August 12, 2020

Fortuna se consagrou como 'o cartunista dos cartunistas'

 

 Homem segura, diante de seu rosto, folha de papel em que se lê "Aberto para balanço". Ele está com os olhos arregalados e a boca aberta, de forma bem-humorada

Thales de Menezes

Quando Fortuna começou a trabalhar na Folha, em 1979, já era um cartunista e artista gráfico consagrado.

Desenvolveu estilo próprio e moderno de humor nos anos 1950, adicionou a crítica política aos seus cartuns na década seguinte, fundou com amigos talentosos o semanário O Pasquim e, nos anos 1970, criou uma revista de quadrinhos lendária, O Bicho.

Sua entrada no jornal foi a retomada de uma parceria. Fortuna recebeu o convite de Tarso de Castro, então editor do suplemento cultural Folhetim. Ambos faziam parte da equipe que criou O Pasquim, em 1969.

Na Folha, ele reuniu duas frentes de trabalho que o agradavam muito: a charge política certeira e uma inovadora proposta visual de diagramação e paginação. Ele criou o projeto gráfico do Folhetim.

Depois de anos combativos sob o regime militar, em veículos como o jornal Correio da Manhã (para onde foi levado por Antonio Callado), Pasquim e a revista Veja, Fortuna chegou à Folha no clima de um certo renascimento cultural diante da anistia política.

Produziu então uma sequência admirável de charges e cartuns, alguns funcionando como a própria capa do Folhetim.

Seguir a trajetória do maranhense Reginaldo Fortuna, nascido em 21 de agosto de 1931 em São Luís, é um encontro constante com grandes intelectuais brasileiros. Já no Rio, em 1951, foi Millôr Fernandes que sugeriu a ele assinar seus desenhos como Fortuna, quando ambos trabalhavam na revista A Cigarra.

Na década anterior, muito jovem e com o pseudônimo Ricardo Forte, ele publicou ilustrações e textos em revistas para público infantil, como a Sesinho (publicação do Sesi) e a consagrada Tico-Tico.

Em A Cigarra, Fortuna atravessou a década de 1950 refinando seu humor e criando seu traço definitivo. Passeando por várias seções da revista, experimentou técnicas de gravura, inseriu fotos em ilustrações, entrevistou desenhistas e traduziu cartuns de autores estrangeiros para apresentá-los ao público brasileiro.

No início dos anos 1960, trabalhou nas revistas Senhor e Pif-Paf, esta editada pelo amigo Millôr. Foi então que Fortuna trouxe para seu desenho o comentário político e econômico, que nunca abandonou. Recuperar seus cartuns a partir daí é uma forma de entender a história do Brasil.

Em 1965, ele foi para o Correio da Manhã. O editor Antonio Callado descrevia Fortuna como “líder de um cartunismo editorial”. O conteúdo das charges do jornal passou a se comunicar com a cobertura política, com uma intensidade nunca antes experimentada.

Ele deixou a publicação em 1968. Juntou-se então a um time de amigos dispostos a construir um bunker de resistência no Pasquim.

Ao lado de textos de nomes hoje lendários, como Paulo Francis, Ivan Lessa e Sérgio Cabral, a equipe que ilustrava o jornal era um “dream team”, com Jaguar, Millôr, Ziraldo, Fortuna, Miguel Paiva e Claudius.

Foi no Pasquim que Fortuna criou seus personagens mais longevos de HQ, Madame e seu Bicho Muito Louco (um cachorro de bigode). Jaguar classifica a proposta como surreal. As histórias da senhora arrogante e seu cão um tanto filósofo passaram a sair em 1975 na revista O Bicho, idealizada pelo próprio Fortuna. Durou oito exemplares, hoje disputados nos sebos a preços estratosféricos.

Antes da aventura em O Bicho, Fortuna trabalhou na Veja, entre 1974 e 1976, com uma série de capas de desenhos engraçados e críticos.

Em 1979 veio sua passagem pela Folha. Ele integrou a equipe do jornal até 1984, mas seguiu colaborando com charges até o ano seguinte.

Enquanto trabalhava na Folha, colaborou com a revista O Careta, comandada pelo amigo Tarso de Castro, nas 19 edições publicadas. Na segunda metade dos anos 1980, ele atuou na imprensa sindical e publicou livros em editoras pequenas.

Em 1994, retornou à charge política no jornal Gazeta Mercantil. Essa nova fase foi interrompida em 5 de setembro daquele ano, quando morreu de um infarto fulminante, aos 63 anos.

No Salão de Humor de Piracicaba de 1995, foi criada a medalha Reginaldo Fortuna, que depois seria concedida a vários de seus amigos, como Jaguar, Millôr e Ziraldo. A homenagem valida o epíteto consagrado dado a Fortuna, “o cartunista dos cartunistas”.

O poeta, ensaísta e diplomata Felipe Fortuna, filho do cartunista, tece considerações sobre possíveis sucessores do pai.

“Creio que, durante um período, tanto Luscar quanto Alcy foram cartunistas cujo trabalho mostra influência do traço e da contundência do Fortuna. Em vários depoimentos, Laerte se diz muito devedora do trabalho político do Fortuna, sobretudo no início, quando ela ainda desenhava para a revista Balão e para a imprensa nanica. Esses são os três nomes que me parecem mais evidentes.”

Em 2014, foi publicado pelas Edições Pinakotheke a coletânea “Fortuna – O Cartunista dos Cartunistas”. Lá estão reunidos trabalhos de todas as fases da carreira dele. Ainda é encontrado nas livrarias.

Leia a seguir, a entrevista com o poeta e ensaísta Felipe Fortuna, filho do cartunista. Diplomata, ele falou com a Folha de Seul, na Coreia do Sul. Ele conta que prepara a edição de um livro com textos de Fortuna, caso raro de desenhista que também escrevia prosa.

A maior parte dos cartunistas não se arrisca a escrever prosa. No máximo, fazem roteiros de HQ. Fortuna escrevia muito bem, mesmo sem apoio dos desenhos. É incomum, não?
Sim, é bastante incomum que cartunistas escrevam textos. A grande exceção foi Millôr Fernandes, justamente quem certa vez declarou que Fortuna seria um grande escritor, se escrevesse... Mas Fortuna sempre escreveu bastante e chegou a lançar um livro somente com textos de humor, “Acho Tudo Muito Estranho (Já o Professor Reginaldo, Não)”, da editora Anita Garibaldi, em 1992. Se não me engano, duas influências no texto de Fortuna são James Thurber e Stanislaw Ponte Preta. Planejo organizar um novo livro só de textos do Fortuna.

Fortuna gostava de trabalhar em equipe. Ele contou muito a você sobre a criação do Pasquim, naquele time de feras?
Há várias histórias sobre o “Pasquim”, claro, pois ele não apenas participou do dia a dia do jornal, mas também de algumas entrevistas. Seu maior amigo ali foi o cartunista Jaguar. Mas Ziraldo, quando Fortuna morreu, fez um desenho em que disse: “Eu era apaixonado pelo Millôr, mas quem me ensinou tudo foi o Fortuna.” Meu pai foi para o “Pasquim” depois de ter passado pela antiga “Senhor” e pela “Pif-Paf”, revista do Millôr, onde também estavam Claudius e Ziraldo. Depois fez amizades boas com Luiz Gê, Laerte e Angeli.

Todo mundo ressalta que o Fortuna era incrivelmente culto. Ele consumia diariamente jornais e livros?Fortuna lia muito, principalmente ficção e história. Foi amigo de Otto Maria Carpeaux no “Correio da Manhã”. Gostava de antologias, em especial “Mar de Histórias”, de Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Rónai. Há referências, tanto na família quanto entre amigos, de que desejava ser escritor, mas acabou desenhista.

Lembro que lia diariamente o “Jornal do Brasil”. Acompanhava a “New Yorker”, a “National Lampoon” e também o humor francês, principalmente Siné, Wolinski e Reiser. E tinha interesse por economia, em especial pelo processo decisório que levava a aumentos de salários e pelo principal tema das suas charges, o custo de vida. Não lia tanto livros de economia, apenas o noticiário. Ele nunca deixou de caricaturar os banqueiros como homens de cartola e abotoaduras. E, no final da vida, acabou trabalhando para sindicatos, produzindo revistas.

O livro "O Cartunista dos Cartunistas" consegue dar realmente a dimensão do trabalho do seu pai?
É um repositório, um mapa da mina. Houve também, em 2009, o lançamento do catálogo “A Arte de Desdesenhar”, a partir de uma exposição dos desenhos do Fortuna nos Correios. Creio que falta fazer um novo trabalho de curadoria, estabelecendo fases e influências, e trazendo comentários de um especialista. Toda a fase da revista “A Cigarra” e da “Revista da Semana” me parece riquíssima. Ainda este mês, Ana Paula Simonaci e Sérgio Cohn publicarão o número 12 da revista “Expressa” dedicado ao Fortuna, com novos depoimentos e desenhos e originais ainda inéditos em livro.

O que precisa ser feito, de fato, é a republicação de alguns trabalhos no formato original, acompanhado de um bom acervo de informações. Creio que, em algum momento, será importante ter um site dedicado ao Fortuna. Por ora, estou mais preocupado em organizar livros e tratar do acervo. Mas aceito propostas!

August 6, 2020

Achava que ódio não existia no vocabulário brasileiro', diz jornalista francês que cobre cena artística mundial há 30 anos

 

 O jornalista francês Hélios Molina volta à vida normal após quarentena em Barcelona Foto: Divulgação / Regina Del Papa

 

Hélios Molina, que frequenta o Brasil desde os anos 1970, lança documentário sobre o impacto de um governo conservador na arte brasileira: 'O país vive um terremoto na cultura’ 

 

 O jornalista e escritor francês Hélios Molina, de 67 anos, achou o Brasil mudado quando esteve aqui, em janeiro. Com os olhos de quem frequenta o país desde 1977, é casado com uma paulista (a produtora cultural Regina Del Papa) e acompanha com interesse as notícias sobre o lado de cá, ele conta ter sentido o ódio no ar.

O que confirmou logo depois, ao entrevistar 30 artistas e pensadores para o documentário “Alô! Tudo bem?”, sobre o impacto de um governo conservador na cultura brasileira. O músico BNegão, o humorista Gregório Duvivier e a professora de design Claudia Bolshaw são alguns dos nomes que refletem sobre o assunto. Hélios, que cobre a cena cultural mundial há 30 anos — passou pelo “Le Figaro” e pelas revistas “Détour en France”, de viagem, e “Aladim”, de arte —, finalizou o documentário durante sua quarentena, em Barcelona.

O filme — que está na primeira edição on-line do Festival de Cinema Brasileiro em Paris, em cartaz na plataforma Jangada — pode ser visto também no site e no canal do YouTube da revista cultural  “Micmag Magazine”, criada por Hélios em 2011.

Hélios Molina roda documentário sobre o impacto de um governo ultraconservador na cultura brasileira Foto: Regina Del Papa
Hélios Molina roda documentário sobre o impacto de um governo ultraconservador na cultura brasileira Foto: Regina Del Papa

 

Você vem ao Brasil desde os anos 1970. Ao vir rodar o documentário este ano, que país encontrou? E que Rio?

Em janeiro, estive no Rio e pude sentir a amplitude da mudança no país. Como a ideia do filme era focar na cultura, percebi que o Brasil está vivendo um “terremoto” na cultura. As pessoas têm medo de falar sobre a situação política. A liberdade de expressão foi atingida, há tensão no ar. O Rio está mais triste.

O que percebeu das pessoas?

Dor. Instalou-se no Brasil um sentimento de ódio que eu não conhecia, achava que essa palavra não existia no vocabulário brasileiro. Uma parte da população foi em direção a ideias retrógradas, a uma certa vulgaridade. As fake news tiveram papel devastador numa sociedade fragilizada. Mas vi que ainda perdura a poesia, que a música e o humor continuam tendo um papel fundamental e salvador.

No filme, você diz que o Brasil degringola em direção à “incultura”. Por quê?

Artistas dizem que não têm mais apoio público ou privado para a criação. Salas de cinema independentes não se atrevem a mostrar filmes de autor. Existe uma real censura. O poder da religião tem uma influência nefasta sobre as programações culturais em geral. O que podemos esperar de um país que suprime o Ministério da Cultura?

O que pode resultar disso?

Haverá menos abertura de horizontes, menos senso crítico e mais submissão. A cultura cria espíritos livres, sem ela esse patrimônio forte do Brasil pode desaparecer.

Como os franceses percebem esse momento do Brasil?

Há uma consternação evidente. A corrupção política, a violência, a impunidade e o poder da religião são elementos assustadores para o francês. Somos muito ligados à cultura. Ao constatarmos esses ataques permanentes, criou-se um mal-estar que está afetando o turismo.

Surpreendeu-se quando o país elegeu um presidente conservador?

Não podia imaginar um retrocesso tão grande. Descobri ideias reacionárias intensas, egoísmo exacerbante. Fui surpreendido também pelas poucas reações populares contra essa política destruidora.

Como um neto e filho de espanhóis que lutaram na Guerra Civil espanhola, e contra o fascismo, sente-se diante do avanço dessas tendências no mundo atual?

Não esperava que, após o movimento libertário dos anos 1970, o mundo viveria novamente esse pesadelo das extremas-direitas. Minha família sofreu graves consequências sob a ditadura franquista, mortes e exílio. Graças a ela, aprendi o sentido da palavra resistência. Através dela, me sinto mais forte e menos só.

Você vê particularidades de como esse processo se desenrola no Brasil?

No Brasil existe um extremismo tropical (risos). É fora do controle, a Justiça parece impotente. Em tantos outros países, discursos políticos de caráter xenófobos ou racistas são fortemente condenados. As raízes desse extremismo ainda são da época da escravidão e da colonização. Por sorte, com perdão da palavra, ele representa 30%.

A defesa da democracia está associada à ocupação do espaço público. Como isso se dá na pandemia?

Os brasileiros já poderiam ter ocupado esse espaço público para se manifestarem ha muito tempo! O confinamento existe há três meses, e o problema aí é muito mais antigo. No isolamento, as pessoas devem se unir pelas redes sociais. Há artistas, pensadores, filósofos, ativistas, brasileiros em geral abrindo debates e criando movimentos.

Após lockdown, a França saiu do isolamento. Como vê a diferença entre o seu país e o Brasil no combate à doença?

É um abismo. O governo francês fez anúncios para acalmar o medo popular. Mesmo assim, houve uma gestão desastrosa em relação ao uso das máscaras. Também não soube frear as mortes nas casas de repouso. No Brasil, não há nenhuma resposta política e sanitária frente à pandemia.

É otimista sobre o Brasil?

A força vem do povo e nunca dos dirigentes. As novas gerações não têm memória suficiente para combater. Por isso, a ideia de fazer o filme como referência histórica para trazer um pouco de luz.

Sufocada, Cultura do Rio fica sem R$ 49,7 milhões do ISS após lei proposta por Crivella ser aprovada às pressas

 Para a cultura da cidade, medida é um tiro certeiro, pois o dinheiro do ISS é o único que há atualmente para o fomento às artes Foto: Arte de André Mello

Vagner Fernandes, especial para O GLOBO

 Desde que assumiu a gestão do município do Rio de Janeiro, em 2017, o prefeito Marcelo Crivella vive uma relação de conflito com os trabalhadores da Cultura. Um dos pontos da discórdia tem sido, recorrentemente, o mecanismo de incentivo fiscal que assegura, desde 2013, o percentual de 1% da arrecadação do Imposto Sobre Serviços (ISS) para o fomento de projetos culturais na cidade. Batizado Lei do ISS, o instrumento possibilita que empresas contribuintes renunciem a parte do pagamento do imposto, até o limite de 20% do montante devido, destinando-a ao patrocínio de manifestações artísticas. Ou que essas lancem mão de 5% do total previsto na lei para ser executado no ano seguinte.

Socorro ao setor: Como outros países vêm atuando para salvar a economia da cultura

Em 29 de abril, Crivella pôs em prática a ideia de tirar da Cultura a verba oriunda do ISS, ao conseguir aprovar um projeto de lei (PL), por ele próprio enviado à Câmara dos Vereadores, com o qual pode desvincular as receitas das legislações municipais. Votado em caráter emergencial, o PL converteu-se na Lei 6.737/2020, que deu liberdade para o prefeito agir, usando os recursos vinculados de todos os órgãos municipais da forma como lhe convier. A justificativa foi a necessidade de transferência de dinheiro para o combate à pandemia da Covid-19. No mesmo dia 29, Crivella baixou um decreto regulamentando a lei, com apenas três artigos, da qual vetou duas emendas propostas pelos vereadores, essenciais para evitar que o montante desvinculado seja usado para outro fim.

'Cheque em branco'

Para a cultura da cidade, é um tiro certeiro, pois o dinheiro do ISS é o único que há atualmente para o fomento às artes.

— Demos um cheque em branco ao Crivella, sem atentarmos para o fato de que ele poderia usá-lo sem critérios. Foi o que fez, punindo, sobretudo, a Cultura — diz o vereador Rafael Aloísio de Freitas (Cidadania), que apresentou um projeto de decreto legislativo (PDL), pedindo revogação do artigo que permite ao prefeito tirar da Cultura o montante do ISS.

A verba é significativa. Neste 2020, estão previstos R$ 54,7 milhões. Até 31 de maio, R$ 43,9 milhões já haviam sido recolhidos pelas empresas cadastradas. Desse total, somente R$ 5 milhões foram efetivamente pagos aos produtores contemplados. Os R$ 38,9 milhões de diferença, com a aprovação da lei e a promulgação do decreto, podem ser transferidos para a Saúde. Diante do quadro de instabilidade fiscal e de incertezas jurídicas, é provável que os recolhimentos futuros, que configuram R$ 10,8 milhões relativos ao período de junho a dezembro, não cheguem aos produtores. O prefeito, hoje, poderia retirar da Cultura um total de R$ 49,7 milhões, referentes ao montante já recolhido e ao que ainda será.

Especialistas divergem

Ex-chefe da Casa Civil de Crivella, o vereador Paulo Messina (MDB), autor da Lei do ISS, sinaliza que o prefeito comete duas infrações. Primeiro por não distinguir que o dinheiro de renúncia fiscal não se vincula às receitas. E segundo por tentar retroagir atos anteriores à vigência de lei e decreto novos.

— À medida que o município abre mão de parte do imposto, autorizando-o a investir na Cultura, o dinheiro deixa de ser da prefeitura. Por outro lado, ainda que fosse permitido haver desvínculo, o que não é o caso, isso só poderia ser feito a partir de 29 de abril, data de publicação da Lei 6.737/2020. Todo o montante recolhido antes teria de ir para a Cultura — diz Messina.

Coronavírus: ‘A Cultura vai precisar de socorro do governo para sobreviver’, diz especialista

Atualmente desafeto de Crivella, Messina suspeita que o prefeito, sob o respaldo de uma lei aprovada às pressas, comete pedalada fiscal:

— O município está com os cofres vazios, e a lei busca recolher dinheiro de todos os fundos. Essa atitude nos leva a crer que, no caso da Cultura, vão usar esse recurso do ISS para no futuro, havendo caixa, recolocarem no lugar. O nome disso é pedalada fiscal. Vou ingressar com uma denúncia no Tribunal de Contas do Município — informa Messina.

A análise do vereador quanto à natureza do recurso é defendida pelo professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Sergio André Rocha Gomes da Silva, também membro da Diretoria da Associação Brasileira de Direito Tributário .

— A Lei do ISS estabelece uma renúncia de receita e não uma vinculação. A Lei 6.737/2020 e o decreto não valem para a Cultura, portanto. Essa carta branca dada pelo Legislativo municipal ao Crivella fere os princípios da legalidade, moralidade administrativa e transparência — opina Sergio André.

Cultura e Fazenda na contramão

Adolpho Konder, secretário municipal de Cultura, assegura que a pasta vem buscando criar soluções para o setor a fim de minimizar os impactos negativos provocados pela crise sanitária. Ele diz que o diálogo com a secretaria de Fazenda tem sido constante no sentido de quitar as pendências com os contemplados.

— Conseguimos liberar R$ 5 milhões do ISS. A secretaria também está conversando, permanentemente, com patrocinadores e produtores — garante o secretário, que conta neste 2020 com um orçamento de R$ 115 milhões para a pasta, o menor desde 2011.

O otimismo de Konder, no entanto, caminha na contramão da perspectiva apresentada pela secretária municipal de Fazenda, Rosemary Macedo. A imprevisibilidade da pandemia tem levado o município, segundo ela, a adotar medidas drásticas em função da queda na arrecadação. E em seu entendimento, contrariando as análises do vereador Paulo Messina e do professor Sergio André Rocha, os recursos do ISS destinados à cultura são, sim, resultantes de receitas vinculadas à legislação municipal.

— A Lei 6.737/2020 suspende todas as vinculações, tendo em vista a necessidade de maior autonomia do Poder Executivo para manter os serviços essenciais à população — enfatiza Rosemary. — Os recursos do ISS serão liberados de acordo com a devida entrada nos cofres do Tesouro.

Ela não esclarece, no entanto, como foram aplicados ou de que forma vem administrando os R$ 38,9 milhões que ainda teria em caixa do ISS da Cultura, pois pagou somente R$ 5 milhões dos R$ 43,9 milhões já recolhidos.

Carlos Alexandre Azevedo Campos, doutor em Direito Público pela Uerj, onde ministra aulas de Direito Financeiro e Tributário, faz coro à tese da secretária municipal de Fazenda:

— Ao conceder benefício fiscal em contrapartida aos incentivos dados por contribuintes a projetos culturais, a Lei do ISS acaba promovendo autêntica vinculação prévia de receita do imposto. O próprio STF (Supremo Tribunal Federal) tem esse entendimento.

Neste imbróglio jurídico, enquanto medidas efetivas de socorro aos trabalhadores da Cultura não forem apresentadas ou formalizadas pela prefeitura, artistas, produtores e técnicos não têm dúvidas quanto ao subtexto contido na lei e no decreto municipal do pre

feito Marcelo Crivella: “Vocês que lutem!”

 

 

August 5, 2020

Goodbye, Columbus

A statue of Confederate States President Jefferson Davis lies on the street after protesters pulled it down in Richmond, Va., on June 10, 2020.


By
Katha Pollitt
thenation.com

So many monuments to racism, slavery, and colonialism have been toppled, removed, or slated for removal in the wake of the George Floyd protests that Wikipedia’s army of volunteer editors is keeping a running tally: Robert E. Lee, Jefferson Davis, and a slew of other Confederate generals and notable white supremacists and segregationists; Frank Rizzo, the notoriously racist mayor (“Vote white”) of Philadelphia; even symbolic figures like the Pioneer and Pioneer Mother, formerly of the University of Oregon in Eugene. As I write, word comes that the embarrassing statue of Theodore Roosevelt mounted on a horse and trailed by a Native American man and a black man on foot will be removed from the main entrance of New York’s Museum of Natural History.

Yesterday’s heroes are history’s villains. That nice Pope Francis thought so well of Father Junípero Serra that he canonized him in 2015, despite Native Americans’ objections to Serra’s harsh and coercive missionary work. He’s now the patron saint of California. But protesters in San Francisco and Los Angeles recently tore down his statue. As for Christopher Columbus—​19 statues and counting—New York Governor Andrew Cuomo defended his presence in Manhattan’s Columbus Circle. (It “has come to represent and signify appreciation for the Italian American contribution to New York,” he said at a press conference.) But I wouldn’t bet on Chris keeping his pedestal much longer. Maybe Italian Americans could choose another compatriot, someone who brought joy to the world and didn’t massacre and enslave vast numbers of people. Like Verdi or Puccini.

In fact, there already is a Verdi Square just a few blocks from Columbus Circle. (There’s a Dante Park nearby as well, which is tiny and not well publicized. I’ve lived in New York all my life and found out about it only while researching this column.) Italy’s contribution to the worlds of literature, art, music, science, and thought is so huge, every park in Manhattan could be renamed after world-famous, beloved Italians with no trouble at all. Gramsci Triangle. Maria Montessori Plaza. Primo Levi Square.

History is large and contains multitudes. There is no reason to cling to torturers, warlords, conquerors, and exploiters—and especially no reason to celebrate Confederate traitors who plunged the nation into civil war, in the aftermath of which we are in many ways still living. Indeed, the posthumous reputation of the Confederacy proves the adage is wrong: It is not always the winners who write history. The “Lost Cause”—a fantasy of the antebellum South as all crinolines, magnolias, courtly soldiers, and happy slaves and of the war itself as a matter of “states’ rights,” never specifying which rights were at issue—has set the popular narrative ever since Reconstruction. It’s great that NASCAR is banning the Stars and Bars, but why did it take so long? And why did it take the horrible killing of George Floyd and the marching of hundreds of thousands of protesters daily for weeks to achieve what is, after all, a symbolic victory?

Symbols matter. Aunt Jemima, Uncle Ben, Mrs. Butterworth, and the black chef on the Cream of Wheat box are the remnants of a once mighty flood of ads, logos, and household items depicting black people as happy cooks, servants, mammies, and comical children. It is not possible to escape this history by slenderizing Aunt Jemima and giving her a modern hairstyle or by making Mrs. Butterworth’s bottle more abstract. I’m glad the original spokesperson for Aunt Jemima, Nancy Green, who was born into slavery, spoke out against poverty and, according to legend, became a millionaire, but that’s not a reason to keep the franchise going. It’s 2020! Retiring these products is not “political correctness”; it is the removal of a profound racial insult from our grocery stores and kitchen tables. And if Eskimo Pies have to follow the Land O’Lakes Native American woman into oblivion, so be it.

What will it take to get rid of the widespread celebration of our worst moments and our worst people? It’s easy enough to take down a statue or to change the name of a road. (Looking at you, Virginia, home of Stonewall Jackson Highway and Lee Highway.) But some names are so embedded in our history, our culture, and our maps that it’s hard to imagine eradicating them, even if we wanted to. There are dozens of places named after Columbus—​Columbus, Ohio (and Indiana and Georgia and… ). Columbia University, Columbia County, the Columbia River. (To say nothing of Colombia, but fortunately that’s not our problem.) There’s not much anyone can do about Serra’s sainthood; canonization is forever. (Still, Stanford University gets points for changing the name of Serra Mall, its main drag and postal address, to Jane Stanford Way, after the insufficiently acknowledged cofounder, with her husband, of the university.)

We do not lack for heroes, many of whom, being women and/or nonwhite, have never gotten their due. (More will soon be added, but as of right now, in all of New York City there are only five public statues of women.) Let’s get rid of the bad men on horses and honor instead those who have been neglected, famous or not. We could start with Fort Bragg, Fort Benning, Fort Hood, and the other military bases named, bizarrely, after Confederate fighters and rechristen them after people who fought to save the republic and end slavery. We could celebrate artists and writers and poets; surely Walt Whitman deserves something more inspiring than a rest stop on the New Jersey Turnpike. We could tell a new American story by lifting up the people who worked to make us better, not worse—the radicals and freethinkers, progressive politicians, labor leaders, feminists, and fighters for racial equality and the liberty and justice for all to which our schoolchildren pledge. Germany and Austria have gotten rid of all (well, almost all) of their place names honoring Nazis and anti-​Semites, and some municipalities are currently on a binge of naming things after women, whose role in those countries’ histories has been startlingly overlooked.

But while we are toppling some statues and erecting others, let’s not forget to do the deeper work of combating injustice. George Floyd didn’

t die because Minneapolis lacked the right monuments.

August 4, 2020

Facebook Fuels Its Users’ Ignorance With Lies


Facebook CEO Mark Zuckerberg looks down as a break is called during his testimony before a joint hearing of the Commerce and Judiciary Committees in April 2018.


By
Eric Alterman
thenation.com


You’d have had to be some kind of evil genius to imagine something as terrible for the world as Facebook. With an estimated 2.6 billion users and $70 billion in annual profits, it is the most effective purveyor in history of right-wing hate, lies, and incitement against vulnerable people and the planet.

Is Facebook’s malevolence driven by a thirst for profit or politics? As with Fox News, alas, that’s a false choice, as the two reinforce each other. Facebook makes its money—as newspapers used to—by selling eyeballs to advertisers. But before local news started collapsing, thanks partly to the advertiser exodus to Facebook and Google, newspapers used this model to fulfill their responsibilities to educate readers and hold those in power to account. Facebook does the opposite: It narrows its users’ interests and fuels their ignorance with lies and misinformation.

Every so often, Mark Zuckerberg will issue a statement that implies he is sorry and that Facebook will try to do better. Of course, it never does. According to a study reported by the watchdog website Popular Information, during the first 10 months of 2019, “politically relevant disinformation was found to have reached over 158 million estimated views, enough to reach every reported registered voter in the US at least once.” That pace was accelerating, and guess what: “Most negative misinformation (62%) was about Democrats or liberals.” The incitement of violence remains on Facebook and on the company’s other apps as well. Just recently, BuzzFeed News reported that an ad on Instagram, which is owned by Facebook, showed clips from action movies of cops being killed and invited people to “join the militia, fight the state,” to a soundtrack of “We ain’t scared of no police / We got guns too.”

This is no accident. Yaël Eisenstat, Facebook’s former head of global elections integrity, explained in The Washington Post that the company “profits partly by amplifying lies and selling dangerous targeting tools that allow political operatives to engage in a new level of information warfare. Its business model exploits our data to let advertisers custom-target people, show us each a different version of the truth and manipulate us with hyper-customized ads.”

Ask yourself: Why does Facebook refuse to apply its gentle fact-checking apparatus to political advertisements?

Why does it include the racist, sexist, anti-Semitic Breitbart as one of its “trusted” news sources?

Why does it continue to allow Holocaust deniers onto its site, and why does Zuckerberg choose to define their poison as mere opinion?

Why did Facebook create a “newsworthiness” category in 2016 when dealing with President Donald Trump’s lies, racism, and hate speech?

Why did Zuckerberg tell employees that a possible Elizabeth Warren presidency represented an “existential” threat to the company? And what will that mean if Joe Biden picks her as his running mate?

Why in May 2019 did Facebook refuse to take down an obviously doctored video that falsely portrayed Nancy Pelosi as acting like a drunk?

“And why, of all things,” asked Bill McKibben in The New Yorker, “did the company recently decide to exempt a climate-denial post from its fact-checking process?”

Here’s one reason offered by Tim Wu, a professor at Columbia Law School: “Facebook can, by tinkering with its rules for political ads, give itself a special, unregulated power over elections. Just that possibility gives Facebook political leverage and politicians reasons to want leverage over Facebook.” David Thiel, a former Facebook security engineer quoted in the Post, said, “The value of being in favor with people in power outweighs almost every other concern for Facebook.”

Deploying their traditional working-the-refs playbook, Trump and the Republicans have turned truth on its head by casting themselves as victims of the site’s biases. “Facebook was always anti-Trump,” the president has whined, and congressional Republicans and the Department of Justice have threatened legal action to continue this campaign of Orwellian doublespeak.

Facebook’s desire to kowtow to Republicans has been evident at least since 2011, when it hired GOP operative Joel Kaplan as its vice president for global public policy, along with Katie Harbath, a former aide to Rudy Giuliani, and Kevin Martin, a former Republican-appointed FCC chairman, to support Kaplan’s efforts. Kaplan declined to intervene in Facebook’s decision to invite politicians to lie in their paid advertisements. And he has stood in the way of efforts designed to police misinformation because, according to anonymous sources quoted in the Post, he correctly perceived that it would “disproportionately affect conservatives.” Zuckerberg also attended a secret dinner with Trump, Jared Kushner, and the right-wing entrepreneur and early Facebook investor Peter Thiel.

In the wake of the Black Lives Matter protests and thanks to efforts by the NAACP, Color of Change, and the Anti-Defamation League, we’ve seen a Facebook advertising pause by more than 970 companies, including Unilever, Coca-Cola, Pfizer, and Starbucks.

The social sanction is helpful. It may inspire employees to try to change policy from within, and as Trump sounds more malignant by the day, it also puts pressure on those at the top to protect their reputations from the poison of his presidency.

Still, the company’s top 100 advertisers provide only 6 percent of its income, while small businesses account for more than 70 percent. And they do not have nearly as many alternatives. Most people I know, myself included, do not want to quit Facebook, especially during a socially isolating pandemic.

So here’s my idea: Let’s just boycott the ads. Don’t click on them. That way, even the small advertisers will have to find new outlets unless Facebook changes its policies. Spread the word… via Facebook.

August 3, 2020

A fuga do virus pelos ares: como os ricos de Belém estão enfrentando a covid-19

O empresário Kleber Ferreira de Menezes e a mulher, Lastênia, pouco antes de embarcarem na UTI aérea que os levou de Belém a São Paulo para se tratarem de Covid-19. O voo dura três horas e meia. Foto: Reprodução

O empresário Kleber Ferreira de Menezes e a mulher, Lastênia, pouco antes de embarcarem na UTI aérea que os levou de Belém a São Paulo para se tratarem de Covid-19. O voo dura três horas e meia. Foto: Reprodução


Ullisses Campbell


A família do empresário Jonas Rodrigues, de 41 anos, é uma das mais ricas do Pará. Ela é proprietária da maior rede de supermercados do estado, o Grupo Líder. Mesmo com as recomendações das autoridades sanitárias para ficar em casa, ele saía diariamente sem máscara, como se a pandemia do novo coronavírus não tivesse chegado a Belém, onde mora. “Não era muito adepto do álcool em gel. Estava trabalhando todos os dias no escritório, sem home office, passeava pela cidade e ia às compras mesmo sendo dono uma rede de supermercados. Adoro visitar mercados pelo país afora”, contou. Não deu outra. Ele, o pai e a mãe contraíram Covid-19. “Se arrependimento matasse...”, comentou.

Outro supermercadista afortunado do Pará, José Santos de Oliveira, de 77 anos, achava que estava imune ao vírus. Atleta, exercitava-se todos os dias em casa e no trabalho e sempre manteve uma alimentação saudável. Ao descumprir as recomendações de distanciamento social, foi infectado pela Covid-19 e agonizou com a doença, deixando familiares muito apreensivos.

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O empresário Kleber Ferreira de Menezes foi secretário de Transportes do Pará. Quando esteve no cargo, chegou a ser denunciado pelo Ministério Público por improbidade administrativa e crime contra o Erário, envolvendo valores na casa dos R$ 20 milhões em contratos com sérias suspeitas de fraude. Ele refuta todas as acusações (“Não sou ladrão!”). Menezes também não dava a menor bola para o novo coronavírus e levava uma vida em Belém como se nada estivesse acontecendo. Teve tosse enquanto assistia à televisão e, em poucos dias, ficou perto de morrer.

Mas o que Rodrigues, Oliveira e Menezes têm em comum além do teste positivo para Covid-19 e da conta bancária milionária? Para fugir da morte, os ricos de Belém — como o trio de empresários — estão abrindo a carteira, correndo para o aeroporto e embarcando em jatinhos de luxo equipados com UTI. Eles seguem rumo aos melhores hospitais de São Paulo em busca de sobrevivência. Rodrigues foi socorrido no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Oliveira no Hospital Israelita Albert Einstein e Menezes no Sírio-Libanês, todos na capital paulista. Os três estavam em estado grave quando fizeram a viagem.

Os profissionais que integram o voo são os mesmos de uma UTI, como um médico intensivista e um enfermeiro. O medo de contágio é grande. Foto: Reprodução
Os profissionais que integram o voo são os mesmos de uma UTI, como um médico intensivista e um enfermeiro. O medo de contágio é grande. Foto: Reprodução

Um levantamento de ÉPOCA atesta que são embarcados diariamente oito pacientes de Covid-19 em jatos com UTI de Belém para outros estados e até para o exterior. A maioria segue para São Paulo. Os paraenses endinheirados não fogem do Pará à toa quando são contaminados pelo coronavírus. A nova doença está devastando a capital numa velocidade assustadora. Em duas semanas, os casos de mortes pela Covid-19 aumentaram 900% no estado. Até a quarta-feira 6, o Pará já computava 5.295 casos confirmados e 406 mortes, uma taxa de 4,2 óbitos por 100 mil habitantes. Na média do Brasil, esse índice está em 3,7 por 100 mil.

A maioria dos casos se concentra em Belém, que vive um clima de terra arrasada. Todos os hospitais — tanto da rede pública quanto da privada — estão lotados e operando acima do limite. No Hospital Abelardo Santos, a maior referência paraense em coronavírus, há pacientes definhando em macas à espera de uma vaga na UTI. Sem capacidade de atender à demanda, Belém vive uma situação inédita no país: os pacientes estão saindo de casa em busca de atendimento médico, dão com a cara na porta e acabam sucumbindo no meio da rua. Com o estado de calamidade e com uma adesão de 45% ao isolamento social na capital, o governo foi obrigado a decretar lockdown (bloqueio total) na quinta-feira 7 em dez municípios da Região Metropolitana de Belém.

“Um dos empresários gravou e enviou um vídeo pelo WhatsApp, que logo viralizou: ‘Oi gente! Estamos embarcando agora de Belém para São Paulo, eu e minha esposa, a doutora Lastênia. Estamos entrando na UTI aeromédica’”

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Jonas Rodrigues, o dono de mercados, contou que o primeiro a pegar o novo coronavírus na família foi o pai, José Corrêa Rodrigues, de 70 anos. Rapidamente a doença avançou, e sua mãe, Ana Célia, de 67 anos, também foi contaminada. Ele chegou a ligar para alguns hospitais particulares de Belém, mas não havia leito de UTI disponível nem no mais aparelhado da capital. “Se não tivéssemos embarcado na UTI aeromédica, meu pai teria morrido, pois essa doença evolui numa rapidez impressionante. Graças a Deus, ele apresentou melhoras”, agradeceu. “Olha, eu assumo que subestimei essa doença. Achava que ela era algo distante. Até que vi meu pai passando mal como nunca vi antes. Aí passei a achar que era coisa de idoso. Foi preciso eu sofrer uma súbita falta de ar para atestar que não dá para brincar com isso”, descreveu. Jonas Rodrigues se curou e teve alta hospitalar, mas resolveu ficar em São Paulo para cuidar do pai. “Só saio daqui com ele”, avisou.

Kleber Menezes achava que iria morrer quando sentiu os piores efeitos da Covid-19. Ele chegou a se internar em um hospital particular em Belém, mas correu de lá tão logo conseguiu contratar a UTI aérea e reservou duas vagas nos apartamentos do Sírio-Libanês. Uma para ele e a outra para sua mulher, a cirurgiã plástica Lastênia Menezes, uma das mais requisitadas da capital paraense. A médica também pegou o vírus e adoeceu de Covid-19. Apavorada, escapou de Belém com o marido na mesma UTI aeromédica.

No Pará, Kleber Menezes é uma figura polêmica. Além das acusações feitas pelo Ministério Público, ganhou fama pelos vídeos que posta em suas redes sociais ostentando riqueza. Quando embarcou na UTI aérea, no aeroporto de Belém, fez questão de gravar um vídeo pelo celular e postar no grupo de WhatsApp do condomínio, todo paramentado com equipamentos de proteção individual. A ideia, segundo disse, era mostrar aos vizinhos que estava bem. No vídeo, ele tosse logo na introdução e faz uma narração na sequência: “Oi gente! Estou embarcando agora de Belém para São Paulo. Estamos eu e minha esposa, a doutora Lastênia. Estamos entrando na UTI aeromédica. Se Deus quiser, vai dar tudo certo. Um forte abraço a todos”. O vídeo, lógico, migrou do WhatsApp para todas as redes sociais e rapidamente viralizou. Menezes recebeu críticas por todos os lados. Alguns comentários maldosos insinuaram que o ex-secretário pagou a UTI aeromédica e as diárias do Sírio-Libanês com dinheiro supostamente desviado dos cofres públicos. “Jamais!”, defendeu-se. “Quando assumi cargo público eu já era rico, pois atuava na área portuária. (...) Meu sangue é nordestino. Na minha terra, pode até chamar alguém de corno, que se leva na brincadeira. Agora, de ladrão? Nunca!”, argumentou ele, que é baiano.

Em Belém, o sistema de saúde colapsou, e doentes são recusados em hospitais. Já há cenas de doentes caindo pelas ruas, como aconteceu nos lugares mais atingidos. Foto: Raimundo Paccó
Em Belém, o sistema de saúde colapsou, e doentes são recusados em hospitais. Já há cenas de doentes caindo pelas ruas, como aconteceu nos lugares mais atingidos. Foto: Raimundo Paccó

Pegar uma UTI aérea de Belém para São Paulo custa caro. ÉPOCA levantou uma cotação com três empresas que fazem esse tipo de transporte. O valor é calculado pela quilometragem. Em tempos de pandemia, as tarifas sofreram aumentos de até 30% por causa da alta demanda e do risco de contaminação a que a tripulação é submetida ao transportar doentes com o novo coronavírus. O custo médio para levar um paciente entubado da capital do Pará até São Paulo gira em torno de R$ 120 mil. Uma das maiores empresas que atuam com pacientes de Covid é a Brasil Vida. Na cotação feita no sábado 2 pela reportagem com essa empresa, o transporte de um paciente de Belém para o Sírio-Libanês custaria R$ 118 mil. Na quarta-feira 6, esse valor estava em R$ 125 mil. O funcionário encarregado de fazer a cotação, Tiago Pinheiro, justificou o aumento alegando a alta procura e os custos de manter médicos e enfermeiros em casa à disposição 24 horas para uma possível emergência. “Eles recebem diárias de plantão mesmo estando em casa sem fazer nada”, ponderou. E garantiu que não há aumento no preço quando o paciente tem Covid-19. “Tanto faz se ele foi contaminado com coronavírus ou se quebrou a perna. O preço é o mesmo”, assegurou.

O voo numa UTI aeromédica é algo delicado quando o paciente tem problemas respiratórios por causa do aumento da pressão atmosférica nas alturas. “O risco de óbito é muito maior. Os pacientes precisam de muito cuidado, até porque o voo de Belém para São Paulo é muito longo (dura três horas e meia) para um paciente que segue entubado”, explicou o enfermeiro de UTI aérea João Godoi. Ele também disse que a equipe voa com muito medo de ser contaminada, mesmo que o paciente siga a viagem todo “embrulhado” num plástico de polietileno. Já os profissionais de saúde e o piloto vestem-se com roupas impermeáveis, incluindo galochas de borracha, duas máscaras e mais o protetor facial de plástico conhecido como face shield. Isso é proteção para contaminação biológica, a de nível III. Mesmo assim há casos de profissionais de Saúde que se contaminaram com coronavírus durante o voo numa UTI. Algumas empresas de táxi-aéreo, inclusive, vêm se recusando a transportar pacientes com Covid-19 por causa do risco de contágio.

Uma das maiores festas religiosas do país, atraindo mais de 2 milhões de pessoas todos os anos, o Círio deverá ser cancelado pela primeira vez. Foto: Rubens Chaves
Uma das maiores festas religiosas do país, atraindo mais de 2 milhões de pessoas todos os anos, o Círio deverá ser cancelado pela primeira vez. Foto: Rubens Chaves

Na UTI aeromédica, há todos os equipamentos que uma UTI hospitalar possui. Todos os voos são feitos com um médico intensivista e um enfermeiro especializado. Se o paciente de Covid-19 embarcar respirando e, durante a viagem, enfrentar problemas pulmonares, ele será entubado durante a viagem. Caso o estado de saúde se agrave com risco iminente de óbito, o piloto decidirá se volta para a cidade de origem ou se faz um pouso de emergência no aeroporto mais próximo. Segundo todas as empresas consultadas por ÉPOCA, no valor cobrado pelo transporte aéreo dos doentes estão inclusos os transportes em ambulâncias do hospital de origem em Belém até o avião e do avião em solo paulistano até o hospital onde o paciente será internado. No voo é possível levar até dois acompanhantes.

O médico intensivista César Collyer atua na linha de frente no combate ao novo coronavírus em Belém no Hospital Ophir Loyola. Pertencente à rede estadual, a entidade é especializada em câncer, mas as 30 UTIs do hospital estão abarrotadas de pacientes com Covid-19. “Nunca vi nada igual em meus 20 anos de carreira. Ontem, um médico de minha equipe morreu contaminado por esse vírus. Estamos esgotados fisicamente e psicologicamente. Me sinto com as mãos atadas por ver pessoas morrendo todos os dias sem ter o que fazer”, desabafou. “Quem tem dinheiro tem mais de procurar atendimento fora de Belém porque a rede particular também está colapsada”, avisou.

O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho (PSDB), também aconselha os ricos a procurarem tratamento fora da cidade que administra, pois a situação no Pará está num nível de colapso nunca visto antes. Ele disse que nunca viu nada parecido em 40 anos de vida pública. “Aqui, a situação é dramática. A população não deu muita bola para a pandemia. As feiras e os supermercados ficam lotados no fim de semana. Nos bairros mais populares, as pessoas vão para as ruas e fazem aglomerações sem usar máscara. O paraense não acredita no que vê na TV todos os dias. Parte da população também sai de casa porque precisa trabalhar para sobreviver”, avaliou o prefeito. Ele também atribuiu o pouco-caso dos paraenses em relação à pandemia às fake news disseminadas na internet. “Muita gente não acredita no avanço da doença porque se informa nas bobagens publicadas em redes sociais”, concluiu. Ele disse que entende que os ricos estejam procurando tratamento em outros estados. “Os muito ricos vão para onde há as melhores tecnologias. Isso é uma evidência de que a rede privada no Pará também saturou”, disse o prefeito.

“O preço de um voo nessas UTIs, de Belém a São Paulo, custa em torno de R$ 120 mil. A tripulação viaja paramentada e protegida, mas ainda assim teme o alto risco de infecção”

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Ricos e pobres do Pará costumam recorrer a Nossa Senhora de Nazaré para alcançar a cura de doenças graves, como câncer. No dia do Círio, no segundo domingo de outubro, os fiéis costumam pagar pelas graças alcançadas ao longo do ano. Em 2020, os promesseiros poderão não ter como quitar a dívida com a Santa. Como o Círio de Nazaré se constitui na maior aglomeração de gente — a procissão do ano passado reuniu mais de 2 milhões de pessoas —, não há a menor possibilidade de a festa religiosa ser realizada daqui a cinco meses, conforme o previsto. A Igreja Católica, que organiza o evento, ainda não sabe como comunicar esse fato a seus fiéis. Duas cerimônias concorridas (a apresentação do cartaz do Círio e o ritual de descer a imagem de Nossa Senhora do altar-mor no mês de maio) serão feitas virtualmente até o fim do mês. No entanto, 90% das reservas feitas para o período da festa foram canceladas, segundo o Sindicato dos Hotéis do Pará. Esse dado indica uma evasão em massa dos turistas. “Pelo andar da carruagem, está bem difícil ter Círio em 2020. Embora eu seja o prefeito da cidade e devoto de Nossa Senhora de Nazaré, vou deixar a decisão pelo cancelamento ou por um possível adiamento para a Igreja Católica”, disse o prefeito. “Mas, pelo caminho que estamos seguindo com essa pandemia, não vejo cenário para uma aglomeração de centenas de milhares de pessoas nas ruas. Não vislumbro a possibilidade de haver Círio”, avisou.

O arcebispo de Belém, Dom Alberto Taveira Corrêa, presidente do Conselho Consultivo do Círio de Nazaré, ficou irritado quando se cogitou o cancelamento da festa religiosa. “Estamos mantendo todo o calendário do Círio. No momento oportuno eu anuncio se vai ter Círio ou não ou se ele será adiado, suspenso ou mesmo cancelado. Por ora, estamos trabalhando com todas as forças para fazer uma festa bonita para os paraenses. Mas vamos procurar as autoridades para decidirmos juntos”, ponderou. Como os fiéis atribuem a Nazaré curas milagrosas, um padre de Belém pegou a imagem de Nossa Senhora usada no Círio e fez um sobrevoo de helicóptero pela cidade no início de abril, na tentativa de alcançar um novo milagre: exterminar o novo coronavírus da maior metrópole da Amazônia e, sem ele, conseguir uma autorização sanitária para realizar o Círio. Até agora, não deu certo.



July 31, 2020

Cancel culture', a patrulha ideológica 2.0

O rapper Kanye West, notório bad guy da música, foi “cancelado” depois de se dizer eleitor de Donald Trump e listar os benefícios da escravidão. Foto: Arte sobre foto de Andrew Harrer / Bloomberg / Getty Images

Jerônimo Teixeira



Estão cancelados Justin Trudeau, Chris Evans, Oprah Winfrey, Kanye West e Taylor Swift. Autos de fé realizados nas redes sociais decretaram que essas personalidades públicas, entre outras tantas, cometeram ações politicamente comprometedoras ou deram declarações etnicamente insensíveis e por esses crimes devem ser canceladas, como se cancela um cartão de crédito ou uma conta de serviço de streaming. Não se deve mais reconhecer a existência do primeiro-ministro do Canadá, do ator que fez o Capitão América, da apresentadora que se tornou chefe de um império de mídia, da cantora de “Shake it off” e do rapper de “Gold digger”. Para todos os efeitos, são todos não pessoas — embora continuem bem populares fora dos círculos militantes da internet. Os vigilantes da chamada “cancel culture” (cultura do cancelamento) não perdoam: para eles, indícios de preconceito em um tuíte de uma década atrás bastam para condenar uma celebridade ao opróbrio. Relativamente recente, o fenômeno também é chamado de “call-out culture” — “call out” conjuga a ideia de denunciar, criticar alguém, e, ao mesmo tempo, chamá-lo a se explicar pela falta cometida.

O ato de “cancelar” ganhou especial destaque no final de outubro do ano passado, quando foi criticado por Barack Obama em um evento na fundação que leva seu nome. De forma elegante, mas incisiva, o ex-presidente dos Estados Unidos acusou a pretensão de pureza que embasa a nova cultura jovem — uma pureza que não aceita negociações ou concessões. “O mundo é bagunçado”, ponderou Obama. “Existem ambiguidades. Pessoas que fazem coisas boas têm suas falhas.” Obama atacou com especial precisão o ímpeto justiceiro que, sobretudo nas universidades, dominou a juventude: “Tenho a sensação de que hoje, entre os jovens — e isso é acelerado pelas redes sociais —, há a noção de que o único modo de alcançar mudanças é julgar outras pessoas da forma mais severa possível, e isso basta”. De fato, não basta: a prática do “cancelamento”, além de pouco fazer de efetivo pelos direitos de minorias e pelas demais causas que pretende defender, também corrói o diálogo democrático. E tem tornado as novas gerações mais intolerantes — e infelizes.

Taylor Swift foi alvo de uma campanha de “cancelamento” depois de ter rebatido provocações de Kanye West. “Quando dizem que você está cancelada, não estão falando de um programa de TV, mas de uma pessoa”, disse a cantora. Foto: Arte sobre foto de Mario Anzuoni / Reuters
Taylor Swift foi alvo de uma campanha de “cancelamento” depois de ter rebatido provocações de Kanye West. “Quando dizem que você está cancelada, não estão falando de um programa de TV, mas de uma pessoa”, disse a cantora. Foto: Arte sobre foto de Mario Anzuoni / Reuters

Fenômeno originalmente americano que tem se replicado pelo mundo — no Brasil, inclusive —, a cancel culture é a versão 2.0 do que antigamente se chamava de patrulha ideológica. Temperada pelas fixações identitárias da esquerda universitária e turbinada pelas redes, as novas patrulhas são a face mais estridente da política woke (desperto, atento, em inglês), também criticada por Obama. O programa woke incorpora causas em princípio justas e razoáveis — combate ao racismo, à discriminação de gays e transgêneros e à desigualdade de gêneros. Mas ser woke consiste não tanto em defender esta ou aquela ideia: trata-se, antes, de compartilhar certa hipersensibilidade a ofensas, reais ou imaginárias, contra minorias. “Ofensivo” é a sentença terminal da cancel culture, e é significativo que os cancelamentos, com um punhado de exceções — o produtor Harvey Weinstein, que enfrenta denúncias numerosas de assédio e abuso sexual, e o músico R. Kelly, acusado de abusar sexualmente de adolescentes —, raramente incidam sobre pessoas que cometeram crimes ou transgressões objetivamente comprováveis. Em geral, uma pessoa é cancelada por algo que ela tenha dito. E a expedição de vereditos sumários não se limita a celebridades distantes: um colega de classe também pode ser cancelado, com toda a carga de censura e suposta “desonra” que isso carrega. O jornal The New York Times publicou, dias depois de Obama ter criticado a cancel culture, uma compilação de testemunhos de estudantes do ensino médio e dos primeiros anos de faculdade sobre o tema. Uma menina relatava ali a experiência de ser cancelada aos 15 anos. Como ninguém mais falava com ela, a adolescente resolveu perguntar a uma antiga amiga, por mensagem de celular, por que estava recebendo aquele tratamento de silêncio. A amiga consultada chamou outras colegas para a conversa, e a jovem cancelada recebeu uma torrente de impropérios — “mesquinha”, “sanguessuga emocional” — pelo Instagram. “Todo mundo faz coisas questionáveis ou diz coisas estúpidas. Mas as redes sociais permitem que as pessoas peguem algo que você disse no passado e transformem isso no que você é”, queixou-se a jovem.

“Fenômeno originalmente americano, a cancel culture tem se replicado pelo mundo — no Brasil, inclusive — a partir de uma hipersensibilidade que considera quase tudo ‘ofensivo’”

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Taylor Swift guarda mágoas similares do tempo em que a campanha para cancelá-la corria no Twitter. “Quando dizem que você está cancelada, não estão falando de um programa de TV, mas de uma pessoa”, disse a cantora à revista Vogue. Seu cancelamento se deu por causa de uma disputa boba com Kanye West, que fez alusões maliciosas a Taylor na música “Famous”. O próprio Kanye West foi cancelado por razões mais tipicamente políticas: é apoiador de Donald Trump e já deu declarações assombrosas sobre os benefícios da escravidão. Oprah Winfrey foi cancelada, vejam só, por se engajar no movimento #MeToo: o rapper 50 Cent acusou a apresentadora de atacar apenas abusadores negros. Chris Evans foi cancelado porque trabalhou em Missão no Mar Vermelho, filme tido como pró-Israel, e ficou ainda pior na foto quando divulgou uma imagem na qual o elenco branco aparece em primeiro plano, com figurantes negros ao fundo. No Brasil, aliás, Mallu Magalhães também sofreu pressão e se viu constrangida a se desculpar no Facebook pelo videoclipe da canção “Você não presta”, no qual ela aparece à frente de dançarinos negros. Sob o regime de vigilância das redes sociais, não se sabe qual postagem antiga pode voltar a assombrar uma celebridade: o comediante Kevin Hart deixou de ser o apresentador do Oscar de 2018 por causa de piadas homofóbicas que fez no Twitter entre 2009 e 2011. Os melindres voltam-se até contra artistas já mortos: uma retrospectiva da obra de Paul Gauguin na National Gallery de Londres foi atacada porque o pintor francês manteve relações com uma menina de 13 anos no Taiti. A matéria do jornal The New York Times sobre a controvérsia trazia o título “Chegou a hora de cancelar Paul Gauguin?”.

O comediante negro Dave Chappelle vem sendo cancelado por suas piadas sobre transgêneros. E também porque respondeu debochando da cancel culture em Sticks & Stones, stand-up na Netflix. Justin Trudeau, ao contrário, cultiva a imagem de político woke, preocupado com diversidade e consciência ambiental, mas caiu em desgraça quando veio à tona uma foto antiga em que aparece com o rosto pintado de negro. De acordo com o protocolo da cancel culture, ele se desculpou publicamente pela insensibilidade racial.

O cantor R. Kelly foi “cancelado” virtualmente e seus shows foram suspensos depois de ele ser acusado de assédio — nesse caso, a reação do público foi justificável. Foto: Arte sobre foto de Noam Galai / Getty Images
O cantor R. Kelly foi “cancelado” virtualmente e seus shows foram suspensos depois de ele ser acusado de assédio — nesse caso, a reação do público foi justificável. Foto: Arte sobre foto de Noam Galai / Getty Images

Na guerra cultural, a direita também pratica a censura — como se viu no cancelamento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre — e a “trollagem” on-line contra seus adversários, mas a cancel culture é uma prática mais específica da juventude de esquerda. Por isso, não se faz necessário cancelar um Donald Trump ou um Jair Bolsonaro: já está implícito que, nos esquemas binários da nova geração, eles estão no campo do mal. Mas celebridades que se associam a políticos conservadores são chamadas ao tribunal do Twitter: a apresentadora Ellen DeGeneres, pioneira da defesa dos direitos gays, foi cancelada quando vieram a público imagens suas na companhia de George W. Bush em um jogo de futebol americano.

Embora, na maioria dos casos, o cancelamento leve meramente à exposição do indivíduo a uma situação constrangedora, em algumas ocasiões ele chega, realmente, a prejudicar o nome a que é associado. A Amazon rompeu um contrato com Woody Allen por causa da acusação — já investigada e descartada pelas autoridades, e bem conhecida ao tempo em que a produtora firmara o acordo com o diretor — de que ele teria abusado da filha adotiva em 1992, e também por declarações dele sobre o movimento #MeToo. Em 2015, quando a expressão cancel culture ainda não era corrente, o cientista Tim Hunt, Nobel de Medicina de 2001, perdeu posições acadêmicas de destaque por causa de uma piada boba sobre mulheres na ciência. Recentemente, a comediante Sarah Silverman disse que perdeu o papel em um filme importante — não disse qual — porque fotos antigas suas pintada com tinta negra foram descobertas. Já Taylor Swift exorcizou seu cancelamento no disco seguinte, Reputation. Jesus is king, disco que Kanye West lançou no ano passado, foi para o topo das paradas; e Oprah continua bilionária. Há quem diga, com base nessa circunstância, que a cancel culture não é a inquisição pós-moderna que seus críticos imaginam.

“O ato de ‘cancelar’ ganhou especial destaque no final de outubro do ano passado, quando foi criticado por Barack Obama, que, de forma elegante, mas incisiva, acusou a pretensão de pureza que embasa a nova cultura jovem”

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Na imprensa americana e inglesa, aliás, artigos de opinião sobre as declarações de Obama tentaram minimizar os efeitos da cancel culture. Ora, são apenas jovens exercendo o direito de criticar celebridades racistas, misóginas, homofóbicas. Quem, afora os reacionários da Fox News, seria contra isso? Mas há problemas mais profundos nessa nova cultura política, muito bem examinados pelo psicólogo Jonathan Haidt e pelo advogado Greg Lukianoff em The coddling of the American mind (algo como A inteligência americana mimada), livro de 2018 ainda inédito no Brasil. A dupla de autores qualifica de “destrutiva” a atual cultura política. Sem qualquer traço da retórica inflamatória ou proselitismo ideológico, Haidt e Lukianoff demonstram o caráter perverso da call-out culture com rigor e serenidade.

O ativista de direita Milo Yiannopoulos foi alvo de protestos na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017, depois de ter sido convidado para dar uma palestra. Manifestantes quebraram prédios e houve feridos. Foto: Montagem sobre foto de Justin Sullivan / Getty Images
O ativista de direita Milo Yiannopoulos foi alvo de protestos na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017, depois de ter sido convidado para dar uma palestra. Manifestantes quebraram prédios e houve feridos. Foto: Montagem sobre foto de Justin Sullivan / Getty Images

Em seu trabalho à frente da Fire, organização que defende a liberdade de expressão nos campi americanos, Lukianoff notou uma tendência alarmante: se antes a maioria dos casos com que lidava eram de censura exercida pela administração da universidade, em torno de 2013 começaram a avultar os episódios em que eram os estudantes que pediam a remoção de material potencialmente “ofensivo” de certos cursos. Haidt tinha uma percepção semelhante, e por isso os dois se reuniram para compor o livro a quatro mãos. The coddling of the American mind é um retrato desalentador de universidades que renegaram o senso crítico e o livre pensamento em favor de códigos autoritários de conduta e linguagem — códigos que são referendados e reforçados pelos alunos. Firmou-se, nas comunidades acadêmicas, a ideia de que uma faculdade deve oferecer ao corpo discente um “espaço seguro”. O sentido da palavra “segurança”, como bem observam os autores, expandiu-se para além de qualquer medida razoável: ideias ou palavras incorretas são vistas como ameaças efetivas à segurança dos estudantes, em particular àqueles pertencentes a minorias. Como resultado, instaura-se uma ortodoxia policialesca, na qual ideias divergentes são silenciadas. Eis dois dos vários casos de cerceamento à liberdade acadêmica narrados no livro:

1. Um professor da Universidade de Northern Colorado pediu a leitura de um artigo que se opunha ao direito de transgêneros usarem o banheiro que desejam. Ele explicou que não esperava que os alunos concordassem com o texto, mas que era necessário conhecer e discutir pontos de vista diversos. Um estudante o denunciou à administração da universidade por preconceito; o professor foi repreendido, aconselhado a não falar mais sobre transexualidade, e seu contrato não foi renovado no semestre seguinte.

2. Na Universidade Yale, uma professora escreveu à administração sugerindo que não se instaurassem regras ditando que fantasias seriam apropriadas ou inapropriadas no Halloween, pois não era preciso tratar os alunos como criaturas vulneráveis, incapazes de negociar entre si o que é ou não aceitável. Esse e-mail tão razoável sobre tema tão trivial foi fatalmente interpretado como uma defesa de fantasias racistas. Protestos de estudantes intimidaram a professora e seu marido, que também tinha um posto em Yale; a administração da universidade não lhes prestou apoio, e eles acabaram renunciando aos cargos que ocupavam.

Nem mesmo a defesa da causa LGBT salvou a apresentadora Ellen DeGeneres de ser “cancelada” depois de fotos suas com George W. Bush virem à tona. Foto: Montagem sobre foto de Steve Granitz / WireImage
Nem mesmo a defesa da causa LGBT salvou a apresentadora Ellen DeGeneres de ser “cancelada” depois de fotos suas com George W. Bush virem à tona. Foto: Montagem sobre foto de Steve Granitz / WireImage

A cancel culture universitária exercita-se também na prática de vetar, em eventos no campus, convidados cujas ideias são tidas como agressivas. Com frequência, a universidade cede à pressão e “desconvida” o palestrante incômodo — geralmente algum acadêmico identificado com a direita, embora os “desconvidados” em anos recentes também incluam o comediante Bill Maher e Madeleine Albright, secretária de Estado do governo Clinton. Quando o evento é mantido, em geral, protestos estudantis tentam impedi-lo, barrando a entrada de pessoas no local da conferência ou fazendo barulho para que não se possa ouvir o indesejado. Especialmente brutal foi o protesto que impediu o inglês Milo Yiannopoulos, jovem agitador da direita, de falar na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017. Manifestantes mascarados do Antifa, grupo que diz combater o fascismo, espancaram dezenas de pessoas, e a destruição na universidade e nos arredores foi estimada em US$ 0,5 milhão. Na lógica tribal dos manifestantes, violência ainda maior seria o que Yiannopoulos teria a dizer. Outros protestos violentos se seguiram naquele ano, exacerbando a polarização da política americana. A radicalização é, aliás, uma consequência do ambiente de intimidação física e verbal que se estabeleceu em muitos campi: os moderados, avessos à beligerância gratuita, tendem a se calar, e só as vozes mais extremas têm vez.

“Essa onda censória emergiu com a chegada à universidade da Geração Z, ou iGen — i de internet. Nascidos em torno de 1995, os jovens de classe média dessa geração viveram em lares superprotetores, com menos tempo de brincadeira livre nas ruas e de vida social ativa”

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Haidt e Lukianoff não são direitistas rábidos à caça de espectros como a ideologia de gênero ou a correção política. Eles se apresentam como progressistas e eleitores do Partido Democrata, mas acreditam que a diversidade de pontos de vista e a livre discussão de visões de mundo são essenciais para a educação. Preocupam-se também com o bem-estar psicológico dos jovens hoje engajados na call-out culture. Essa onda censória emergiu, segundo os autores, com a chegada à universidade da chamada Geração Z, ou iGen — i de internet. Nascidos em torno de 1995, os jovens de classe média dessa geração viveram em lares superprotetores, com menos tempo de brincadeira livre nas ruas e de vida social ativa. Cresceram com smartphones na mão, ligados às redes sociais que então começavam a conquistar o mundo. São, segundo estatísticas americanas de saúde mental, mais propensos à ansiedade e à depressão. Formados em uma cultura política que enfatiza versões não muito matizadas de identidade étnica e justiça social, em geral encontraram faculdades que não os desafiaram intelectualmente — ao contrário, incentivaram sua santimônia.

Haidt e Lukianoff transmitem, no livro, a esperança de que as distorções emocionais com que essa geração observa e julga o mundo possam ser corrigidas, e deixam, nos capítulos finais, recomendações para que escolas, pais e alunos alterem os rumos. É de esperar, pelo menos, que as próximas gerações arrumem o estrago.

July 30, 2020

O autódromo e a floresta do Camboatá, uma fábula carioca

A Floresta do Camboatá, com árvores raras de até 20 metros de altura, está ameaçada pela construção de um circuito de F1 com uma pista de quase 6 km de extensão

Ruth de  Aquino

Não sei se chamo de escândalo. Roubalheira. Ou burrice. Na dúvida, tudo junto. Precisamos impedir que se passe a boiada no Rio. Pensamos na Amazônia e esquecemos que há florestas em perigo na nossa esquina. Cerca de 180 mil árvores na Floresta do Camboatá podem ser dizimadas, com bênção oficial, para construir um autódromo de quase R$ 1 bilhão. Tudo para levar a Fórmula 1 de Interlagos, em São Paulo, para a Zona Norte do Rio. Rixa provinciana, inoportuna, sem sentido. Pior, um crime ambiental. Uma audiência pública virtual prevista para 7 de agosto, agora, é passo decisivo para se ir adiante com o novo autódromo.

Esses verdes ecochatos são todos contra o desenvolvimento econômico, não é mesmo? Vamos aproveitar a pandemia para passar a motosserra no desconhecido Camboatá, naquela região carente, cimentada e calorenta de Deodoro e Guadalupe. Você já ouviu falar? Os influenciadores ricos da Zona Sul só visitam o Jardim Botânico e o Parque Lage. Nem sabem onde fica o Camboatá.

Eu nunca fui ao Camboatá nem conhecia sua história. O nome vem de uma árvore comum, com flores brancas e frutos que atraem pássaros. Último lugar de Mata Atlântica de áreas planas na cidade, com fauna e flora em extinção. Só restam no Brasil 12% de Mata Atlântica. O Camboatá tem 200 hectares, equivalente a 200 campos de futebol, com nascentes e áreas úmidas onde, nas cheias, ressurgem os peixes rivulídeos, conhecidos como peixes das nuvens, porque reaparecem com as chuvas. Peixes nas nuvens me remetem ao realismo fantástico latino-americano.

Como trocar oxigênio e beleza eternos por especulação imobiliária e uma pista de 5.835 metros de extensão com uso esporádico nos GPs? Um projeto que nem sabemos se ficará pelo meio ou se será abandonado após a construção, como tantos elefantes brancos de obras megalômanas. Querem destravar logo. E construir o circuito em um ano, para ter a F1 já no Rio em 2021. Que chá de cogumelo esse pessoal toma? 

O terreno é do Exército. Havia ali paióis de munição. Cientistas do Jardim Botânico, entre eles o biólogo e pesquisador Haroldo Lima, minha maior fonte para este artigo, começaram a catalogar as árvores do Camboatá na década de 1980 a pedido dos militares. No governo Cabral, em 2010, surgiu a conversa de construir ali um autódromo. E como as péssimas ideias sempre sobrevivem no Rio, quando há muita grana envolvida, a pressão aumentou agora. 

Vamos comemorar, cariocas, vamos tirar a F1 dos paulistas, num ano em que o Grande Prêmio Brasil foi cancelado por conta da pandemia descontrolada. Por que será que insistem no novo autódromo num estado quebrado, falido, desigual, com necessidades urgentes como escolas, hospitais, saneamento, moradias dignas e segurança? Como assim? Ah, esqueci. Tem aquela história de “legado” pra boi dormir.

Faz quatro anos desde a Olimpíada do Rio. O Brasil prometeu a 2 bilhões de espectadores criar a Floresta dos Atletas. No Maracanã, os atletas plantaram, em totens, sementes que seriam levadas para Deodoro. Lindo. Seria “um legado olímpico verde”. Faltou dinheiro. Tinha de faltar. Precisávamos de joias e barras de ouro. Hoje, as sementes viraram arbustos em um sítio. Com manutenção cara. Jamais foram replantadas.

Quanto papo me-engana-que-eu-gosto. A turma do autódromo do Rio promete compensar a destruição da floresta com propostas inexequíveis, como “um novo corredor verde entre maciços da região”. Tudo para rotular o projeto de “autódromo verde e sustentável”. O único verde que esse pessoal idolatra, sério, deve ser o dólar. 

Os argumentos a favor são os de sempre. “O dinheiro não será público, será privado”. “F1 trará receita milionária para o Rio”. “Vamos plantar árvores para compensar a derrubada da floresta”. “Atrairemos turismo para uma área degradada”. Tem cara de maracutaia, tem focinho de maracutaia. O autódromo será um lindo cartão postal, já pensou se nem uso tiver? 

O hexacampeão mundial Lewis Hamilton já se disse contra o autódromo no Camboatá. “Vão derrubar árvores? Amo o Rio. Mas não quero correr em um circuito que prejudique uma terra tão bonita para nosso futuro”. Felipe Massa também reprovou. Correr sobre as cinzas de árvores nativas não pega bem. O mundo dos negócios não está mais disposto a associar suas marcas à devastação de uma floresta rara.

Construam o autódromo em outro lugar, gritam os ambientalistas e Caetano Veloso, que morou adolescente em Guadalupe. O Movimento SOS Camboatá sugeriu seis outros lugares no entorno para a construção do circuito, sem mexer na floresta. Mas, sabe como é, tem coisa aí. Meu apelo é mais radical. Esqueçam esse autódromo do Rio, que virou para o presidente B. uma obsessão semelhante à cloroquina. Quer porque quer a F1 no Rio. Lembram o Ronaldão falando que “não se faz Copa com hospitais”? Sempre é bom lembrar. Um copo vazio está cheio de ar.

Quantas negociatas se escondem por trás? Os idealizadores do GP no Rio alegam que vão derrubar (apenas) 30 mil árvores. Mas esse é só o espaço ocupado pela pista e pelo aparato necessário às corridas. Os restantes 41% do terreno serão “cedidos à Rio Motorpark”, subsidiária da americana Rio Motorsports”, como “contrapartida imobiliária”. Ou seja, para construir condomínios, prédios, derrubar mais árvores.

O projeto está cheio de pegadinhas. A empresa Rio Motorpark foi criada às pressas, 11 dias antes de ser anunciada sua escolha. Sem capital e sem estrutura para obra desse porte. Sua garantia é um “bank” não autorizado pelo Banco Central. 

Tenho uma esperança. O projeto é tão esdrúxulo que não vingará. E não será apenas por uma reação ambientalista, mas do business da F1, que planeja futuramente corridas sustentáveis, com carbono zero e combustível não poluente. A história do Camboatá vai correr o mundo. Vai virar uma luta de todos. A boiada não vai pastar na floresta carioca.

O GLOBO



July 27, 2020

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