
envolvidos nas negociações”, comenta o
advogado Fernando Hideo Lacerda, autor
de uma petição ajuizada no Superior Tri-
bunal de Justiça para investigar a desti-
nação dos valores acertados entre o MPF
e as empresas. “O futuro do processo pe-
nal brasileiro depende da abertura des-
sa caixa-preta. Não apenas Lula tem di-
reito a um julgamento justo, mas o povo

brasileiro precisa conhecer a verdade so-
bre os métodos tirânicos empregados pe-
lo juiz Moro e seus comandados da força-
-tarefa. O julgamento da suspeição é o pri-
meiro passo, mas é preciso que os agentes
públicos que violaram a Constituição res-
pondam pelos seus atos na esfera discipli-
nar, administrativa e criminal.”


A responsabilização ficou, porém, mais
difícil de ser alcançada após a PF divulgar
um conveniente relatório, dizendo não ser
possível atestar a autenticidade das men-
sagens da Operação Spoofing. Para tanto,
os peritos dizem que seria preciso acessar
os servidores russos do Telegram, aplica-
tivo de onde vazaram as mensagens, ou o
conteúdo armazenado nos dispositivos
utilizados pelas vítimas dos hackers. Mas
estas, “por questão de segurança e seguin-
do orientação institucional, apagaram os
Embates na Corte. Agora, Mendes
pretende dar um basta aos abusos da
Lava Jato, mas Fachin está empenhado
em salvar a biografia de Moro e validar
as “provas” instruídas por um juiz parcial
conteúdos então armazenados”, justifi-
cou o subprocurador-geral da República
José Adonis Callou de Araújo Sá.
Cascata. Quando as primeiras conver-
sas foram vazadas pelo Intercept, a PF so-
licitou os telefones dos integrantes da for-
ça-tarefa da Lava Jato para perícia, e eles
se recusaram a entregar os equipamen-
tos. Além disso, as mensagens mencio-
nam processos, documentos, reuniões e
diligências que podem ser checados, como
fizeram os jornalistas que tiveram aces-
so ao material antes da prisão dos hackers
Walter Delgatti Neto e Danilo Marques.
A propósito, os procuradores apaga-

ram as mensagens por razões de seguran-
ça ou para destruir provas? “O empreitei-
ro Marcelo Odebrecht foi preso, entre ou-
tros motivos, por promover uma limpeza
nos aparelhos telefônicos dele e de outros
executivos da empreiteira”, lembra Carva-
lho. “Portanto, pelo critério da Lava Jato,
isso poderia ser interpretado como obs-
trução das investigações. Se Dallagnol fos-
se julgado por Moro, ele já estaria preso.” •