Quando Fortuna começou a trabalhar na Folha, em 1979, já era um cartunista e artista gráfico consagrado.
Desenvolveu estilo próprio e moderno de humor nos anos 1950, adicionou a crítica política aos seus cartuns
na década seguinte, fundou com amigos talentosos o semanário O Pasquim
e, nos anos 1970, criou uma revista de quadrinhos lendária, O Bicho.
Sua entrada no jornal foi a retomada de uma parceria. Fortuna recebeu
o convite de Tarso de Castro, então editor do suplemento cultural
Folhetim. Ambos faziam parte da equipe que criou O Pasquim, em 1969.
Na Folha, ele reuniu duas frentes de trabalho que o
agradavam muito: a charge política certeira e uma inovadora proposta
visual de diagramação e paginação. Ele criou o projeto gráfico do
Folhetim.
Depois de anos combativos sob o regime militar, em veículos como o
jornal Correio da Manhã (para onde foi levado por Antonio Callado),
Pasquim e a revista Veja, Fortuna chegou à Folha no clima de um certo renascimento cultural diante da anistia política.
Produziu então uma sequência admirável de charges e cartuns, alguns funcionando como a própria capa do Folhetim.
Seguir a trajetória do maranhense Reginaldo Fortuna, nascido em 21 de
agosto de 1931 em São Luís, é um encontro constante com grandes
intelectuais brasileiros. Já no Rio, em 1951, foi Millôr Fernandes que
sugeriu a ele assinar seus desenhos como Fortuna, quando ambos
trabalhavam na revista A Cigarra.
Na década anterior, muito jovem e com o pseudônimo Ricardo Forte, ele
publicou ilustrações e textos em revistas para público infantil, como a
Sesinho (publicação do Sesi) e a consagrada Tico-Tico.
Em A Cigarra, Fortuna atravessou a década de 1950 refinando seu humor
e criando seu traço definitivo. Passeando por várias seções da revista,
experimentou técnicas de gravura, inseriu fotos em ilustrações,
entrevistou desenhistas e traduziu cartuns de autores estrangeiros para
apresentá-los ao público brasileiro.
No início dos anos 1960, trabalhou nas revistas Senhor e Pif-Paf,
esta editada pelo amigo Millôr. Foi então que Fortuna trouxe para seu
desenho o comentário político e econômico, que nunca abandonou.
Recuperar seus cartuns a partir daí é uma forma de entender a história do Brasil.
Em 1965, ele foi para o Correio da Manhã. O editor Antonio Callado
descrevia Fortuna como “líder de um cartunismo editorial”. O conteúdo
das charges do jornal passou a se comunicar com a cobertura política, com uma intensidade nunca antes experimentada.
Ele deixou a publicação em 1968. Juntou-se então a um time de amigos dispostos a construir um bunker de resistência no Pasquim.
Ao lado de textos de nomes hoje lendários, como Paulo Francis, Ivan
Lessa e Sérgio Cabral, a equipe que ilustrava o jornal era um “dream
team”, com Jaguar, Millôr, Ziraldo, Fortuna, Miguel Paiva e Claudius.
Foi no Pasquim que Fortuna criou seus personagens mais longevos de
HQ, Madame e seu Bicho Muito Louco (um cachorro de bigode). Jaguar
classifica a proposta como surreal. As histórias da senhora arrogante e
seu cão um tanto filósofo passaram a sair em 1975 na revista O Bicho,
idealizada pelo próprio Fortuna. Durou oito exemplares, hoje disputados
nos sebos a preços estratosféricos.
Antes da aventura em O Bicho, Fortuna trabalhou na Veja, entre 1974 e
1976, com uma série de capas de desenhos engraçados e críticos.
Em 1979 veio sua passagem pela Folha. Ele integrou a equipe do jornal até 1984, mas seguiu colaborando com charges até o ano seguinte.
Enquanto trabalhava na Folha, colaborou com a
revista O Careta, comandada pelo amigo Tarso de Castro, nas 19 edições
publicadas. Na segunda metade dos anos 1980, ele atuou na imprensa
sindical e publicou livros em editoras pequenas.
Em 1994, retornou à charge política no jornal Gazeta Mercantil. Essa
nova fase foi interrompida em 5 de setembro daquele ano, quando morreu
de um infarto fulminante, aos 63 anos.
No Salão de Humor de Piracicaba de 1995, foi criada a medalha
Reginaldo Fortuna, que depois seria concedida a vários de seus amigos,
como Jaguar, Millôr e Ziraldo. A homenagem valida o epíteto consagrado
dado a Fortuna, “o cartunista dos cartunistas”.
O poeta, ensaísta e diplomata Felipe Fortuna, filho do cartunista, tece considerações sobre possíveis sucessores do pai.
“Creio que, durante um período, tanto Luscar quanto Alcy foram
cartunistas cujo trabalho mostra influência do traço e da contundência
do Fortuna. Em vários depoimentos, Laerte se diz muito devedora do
trabalho político do Fortuna, sobretudo no início, quando ela ainda
desenhava para a revista Balão e para a imprensa nanica. Esses são os
três nomes que me parecem mais evidentes.”
Em 2014, foi publicado pelas Edições Pinakotheke a coletânea “Fortuna
– O Cartunista dos Cartunistas”. Lá estão reunidos trabalhos de todas
as fases da carreira dele. Ainda é encontrado nas livrarias.
Leia a seguir, a entrevista com o poeta e ensaísta Felipe Fortuna, filho do cartunista. Diplomata, ele falou com a Folha
de Seul, na Coreia do Sul. Ele conta que prepara a edição de um livro
com textos de Fortuna, caso raro de desenhista que também escrevia
prosa.
A maior parte dos cartunistas não se arrisca a escrever
prosa. No máximo, fazem roteiros de HQ. Fortuna escrevia muito bem,
mesmo sem apoio dos desenhos. É incomum, não?
Sim, é bastante incomum que cartunistas escrevam textos. A grande
exceção foi Millôr Fernandes, justamente quem certa vez declarou que
Fortuna seria um grande escritor, se escrevesse... Mas Fortuna sempre
escreveu bastante e chegou a lançar um livro somente com textos de
humor, “Acho Tudo Muito Estranho (Já o Professor Reginaldo, Não)”, da
editora Anita Garibaldi, em 1992. Se não me engano, duas influências no
texto de Fortuna são James Thurber e Stanislaw Ponte Preta. Planejo
organizar um novo livro só de textos do Fortuna.
Fortuna gostava de trabalhar em equipe. Ele contou muito a você sobre a criação do Pasquim, naquele time de feras?
Há várias histórias sobre o “Pasquim”, claro, pois ele não apenas
participou do dia a dia do jornal, mas também de algumas entrevistas.
Seu maior amigo ali foi o cartunista Jaguar. Mas Ziraldo, quando Fortuna
morreu, fez um desenho em que disse: “Eu era apaixonado pelo Millôr,
mas quem me ensinou tudo foi o Fortuna.” Meu pai foi para o “Pasquim”
depois de ter passado pela antiga “Senhor” e pela “Pif-Paf”, revista do
Millôr, onde também estavam Claudius e Ziraldo. Depois fez amizades boas
com Luiz Gê, Laerte e Angeli.
Todo mundo ressalta que o Fortuna era incrivelmente culto. Ele consumia diariamente jornais elivros?Fortuna
lia muito, principalmente ficção e história. Foi amigo de Otto Maria
Carpeaux no “Correio da Manhã”. Gostava de antologias, em especial “Mar
de Histórias”, de Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Rónai. Há
referências, tanto na família quanto entre amigos, de que desejava ser
escritor, mas acabou desenhista.
Lembro que lia diariamente o “Jornal do Brasil”. Acompanhava a “New
Yorker”, a “National Lampoon” e também o humor francês, principalmente
Siné, Wolinski e Reiser. E tinha interesse por economia, em especial
pelo processo decisório que levava a aumentos de salários e pelo
principal tema das suas charges, o custo de vida. Não lia tanto livros
de economia, apenas o noticiário. Ele nunca deixou de caricaturar os
banqueiros como homens de cartola e abotoaduras. E, no final da vida,
acabou trabalhando para sindicatos, produzindo revistas.
O livro "O Cartunista dos Cartunistas" consegue dar realmente a dimensão do trabalho do seu pai?
É um repositório, um mapa da mina. Houve também, em 2009, o lançamento
do catálogo “A Arte de Desdesenhar”, a partir de uma exposição dos
desenhos do Fortuna nos Correios. Creio que falta fazer um novo trabalho
de curadoria, estabelecendo fases e influências, e trazendo comentários
de um especialista. Toda a fase da revista “A Cigarra” e da “Revista da
Semana” me parece riquíssima. Ainda este mês, Ana Paula Simonaci e
Sérgio Cohn publicarão o número 12 da revista “Expressa” dedicado ao
Fortuna, com novos depoimentos e desenhos e originais ainda inéditos em
livro.
O que precisa ser feito, de fato, é a republicação de alguns
trabalhos no formato original, acompanhado de um bom acervo de
informações. Creio que, em algum momento, será importante ter um site
dedicado ao Fortuna. Por ora, estou mais preocupado em organizar livros e tratar do acervo. Mas aceito propostas!
Hélios Molina, que frequenta o Brasil desde os anos 1970, lança
documentário sobre o impacto de um governo conservador na arte
brasileira: 'O país vive um terremoto na cultura’
Maria Fortuna
O
jornalista e escritor francês Hélios Molina, de 67 anos, achou o Brasil
mudado quando esteve aqui, em janeiro. Com os olhos de quem frequenta o
país desde 1977, é casado com uma paulista (a produtora cultural Regina
Del Papa) e acompanha com interesse as notícias sobre o lado de cá, ele
conta ter sentido o ódio no ar.
O que confirmou logo depois, ao entrevistar 30 artistas e pensadores
para o documentário “Alô! Tudo bem?”, sobre o impacto de um governo
conservador na cultura brasileira. O músico BNegão, o humorista Gregório
Duvivier e a professora de design Claudia Bolshaw são alguns dos nomes
que refletem sobre o assunto. Hélios, que cobre a cena cultural mundial
há 30 anos — passou pelo “Le Figaro” e pelas revistas “Détour en
France”, de viagem, e “Aladim”, de arte —, finalizou o documentário
durante sua quarentena, em Barcelona.
O filme — que está na
primeira edição on-line do Festival de Cinema Brasileiro em Paris, em
cartaz na plataforma Jangada — pode ser visto também no site e no canal
do YouTube da revista cultural “Micmag Magazine”, criada por Hélios em
2011.
Hélios Molina roda documentário sobre o impacto de um governo ultraconservador na cultura brasileira Foto: Regina Del Papa
Você vem ao Brasil desde os anos 1970. Ao vir rodar o documentário este ano, que país encontrou? E que Rio?
Em
janeiro, estive no Rio e pude sentir a amplitude da mudança no país.
Como a ideia do filme era focar na cultura, percebi que o Brasil está
vivendo um “terremoto” na cultura. As pessoas têm medo de falar sobre a
situação política. A liberdade de expressão foi atingida, há tensão no
ar. O Rio está mais triste.
O que percebeu das pessoas?
Dor. Instalou-se no Brasil um sentimento de ódio que eu não conhecia,
achava que essa palavra não existia no vocabulário brasileiro. Uma
parte da população foi em direção a ideias retrógradas, a uma certa
vulgaridade. As fake news tiveram papel devastador numa sociedade
fragilizada. Mas vi que ainda perdura a poesia, que a música e o humor
continuam tendo um papel fundamental e salvador.
No filme, você diz que o Brasil degringola em direção à “incultura”. Por quê?
Artistas
dizem que não têm mais apoio público ou privado para a criação. Salas
de cinema independentes não se atrevem a mostrar filmes de autor. Existe
uma real censura. O poder da religião tem uma influência nefasta sobre
as programações culturais em geral. O que podemos esperar de um país que
suprime o Ministério da Cultura?
O que pode resultar disso?
Haverá
menos abertura de horizontes, menos senso crítico e mais submissão. A
cultura cria espíritos livres, sem ela esse patrimônio forte do Brasil
pode desaparecer.
Como os franceses percebem esse momento do Brasil?
Há
uma consternação evidente. A corrupção política, a violência, a
impunidade e o poder da religião são elementos assustadores para o
francês. Somos muito ligados à cultura. Ao constatarmos esses ataques
permanentes, criou-se um mal-estar que está afetando o turismo.
Surpreendeu-se quando o país elegeu um presidente conservador?
Não
podia imaginar um retrocesso tão grande. Descobri ideias reacionárias
intensas, egoísmo exacerbante. Fui surpreendido também pelas poucas
reações populares contra essa política destruidora.
Como
um neto e filho de espanhóis que lutaram na Guerra Civil espanhola, e
contra o fascismo, sente-se diante do avanço dessas tendências no mundo
atual?
Não esperava que, após o movimento libertário dos
anos 1970, o mundo viveria novamente esse pesadelo das
extremas-direitas. Minha família sofreu graves consequências sob a
ditadura franquista, mortes e exílio. Graças a ela, aprendi o sentido da
palavra resistência. Através dela, me sinto mais forte e menos só.
Você vê particularidades de como esse processo se desenrola no Brasil?
No Brasil existe um extremismo tropical (risos).
É fora do controle, a Justiça parece impotente. Em tantos outros
países, discursos políticos de caráter xenófobos ou racistas são
fortemente condenados. As raízes desse extremismo ainda são da época da
escravidão e da colonização. Por sorte, com perdão da palavra, ele
representa 30%.
A defesa da democracia está associada à ocupação do espaço público. Como isso se dá na pandemia?
Os brasileiros já poderiam ter ocupado esse espaço público para se
manifestarem ha muito tempo! O confinamento existe há três meses, e o
problema aí é muito mais antigo. No isolamento, as pessoas devem se unir
pelas redes sociais. Há artistas, pensadores, filósofos, ativistas,
brasileiros em geral abrindo debates e criando movimentos.
Após lockdown, a França saiu do isolamento. Como vê a diferença entre o seu país e o Brasil no combate à doença?
É
um abismo. O governo francês fez anúncios para acalmar o medo popular.
Mesmo assim, houve uma gestão desastrosa em relação ao uso das máscaras.
Também não soube frear as mortes nas casas de repouso. No Brasil, não
há nenhuma resposta política e sanitária frente à pandemia.
É otimista sobre o Brasil?
A
força vem do povo e nunca dos dirigentes. As novas gerações não têm
memória suficiente para combater. Por isso, a ideia de fazer o filme
como referência histórica para trazer um pouco de luz.
Desde que assumiu a gestão do município do Rio de Janeiro, em 2017, o
prefeito Marcelo Crivella vive uma relação de conflito com os
trabalhadores da Cultura. Um dos pontos da discórdia tem sido,
recorrentemente, o mecanismo de incentivo fiscal que assegura, desde
2013, o percentual de 1% da arrecadação do Imposto Sobre Serviços (ISS)
para o fomento de projetos culturais na cidade. Batizado Lei do ISS, o
instrumento possibilita que empresas contribuintes renunciem a parte do
pagamento do imposto, até o limite de 20% do montante devido,
destinando-a ao patrocínio de manifestações artísticas. Ou que essas
lancem mão de 5% do total previsto na lei para ser executado no ano
seguinte.
Em 29 de abril, Crivella pôs em prática a ideia de tirar da Cultura a
verba oriunda do ISS, ao conseguir aprovar um projeto de lei (PL), por
ele próprio enviado à Câmara dos Vereadores, com o qual pode desvincular
as receitas das legislações municipais. Votado em caráter emergencial, o
PL converteu-se na Lei 6.737/2020, que deu liberdade para o prefeito
agir, usando os recursos vinculados de todos os órgãos municipais da
forma como lhe convier. A justificativa foi a necessidade de
transferência de dinheiro para o combate à pandemia da Covid-19. No
mesmo dia 29, Crivella baixou um decreto regulamentando a lei, com
apenas três artigos, da qual vetou duas emendas propostas pelos
vereadores, essenciais para evitar que o montante desvinculado seja
usado para outro fim.
'Cheque em branco'
Para a cultura da cidade, é um tiro certeiro, pois o dinheiro do ISS é o único que há atualmente para o fomento às artes.
— Demos um cheque em branco ao Crivella, sem atentarmos para o fato
de que ele poderia usá-lo sem critérios. Foi o que fez, punindo,
sobretudo, a Cultura — diz o vereador Rafael Aloísio de Freitas
(Cidadania), que apresentou um projeto de decreto legislativo (PDL),
pedindo revogação do artigo que permite ao prefeito tirar da Cultura o
montante do ISS.
A verba é significativa. Neste 2020, estão previstos R$ 54,7 milhões.
Até 31 de maio, R$ 43,9 milhões já haviam sido recolhidos pelas
empresas cadastradas. Desse total, somente R$ 5 milhões foram
efetivamente pagos aos produtores contemplados. Os R$ 38,9 milhões de
diferença, com a aprovação da lei e a promulgação do decreto, podem ser
transferidos para a Saúde. Diante do quadro de instabilidade fiscal e de
incertezas jurídicas, é provável que os recolhimentos futuros, que
configuram R$ 10,8 milhões relativos ao período de junho a dezembro, não
cheguem aos produtores. O prefeito, hoje, poderia retirar da Cultura um
total de R$ 49,7 milhões, referentes ao montante já recolhido e ao que
ainda será.
Especialistas divergem
Ex-chefe da Casa Civil de Crivella, o vereador Paulo Messina (MDB),
autor da Lei do ISS, sinaliza que o prefeito comete duas infrações.
Primeiro por não distinguir que o dinheiro de renúncia fiscal não se
vincula às receitas. E segundo por tentar retroagir atos anteriores à
vigência de lei e decreto novos.
— À medida que o município abre mão de parte do imposto,
autorizando-o a investir na Cultura, o dinheiro deixa de ser da
prefeitura. Por outro lado, ainda que fosse permitido haver desvínculo, o
que não é o caso, isso só poderia ser feito a partir de 29 de abril,
data de publicação da Lei 6.737/2020. Todo o montante recolhido antes
teria de ir para a Cultura — diz Messina.
Atualmente desafeto de Crivella, Messina suspeita que o prefeito, sob
o respaldo de uma lei aprovada às pressas, comete pedalada fiscal:
— O município está com os cofres vazios, e a lei busca recolher
dinheiro de todos os fundos. Essa atitude nos leva a crer que, no caso
da Cultura, vão usar esse recurso do ISS para no futuro, havendo caixa,
recolocarem no lugar. O nome disso é pedalada fiscal. Vou ingressar com
uma denúncia no Tribunal de Contas do Município — informa Messina.
A análise do vereador quanto à natureza do recurso é defendida pelo
professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
Sergio André Rocha Gomes da Silva, também membro da Diretoria da
Associação Brasileira de Direito Tributário .
— A Lei do ISS estabelece uma renúncia de receita e não uma
vinculação. A Lei 6.737/2020 e o decreto não valem para a Cultura,
portanto. Essa carta branca dada pelo Legislativo municipal ao Crivella
fere os princípios da legalidade, moralidade administrativa e
transparência — opina Sergio André.
Cultura e Fazenda na contramão
Adolpho Konder, secretário municipal de Cultura, assegura que a pasta
vem buscando criar soluções para o setor a fim de minimizar os impactos
negativos provocados pela crise sanitária. Ele diz que o diálogo com a
secretaria de Fazenda tem sido constante no sentido de quitar as
pendências com os contemplados.
— Conseguimos liberar R$ 5 milhões do ISS. A secretaria também está
conversando, permanentemente, com patrocinadores e produtores — garante o
secretário, que conta neste 2020 com um orçamento de R$ 115 milhões
para a pasta, o menor desde 2011.
O otimismo de Konder, no entanto, caminha na contramão da perspectiva
apresentada pela secretária municipal de Fazenda, Rosemary Macedo. A
imprevisibilidade da pandemia tem levado o município, segundo ela, a
adotar medidas drásticas em função da queda na arrecadação. E em seu
entendimento, contrariando as análises do vereador Paulo Messina e do
professor Sergio André Rocha, os recursos do ISS destinados à cultura
são, sim, resultantes de receitas vinculadas à legislação municipal.
— A Lei 6.737/2020 suspende todas as vinculações, tendo em vista a
necessidade de maior autonomia do Poder Executivo para manter os
serviços essenciais à população — enfatiza Rosemary. — Os recursos do
ISS serão liberados de acordo com a devida entrada nos cofres do
Tesouro.
Ela não esclarece, no entanto, como foram aplicados ou de que forma
vem administrando os R$ 38,9 milhões que ainda teria em caixa do ISS da
Cultura, pois pagou somente R$ 5 milhões dos R$ 43,9 milhões já
recolhidos.
Carlos Alexandre Azevedo Campos, doutor em Direito Público pela Uerj,
onde ministra aulas de Direito Financeiro e Tributário, faz coro à tese
da secretária municipal de Fazenda:
— Ao conceder benefício fiscal em contrapartida aos incentivos dados
por contribuintes a projetos culturais, a Lei do ISS acaba promovendo
autêntica vinculação prévia de receita do imposto. O próprio STF (Supremo Tribunal Federal) tem esse entendimento.
Neste imbróglio jurídico, enquanto medidas efetivas de socorro aos
trabalhadores da Cultura não forem apresentadas ou formalizadas pela
prefeitura, artistas, produtores e técnicos não têm dúvidas quanto ao
subtexto contido na lei e no decreto municipal do pre
So many monuments to racism, slavery, and colonialism have been
toppled, removed, or slated for removal in the wake of the George Floyd
protests that Wikipedia’s army of volunteer editors
is keeping a running tally: Robert E. Lee, Jefferson Davis, and a slew
of other Confederate generals and notable white supremacists and
segregationists; Frank Rizzo, the notoriously racist mayor (“Vote
white”) of Philadelphia; even symbolic figures like the Pioneer and
Pioneer Mother, formerly of the University of Oregon in Eugene. As I
write, word comes that the embarrassing statue of Theodore Roosevelt
mounted on a horse and trailed by a Native American man and a black man
on foot will be removed from the main entrance of New York’s Museum of
Natural History.
Yesterday’s heroes are history’s villains. That nice Pope Francis
thought so well of Father Junípero Serra that he canonized him in 2015,
despite Native Americans’ objections to Serra’s harsh and coercive
missionary work. He’s now the patron saint of California. But protesters
in San Francisco and Los Angeles recently tore down his statue. As for
Christopher Columbus—19 statues and counting—New York Governor Andrew
Cuomo defended his presence in Manhattan’s Columbus Circle. (It “has
come to represent and signify appreciation for the Italian American
contribution to New York,” he said at a press conference.) But I
wouldn’t bet on Chris keeping his pedestal much longer. Maybe Italian
Americans could choose another compatriot, someone who brought joy to
the world and didn’t massacre and enslave vast numbers of people. Like
Verdi or Puccini.
In fact, there already is a Verdi Square just a few blocks from
Columbus Circle. (There’s a Dante Park nearby as well, which is tiny and
not well publicized. I’ve lived in New York all my life and found out
about it only while researching this column.) Italy’s contribution to
the worlds of literature, art, music, science, and thought is so huge,
every park in Manhattan could be renamed after world-famous, beloved
Italians with no trouble at all. Gramsci Triangle. Maria Montessori
Plaza. Primo Levi Square.
History is large and contains multitudes. There is no reason to cling
to torturers, warlords, conquerors, and exploiters—and especially no
reason to celebrate Confederate traitors who plunged the nation into
civil war, in the aftermath of which we are in many ways still living.
Indeed, the posthumous reputation of the Confederacy proves the adage is
wrong: It is not always the winners who write history. The “Lost
Cause”—a fantasy of the antebellum South as all crinolines, magnolias,
courtly soldiers, and happy slaves and of the war itself as a matter of
“states’ rights,” never specifying which rights were at issue—has set
the popular narrative ever since Reconstruction. It’s great that NASCAR
is banning the Stars and Bars, but why did it take so long? And why did
it take the horrible killing of George Floyd and the marching of
hundreds of thousands of protesters daily for weeks to achieve what is,
after all, a symbolic victory?
Symbols matter. Aunt Jemima, Uncle Ben, Mrs. Butterworth, and the
black chef on the Cream of Wheat box are the remnants of a once mighty
flood of ads, logos, and household items depicting black people as happy
cooks, servants, mammies, and comical children. It is not possible to
escape this history by slenderizing Aunt Jemima and giving her a modern
hairstyle or by making Mrs. Butterworth’s bottle more abstract. I’m glad
the original spokesperson for Aunt Jemima, Nancy Green, who was born
into slavery, spoke out against poverty and, according to legend, became
a millionaire, but that’s not a reason to keep the franchise going.
It’s 2020! Retiring these products is not “political correctness”; it is
the removal of a profound racial insult from our grocery stores and
kitchen tables. And if Eskimo Pies have to follow the Land O’Lakes
Native American woman into oblivion, so be it.
What will it take to get rid of the widespread celebration of our
worst moments and our worst people? It’s easy enough to take down a
statue or to change the name of a road. (Looking at you, Virginia, home
of Stonewall Jackson Highway and Lee Highway.) But some names are so
embedded in our history, our culture, and our maps that it’s hard to
imagine eradicating them, even if we wanted to. There are dozens of
places named after Columbus—Columbus, Ohio (and Indiana and Georgia
and… ). Columbia University, Columbia County, the Columbia River. (To
say nothing of Colombia, but fortunately that’s not our problem.)
There’s not much anyone can do about Serra’s sainthood; canonization is
forever. (Still, Stanford University gets points for changing the name
of Serra Mall, its main drag and postal address, to Jane Stanford Way, after the insufficiently acknowledged cofounder, with her husband, of the university.)
We do not lack for heroes, many of whom, being women and/or nonwhite,
have never gotten their due. (More will soon be added, but as of right
now, in all of New York City there are only five public statues of women.)
Let’s get rid of the bad men on horses and honor instead those who have
been neglected, famous or not. We could start with Fort Bragg, Fort
Benning, Fort Hood, and the other military bases named, bizarrely, after
Confederate fighters and rechristen them after people who fought to
save the republic and end slavery. We could celebrate artists and
writers and poets; surely Walt Whitman deserves something more inspiring
than a rest stop on the New Jersey Turnpike. We could tell a new
American story by lifting up the people who worked to make us better,
not worse—the radicals and freethinkers, progressive politicians, labor
leaders, feminists, and fighters for racial equality and the liberty and
justice for all to which our schoolchildren pledge. Germany and Austria
have gotten rid of all (well, almost all) of their place names honoring Nazis and anti-Semites, and some municipalities are currently on a binge of naming things after women, whose role in those countries’ histories has been startlingly overlooked.
But while we are toppling some statues and erecting others, let’s not
forget to do the deeper work of combating injustice. George Floyd didn’
t die because Minneapolis lacked the right monuments.
You’d have had to be some kind of evil genius to imagine something as
terrible for the world as Facebook. With an estimated 2.6 billion users
and $70 billion in annual profits, it is the most effective purveyor in
history of right-wing hate, lies, and incitement against vulnerable
people and the planet.
Is Facebook’s malevolence driven by a thirst for profit or politics?
As with Fox News, alas, that’s a false choice, as the two reinforce each
other. Facebook makes its money—as newspapers used to—by selling
eyeballs to advertisers. But before local news started collapsing,
thanks partly to the advertiser exodus to Facebook and Google,
newspapers used this model to fulfill their responsibilities to educate
readers and hold those in power to account. Facebook does the opposite:
It narrows its users’ interests and fuels their ignorance with lies and
misinformation.
Every so often, Mark Zuckerberg will issue a statement that implies
he is sorry and that Facebook will try to do better. Of course, it never
does. According to a study reported by the watchdog website Popular Information,
during the first 10 months of 2019, “politically relevant
disinformation was found to have reached over 158 million estimated
views, enough to reach every reported registered voter in the US at
least once.” That pace was accelerating, and guess what: “Most negative
misinformation (62%) was about Democrats or liberals.” The incitement of
violence remains on Facebook and on the company’s other apps as well.
Just recently, BuzzFeed News reported that an ad on Instagram,
which is owned by Facebook, showed clips from action movies of cops
being killed and invited people to “join the militia, fight the state,”
to a soundtrack of “We ain’t scared of no police / We got guns too.”
This is no accident. Yaël Eisenstat, Facebook’s former head of global elections integrity, explained in The Washington Post
that the company “profits partly by amplifying lies and selling
dangerous targeting tools that allow political operatives to engage in a
new level of information warfare. Its business model exploits our data
to let advertisers custom-target people, show us each a different
version of the truth and manipulate us with hyper-customized ads.”
Ask yourself: Why does Facebook refuse to apply its gentle fact-checking apparatus to political advertisements?
Why does it include the racist, sexist, anti-Semitic Breitbart as one of its “trusted” news sources?
Why does it continue to allow Holocaust deniers onto its site, and
why does Zuckerberg choose to define their poison as mere opinion?
Why did Facebook create a “newsworthiness” category in 2016
when dealing with President Donald Trump’s lies, racism, and hate
speech?
Why did Zuckerberg tell employees that a possible Elizabeth Warren
presidency represented an “existential” threat to the company? And what
will that mean if Joe Biden picks her as his running mate?
Why in May 2019 did Facebook refuse to take down an obviously
doctored video that falsely portrayed Nancy Pelosi as acting like a
drunk?
“And why, of all things,” asked Bill McKibben in The New Yorker, “did the company recently decide to exempt a climate-denial post from its fact-checking process?”
Here’s one reason offered by Tim Wu, a professor at Columbia
Law School: “Facebook can, by tinkering with its rules for political
ads, give itself a special, unregulated power over elections. Just that
possibility gives Facebook political leverage and politicians reasons to
want leverage over Facebook.” David Thiel, a former Facebook security
engineer quoted in the Post, said, “The value of being in favor with people in power outweighs almost every other concern for Facebook.”
Deploying their traditional working-the-refs playbook, Trump and the
Republicans have turned truth on its head by casting themselves as
victims of the site’s biases. “Facebook was always anti-Trump,” the
president has whined, and congressional Republicans and the Department
of Justice have threatened legal action to continue this campaign of
Orwellian doublespeak.
Facebook’s desire to kowtow to Republicans has been evident at least
since 2011, when it hired GOP operative Joel Kaplan as its vice
president for global public policy, along with Katie Harbath, a former
aide to Rudy Giuliani, and Kevin Martin, a former Republican-appointed
FCC chairman, to support Kaplan’s efforts. Kaplan declined to intervene
in Facebook’s decision to invite politicians to lie in their paid
advertisements. And he has stood in the way of efforts designed to
police misinformation because, according to anonymous sources quoted in
the Post, he correctly perceived that it would
“disproportionately affect conservatives.” Zuckerberg also attended a
secret dinner with Trump, Jared Kushner, and the right-wing entrepreneur
and early Facebook investor Peter Thiel.
In the wake of the Black Lives Matter protests and thanks to efforts
by the NAACP, Color of Change, and the Anti-Defamation League, we’ve
seen a Facebook advertising pause by more than 970 companies, including
Unilever, Coca-Cola, Pfizer, and Starbucks.
The social sanction is helpful. It may inspire employees to try to
change policy from within, and as Trump sounds more malignant by the
day, it also puts pressure on those at the top to protect their
reputations from the poison of his presidency.
Still, the company’s top 100 advertisers provide only 6 percent of
its income, while small businesses account for more than 70 percent. And
they do not have nearly as many alternatives. Most people I know,
myself included, do not want to quit Facebook, especially during a
socially isolating pandemic.
So here’s my idea: Let’s just boycott the ads. Don’t click on them.
That way, even the small advertisers will have to find new outlets
unless Facebook changes its policies. Spread the word… via Facebook.
O empresário Kleber Ferreira de Menezes e a mulher, Lastênia, pouco
antes de embarcarem na UTI aérea que os levou de Belém a São Paulo para
se tratarem de Covid-19. O voo dura três horas e meia. Foto: Reprodução
Ullisses Campbell
A família do empresário Jonas Rodrigues, de 41 anos, é uma das mais
ricas do Pará. Ela é proprietária da maior rede de supermercados do
estado, o Grupo Líder. Mesmo com as recomendações das autoridades
sanitárias para ficar em casa, ele saía diariamente sem máscara, como se
a pandemia do novo coronavírus não tivesse chegado a Belém, onde mora.
“Não era muito adepto do álcool em gel. Estava trabalhando todos os dias
no escritório, sem home office, passeava pela cidade e ia às compras
mesmo sendo dono uma rede de supermercados. Adoro visitar mercados pelo
país afora”, contou. Não deu outra. Ele, o pai e a mãe contraíram
Covid-19. “Se arrependimento matasse...”, comentou.
Outro supermercadista afortunado do Pará, José Santos de Oliveira, de
77 anos, achava que estava imune ao vírus. Atleta, exercitava-se todos
os dias em casa e no trabalho e sempre manteve uma alimentação saudável.
Ao descumprir as recomendações de distanciamento social, foi infectado
pela Covid-19 e agonizou com a doença, deixando familiares muito
apreensivos.
O empresário Kleber Ferreira de Menezes foi
secretário de Transportes do Pará. Quando esteve no cargo, chegou a ser
denunciado pelo Ministério Público por improbidade administrativa e
crime contra o Erário, envolvendo valores na casa dos R$ 20 milhões em
contratos com sérias suspeitas de fraude. Ele refuta todas as acusações
(“Não sou ladrão!”). Menezes também não dava a menor bola para o novo
coronavírus e levava uma vida em Belém como se nada estivesse
acontecendo. Teve tosse enquanto assistia à televisão e, em poucos dias,
ficou perto de morrer.
Mas o que Rodrigues, Oliveira e Menezes têm em comum além do teste
positivo para Covid-19 e da conta bancária milionária? Para fugir da
morte, os ricos de Belém — como o trio de empresários — estão abrindo a
carteira, correndo para o aeroporto e embarcando em jatinhos de luxo
equipados com UTI. Eles seguem rumo aos melhores hospitais de São Paulo
em busca de sobrevivência. Rodrigues foi socorrido no Hospital Alemão
Oswaldo Cruz, Oliveira no Hospital Israelita Albert Einstein e Menezes
no Sírio-Libanês, todos na capital paulista. Os três estavam em estado
grave quando fizeram a viagem.
Os profissionais que integram o voo são os mesmos
de uma UTI, como um médico intensivista e um enfermeiro. O medo de
contágio é grande. Foto: Reprodução
Um levantamento de ÉPOCA atesta que são
embarcados diariamente oito pacientes de Covid-19 em jatos com UTI de
Belém para outros estados e até para o exterior. A maioria segue para
São Paulo. Os paraenses endinheirados não fogem do Pará à toa quando são
contaminados pelo coronavírus. A nova doença está devastando a capital
numa velocidade assustadora. Em duas semanas, os casos de mortes pela
Covid-19 aumentaram 900% no estado. Até a quarta-feira 6, o Pará já
computava 5.295 casos confirmados e 406 mortes, uma taxa de 4,2 óbitos
por 100 mil habitantes. Na média do Brasil, esse índice está em 3,7 por
100 mil.
A maioria dos casos se concentra em Belém, que vive um clima de terra
arrasada. Todos os hospitais — tanto da rede pública quanto da privada —
estão lotados e operando acima do limite. No Hospital Abelardo Santos, a
maior referência paraense em coronavírus, há pacientes definhando em
macas à espera de uma vaga na UTI. Sem capacidade de atender à demanda,
Belém vive uma situação inédita no país: os pacientes estão saindo de
casa em busca de atendimento médico, dão com a cara na porta e acabam
sucumbindo no meio da rua. Com o estado de calamidade e com uma adesão
de 45% ao isolamento social na capital, o governo foi obrigado a
decretar lockdown (bloqueio total) na quinta-feira 7 em dez municípios
da Região Metropolitana de Belém.
“Um dos empresários gravou e enviou um vídeo pelo WhatsApp, que logo
viralizou: ‘Oi gente! Estamos embarcando agora de Belém para São Paulo,
eu e minha esposa, a doutora Lastênia. Estamos entrando na UTI
aeromédica’”
Jonas Rodrigues, o dono de mercados, contou que o primeiro a pegar o
novo coronavírus na família foi o pai, José Corrêa Rodrigues, de 70
anos. Rapidamente a doença avançou, e sua mãe, Ana Célia, de 67 anos,
também foi contaminada. Ele chegou a ligar para alguns hospitais
particulares de Belém, mas não havia leito de UTI disponível nem no mais
aparelhado da capital. “Se não tivéssemos embarcado na UTI aeromédica,
meu pai teria morrido, pois essa doença evolui numa rapidez
impressionante. Graças a Deus, ele apresentou melhoras”, agradeceu.
“Olha, eu assumo que subestimei essa doença. Achava que ela era algo
distante. Até que vi meu pai passando mal como nunca vi antes. Aí passei
a achar que era coisa de idoso. Foi preciso eu sofrer uma súbita falta
de ar para atestar que não dá para brincar com isso”, descreveu. Jonas
Rodrigues se curou e teve alta hospitalar, mas resolveu ficar em São
Paulo para cuidar do pai. “Só saio daqui com ele”, avisou.
Kleber Menezes achava que iria morrer quando sentiu os piores efeitos
da Covid-19. Ele chegou a se internar em um hospital particular em
Belém, mas correu de lá tão logo conseguiu contratar a UTI aérea e
reservou duas vagas nos apartamentos do Sírio-Libanês. Uma para ele e a
outra para sua mulher, a cirurgiã plástica Lastênia Menezes, uma das
mais requisitadas da capital paraense. A médica também pegou o vírus e
adoeceu de Covid-19. Apavorada, escapou de Belém com o marido na mesma
UTI aeromédica.
No Pará, Kleber Menezes é uma figura polêmica. Além das acusações
feitas pelo Ministério Público, ganhou fama pelos vídeos que posta em
suas redes sociais ostentando riqueza. Quando embarcou na UTI aérea, no
aeroporto de Belém, fez questão de gravar um vídeo pelo celular e postar
no grupo de WhatsApp do condomínio, todo paramentado com equipamentos
de proteção individual. A ideia, segundo disse, era mostrar aos vizinhos
que estava bem. No vídeo, ele tosse logo na introdução e faz uma
narração na sequência: “Oi gente! Estou embarcando agora de Belém para
São Paulo. Estamos eu e minha esposa, a doutora Lastênia. Estamos
entrando na UTI aeromédica. Se Deus quiser, vai dar tudo certo. Um forte
abraço a todos”. O vídeo, lógico, migrou do WhatsApp para todas as
redes sociais e rapidamente viralizou. Menezes recebeu críticas por
todos os lados. Alguns comentários maldosos insinuaram que o
ex-secretário pagou a UTI aeromédica e as diárias do Sírio-Libanês com
dinheiro supostamente desviado dos cofres públicos. “Jamais!”,
defendeu-se. “Quando assumi cargo público eu já era rico, pois atuava na
área portuária. (...) Meu sangue é nordestino. Na minha terra, pode até
chamar alguém de corno, que se leva na brincadeira. Agora, de ladrão?
Nunca!”, argumentou ele, que é baiano.
Em Belém, o sistema de saúde colapsou, e doentes
são recusados em hospitais. Já há cenas de doentes caindo pelas ruas,
como aconteceu nos lugares mais atingidos. Foto: Raimundo Paccó
Pegar uma UTI aérea de Belém para São Paulo
custa caro. ÉPOCA levantou uma cotação com três empresas que fazem esse
tipo de transporte. O valor é calculado pela quilometragem. Em tempos de
pandemia, as tarifas sofreram aumentos de até 30% por causa da alta
demanda e do risco de contaminação a que a tripulação é submetida ao
transportar doentes com o novo coronavírus. O custo médio para levar um
paciente entubado da capital do Pará até São Paulo gira em torno de R$
120 mil. Uma das maiores empresas que atuam com pacientes de Covid é a
Brasil Vida. Na cotação feita no sábado 2 pela reportagem com essa
empresa, o transporte de um paciente de Belém para o Sírio-Libanês
custaria R$ 118 mil. Na quarta-feira 6, esse valor estava em R$ 125 mil.
O funcionário encarregado de fazer a cotação, Tiago Pinheiro,
justificou o aumento alegando a alta procura e os custos de manter
médicos e enfermeiros em casa à disposição 24 horas para uma possível
emergência. “Eles recebem diárias de plantão mesmo estando em casa sem
fazer nada”, ponderou. E garantiu que não há aumento no preço quando o
paciente tem Covid-19. “Tanto faz se ele foi contaminado com coronavírus
ou se quebrou a perna. O preço é o mesmo”, assegurou.
O voo numa UTI aeromédica é algo delicado quando o paciente tem
problemas respiratórios por causa do aumento da pressão atmosférica nas
alturas. “O risco de óbito é muito maior. Os pacientes precisam de muito
cuidado, até porque o voo de Belém para São Paulo é muito longo (dura três horas e meia)
para um paciente que segue entubado”, explicou o enfermeiro de UTI
aérea João Godoi. Ele também disse que a equipe voa com muito medo de
ser contaminada, mesmo que o paciente siga a viagem todo “embrulhado”
num plástico de polietileno. Já os profissionais de saúde e o piloto
vestem-se com roupas impermeáveis, incluindo galochas de borracha, duas
máscaras e mais o protetor facial de plástico conhecido como face
shield. Isso é proteção para contaminação biológica, a de nível III.
Mesmo assim há casos de profissionais de Saúde que se contaminaram com
coronavírus durante o voo numa UTI. Algumas empresas de táxi-aéreo,
inclusive, vêm se recusando a transportar pacientes com Covid-19 por
causa do risco de contágio.
Uma das maiores festas religiosas do país,
atraindo mais de 2 milhões de pessoas todos os anos, o Círio deverá ser
cancelado pela primeira vez. Foto: Rubens Chaves
Na UTI aeromédica, há todos os equipamentos que
uma UTI hospitalar possui. Todos os voos são feitos com um médico
intensivista e um enfermeiro especializado. Se o paciente de Covid-19
embarcar respirando e, durante a viagem, enfrentar problemas pulmonares,
ele será entubado durante a viagem. Caso o estado de saúde se agrave
com risco iminente de óbito, o piloto decidirá se volta para a cidade de
origem ou se faz um pouso de emergência no aeroporto mais próximo.
Segundo todas as empresas consultadas por ÉPOCA, no valor cobrado pelo
transporte aéreo dos doentes estão inclusos os transportes em
ambulâncias do hospital de origem em Belém até o avião e do avião em
solo paulistano até o hospital onde o paciente será internado. No voo é
possível levar até dois acompanhantes.
O médico intensivista César Collyer atua na linha de frente no
combate ao novo coronavírus em Belém no Hospital Ophir Loyola.
Pertencente à rede estadual, a entidade é especializada em câncer, mas
as 30 UTIs do hospital estão abarrotadas de pacientes com Covid-19.
“Nunca vi nada igual em meus 20 anos de carreira. Ontem, um médico de
minha equipe morreu contaminado por esse vírus. Estamos esgotados
fisicamente e psicologicamente. Me sinto com as mãos atadas por ver
pessoas morrendo todos os dias sem ter o que fazer”, desabafou. “Quem
tem dinheiro tem mais de procurar atendimento fora de Belém porque a
rede particular também está colapsada”, avisou.
O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho (PSDB), também aconselha os
ricos a procurarem tratamento fora da cidade que administra, pois a
situação no Pará está num nível de colapso nunca visto antes. Ele disse
que nunca viu nada parecido em 40 anos de vida pública. “Aqui, a
situação é dramática. A população não deu muita bola para a pandemia. As
feiras e os supermercados ficam lotados no fim de semana. Nos bairros
mais populares, as pessoas vão para as ruas e fazem aglomerações sem
usar máscara. O paraense não acredita no que vê na TV todos os dias.
Parte da população também sai de casa porque precisa trabalhar para
sobreviver”, avaliou o prefeito. Ele também atribuiu o pouco-caso dos
paraenses em relação à pandemia às fake news disseminadas na internet.
“Muita gente não acredita no avanço da doença porque se informa nas
bobagens publicadas em redes sociais”, concluiu. Ele disse que entende
que os ricos estejam procurando tratamento em outros estados. “Os muito
ricos vão para onde há as melhores tecnologias. Isso é uma evidência de
que a rede privada no Pará também saturou”, disse o prefeito.
“O preço de um voo nessas UTIs, de Belém a São Paulo, custa em torno
de R$ 120 mil. A tripulação viaja paramentada e protegida, mas ainda
assim teme o alto risco de infecção”
Ricos e pobres do Pará costumam recorrer a Nossa Senhora de Nazaré
para alcançar a cura de doenças graves, como câncer. No dia do Círio, no
segundo domingo de outubro, os fiéis costumam pagar pelas graças
alcançadas ao longo do ano. Em 2020, os promesseiros poderão não ter
como quitar a dívida com a Santa. Como o Círio de Nazaré se constitui na
maior aglomeração de gente — a procissão do ano passado reuniu mais de 2
milhões de pessoas —, não há a menor possibilidade de a festa religiosa
ser realizada daqui a cinco meses, conforme o previsto. A Igreja
Católica, que organiza o evento, ainda não sabe como comunicar esse fato
a seus fiéis. Duas cerimônias concorridas (a apresentação do cartaz do
Círio e o ritual de descer a imagem de Nossa Senhora do altar-mor no mês
de maio) serão feitas virtualmente até o fim do mês. No entanto, 90%
das reservas feitas para o período da festa foram canceladas, segundo o
Sindicato dos Hotéis do Pará. Esse dado indica uma evasão em massa dos
turistas. “Pelo andar da carruagem, está bem difícil ter Círio em 2020.
Embora eu seja o prefeito da cidade e devoto de Nossa Senhora de Nazaré,
vou deixar a decisão pelo cancelamento ou por um possível adiamento
para a Igreja Católica”, disse o prefeito. “Mas, pelo caminho que
estamos seguindo com essa pandemia, não vejo cenário para uma
aglomeração de centenas de milhares de pessoas nas ruas. Não vislumbro a
possibilidade de haver Círio”, avisou.
O arcebispo de Belém, Dom Alberto Taveira Corrêa, presidente do
Conselho Consultivo do Círio de Nazaré, ficou irritado quando se cogitou
o cancelamento da festa religiosa. “Estamos mantendo todo o calendário
do Círio. No momento oportuno eu anuncio se vai ter Círio ou não ou se
ele será adiado, suspenso ou mesmo cancelado. Por ora, estamos
trabalhando com todas as forças para fazer uma festa bonita para os
paraenses. Mas vamos procurar as autoridades para decidirmos juntos”,
ponderou. Como os fiéis atribuem a Nazaré curas milagrosas, um padre de
Belém pegou a imagem de Nossa Senhora usada no Círio e fez um sobrevoo
de helicóptero pela cidade no início de abril, na tentativa de alcançar
um novo milagre: exterminar o novo coronavírus da maior metrópole da
Amazônia e, sem ele, conseguir uma autorização sanitária para realizar o
Círio. Até agora, não deu certo.
Estão cancelados Justin Trudeau, Chris Evans, Oprah Winfrey, Kanye
West e Taylor Swift. Autos de fé realizados nas redes sociais decretaram
que essas personalidades públicas, entre outras tantas, cometeram ações
politicamente comprometedoras ou deram declarações etnicamente
insensíveis e por esses crimes devem ser canceladas, como se cancela um
cartão de crédito ou uma conta de serviço de streaming. Não se deve mais
reconhecer a existência do primeiro-ministro do Canadá, do ator que fez
o Capitão América, da apresentadora que se tornou chefe de um império
de mídia, da cantora de “Shake it off” e do rapper de “Gold digger”.
Para todos os efeitos, são todos não pessoas — embora continuem bem
populares fora dos círculos militantes da internet. Os vigilantes da
chamada “cancel culture” (cultura do cancelamento) não perdoam: para
eles, indícios de preconceito em um tuíte de uma década atrás bastam
para condenar uma celebridade ao opróbrio. Relativamente recente, o
fenômeno também é chamado de “call-out culture” — “call out” conjuga a
ideia de denunciar, criticar alguém, e, ao mesmo tempo, chamá-lo a se
explicar pela falta cometida.
O ato de “cancelar” ganhou especial destaque no final de outubro do
ano passado, quando foi criticado por Barack Obama em um evento na
fundação que leva seu nome. De forma elegante, mas incisiva, o
ex-presidente dos Estados Unidos acusou a pretensão de pureza que embasa
a nova cultura jovem — uma pureza que não aceita negociações ou
concessões. “O mundo é bagunçado”, ponderou Obama. “Existem
ambiguidades. Pessoas que fazem coisas boas têm suas falhas.” Obama
atacou com especial precisão o ímpeto justiceiro que, sobretudo nas
universidades, dominou a juventude: “Tenho a sensação de que hoje, entre
os jovens — e isso é acelerado pelas redes sociais —, há a noção de que
o único modo de alcançar mudanças é julgar outras pessoas da forma mais
severa possível, e isso basta”. De fato, não basta: a prática do
“cancelamento”, além de pouco fazer de efetivo pelos direitos de
minorias e pelas demais causas que pretende defender, também corrói o
diálogo democrático. E tem tornado as novas gerações mais intolerantes —
e infelizes.
Taylor Swift foi alvo de uma campanha de
“cancelamento” depois de ter rebatido provocações de Kanye West. “Quando
dizem que você está cancelada, não estão falando de um programa de TV,
mas de uma pessoa”, disse a cantora. Foto: Arte sobre foto de Mario
Anzuoni / Reuters
Fenômeno originalmente americano que tem se
replicado pelo mundo — no Brasil, inclusive —, a cancel culture é a
versão 2.0 do que antigamente se chamava de patrulha ideológica.
Temperada pelas fixações identitárias da esquerda universitária e
turbinada pelas redes, as novas patrulhas são a face mais estridente da
política woke (desperto, atento, em inglês), também criticada por Obama.
O programa woke incorpora causas em princípio justas e razoáveis —
combate ao racismo, à discriminação de gays e transgêneros e à
desigualdade de gêneros. Mas ser woke consiste não tanto em defender
esta ou aquela ideia: trata-se, antes, de compartilhar certa
hipersensibilidade a ofensas, reais ou imaginárias, contra minorias.
“Ofensivo” é a sentença terminal da cancel culture, e é significativo
que os cancelamentos, com um punhado de exceções — o produtor Harvey
Weinstein, que enfrenta denúncias numerosas de assédio e abuso sexual, e
o músico R. Kelly, acusado de abusar sexualmente de adolescentes —,
raramente incidam sobre pessoas que cometeram crimes ou transgressões
objetivamente comprováveis. Em geral, uma pessoa é cancelada por algo
que ela tenha dito. E a expedição de vereditos sumários não se limita a
celebridades distantes: um colega de classe também pode ser cancelado,
com toda a carga de censura e suposta “desonra” que isso carrega. O
jornal The New York Times publicou, dias depois de Obama ter
criticado a cancel culture, uma compilação de testemunhos de estudantes
do ensino médio e dos primeiros anos de faculdade sobre o tema. Uma
menina relatava ali a experiência de ser cancelada aos 15 anos. Como
ninguém mais falava com ela, a adolescente resolveu perguntar a uma
antiga amiga, por mensagem de celular, por que estava recebendo aquele
tratamento de silêncio. A amiga consultada chamou outras colegas para a
conversa, e a jovem cancelada recebeu uma torrente de impropérios —
“mesquinha”, “sanguessuga emocional” — pelo Instagram. “Todo mundo faz
coisas questionáveis ou diz coisas estúpidas. Mas as redes sociais
permitem que as pessoas peguem algo que você disse no passado e
transformem isso no que você é”, queixou-se a jovem.
“Fenômeno originalmente americano, a cancel culture tem se replicado
pelo mundo — no Brasil, inclusive — a partir de uma hipersensibilidade
que considera quase tudo ‘ofensivo’”
Taylor Swift guarda mágoas similares do tempo em que a campanha para
cancelá-la corria no Twitter. “Quando dizem que você está cancelada, não
estão falando de um programa de TV, mas de uma pessoa”, disse a cantora
à revista Vogue. Seu cancelamento se deu por causa de uma
disputa boba com Kanye West, que fez alusões maliciosas a Taylor na
música “Famous”. O próprio Kanye West foi cancelado por razões mais
tipicamente políticas: é apoiador de Donald Trump e já deu declarações
assombrosas sobre os benefícios da escravidão. Oprah Winfrey foi
cancelada, vejam só, por se engajar no movimento #MeToo: o rapper 50
Cent acusou a apresentadora de atacar apenas abusadores negros. Chris
Evans foi cancelado porque trabalhou em Missão no Mar Vermelho,
filme tido como pró-Israel, e ficou ainda pior na foto quando divulgou
uma imagem na qual o elenco branco aparece em primeiro plano, com
figurantes negros ao fundo. No Brasil, aliás, Mallu Magalhães também
sofreu pressão e se viu constrangida a se desculpar no Facebook pelo
videoclipe da canção “Você não presta”, no qual ela aparece à frente de
dançarinos negros. Sob o regime de vigilância das redes sociais, não se
sabe qual postagem antiga pode voltar a assombrar uma celebridade: o
comediante Kevin Hart deixou de ser o apresentador do Oscar de 2018 por
causa de piadas homofóbicas que fez no Twitter entre 2009 e 2011. Os
melindres voltam-se até contra artistas já mortos: uma retrospectiva da
obra de Paul Gauguin na National Gallery de Londres foi atacada porque o
pintor francês manteve relações com uma menina de 13 anos no Taiti. A
matéria do jornal The New York Times sobre a controvérsia trazia o título “Chegou a hora de cancelar Paul Gauguin?”.
O comediante negro Dave Chappelle vem sendo cancelado por suas piadas
sobre transgêneros. E também porque respondeu debochando da cancel
culture em Sticks & Stones, stand-up na Netflix. Justin
Trudeau, ao contrário, cultiva a imagem de político woke, preocupado com
diversidade e consciência ambiental, mas caiu em desgraça quando veio à
tona uma foto antiga em que aparece com o rosto pintado de negro. De
acordo com o protocolo da cancel culture, ele se desculpou publicamente
pela insensibilidade racial.
O cantor R. Kelly foi “cancelado” virtualmente e
seus shows foram suspensos depois de ele ser acusado de assédio — nesse
caso, a reação do público foi justificável. Foto: Arte sobre foto de
Noam Galai / Getty Images
Na guerra cultural, a direita também pratica a censura — como se viu no cancelamento da exposição Queermuseu,
em Porto Alegre — e a “trollagem” on-line contra seus adversários, mas a
cancel culture é uma prática mais específica da juventude de esquerda.
Por isso, não se faz necessário cancelar um Donald Trump ou um Jair
Bolsonaro: já está implícito que, nos esquemas binários da nova geração,
eles estão no campo do mal. Mas celebridades que se associam a
políticos conservadores são chamadas ao tribunal do Twitter: a
apresentadora Ellen DeGeneres, pioneira da defesa dos direitos gays, foi
cancelada quando vieram a público imagens suas na companhia de George
W. Bush em um jogo de futebol americano.
Embora, na maioria dos casos, o cancelamento leve meramente à
exposição do indivíduo a uma situação constrangedora, em algumas
ocasiões ele chega, realmente, a prejudicar o nome a que é associado. A
Amazon rompeu um contrato com Woody Allen por causa da acusação — já
investigada e descartada pelas autoridades, e bem conhecida ao tempo em
que a produtora firmara o acordo com o diretor — de que ele teria
abusado da filha adotiva em 1992, e também por declarações dele sobre o
movimento #MeToo. Em 2015, quando a expressão cancel culture ainda não
era corrente, o cientista Tim Hunt, Nobel de Medicina de 2001, perdeu
posições acadêmicas de destaque por causa de uma piada boba sobre
mulheres na ciência. Recentemente, a comediante Sarah Silverman disse
que perdeu o papel em um filme importante — não disse qual — porque
fotos antigas suas pintada com tinta negra foram descobertas. Já Taylor
Swift exorcizou seu cancelamento no disco seguinte, Reputation. Jesus is king,
disco que Kanye West lançou no ano passado, foi para o topo das
paradas; e Oprah continua bilionária. Há quem diga, com base nessa
circunstância, que a cancel culture não é a inquisição pós-moderna que
seus críticos imaginam.
“O ato de ‘cancelar’ ganhou especial destaque no final de outubro do
ano passado, quando foi criticado por Barack Obama, que, de forma
elegante, mas incisiva, acusou a pretensão de pureza que embasa a nova
cultura jovem”
Na imprensa americana e inglesa, aliás, artigos de opinião sobre as
declarações de Obama tentaram minimizar os efeitos da cancel culture.
Ora, são apenas jovens exercendo o direito de criticar celebridades
racistas, misóginas, homofóbicas. Quem, afora os reacionários da Fox
News, seria contra isso? Mas há problemas mais profundos nessa nova
cultura política, muito bem examinados pelo psicólogo Jonathan Haidt e
pelo advogado Greg Lukianoff em The coddling of the American mind (algo como A inteligência americana mimada),
livro de 2018 ainda inédito no Brasil. A dupla de autores qualifica de
“destrutiva” a atual cultura política. Sem qualquer traço da retórica
inflamatória ou proselitismo ideológico, Haidt e Lukianoff demonstram o
caráter perverso da call-out culture com rigor e serenidade.
O ativista de direita Milo Yiannopoulos foi alvo
de protestos na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017, depois
de ter sido convidado para dar uma palestra. Manifestantes quebraram
prédios e houve feridos. Foto: Montagem sobre foto de Justin Sullivan /
Getty Images
Em seu trabalho à frente da Fire, organização que defende a liberdade de expressão nos campi
americanos, Lukianoff notou uma tendência alarmante: se antes a maioria
dos casos com que lidava eram de censura exercida pela administração da
universidade, em torno de 2013 começaram a avultar os episódios em que
eram os estudantes que pediam a remoção de material potencialmente
“ofensivo” de certos cursos. Haidt tinha uma percepção semelhante, e por
isso os dois se reuniram para compor o livro a quatro mãos. The coddling of the American mind
é um retrato desalentador de universidades que renegaram o senso
crítico e o livre pensamento em favor de códigos autoritários de conduta
e linguagem — códigos que são referendados e reforçados pelos alunos.
Firmou-se, nas comunidades acadêmicas, a ideia de que uma faculdade deve
oferecer ao corpo discente um “espaço seguro”. O sentido da palavra
“segurança”, como bem observam os autores, expandiu-se para além de
qualquer medida razoável: ideias ou palavras incorretas são vistas como
ameaças efetivas à segurança dos estudantes, em particular àqueles
pertencentes a minorias. Como resultado, instaura-se uma ortodoxia
policialesca, na qual ideias divergentes são silenciadas. Eis dois dos
vários casos de cerceamento à liberdade acadêmica narrados no livro:
1. Um professor da Universidade de Northern Colorado pediu a leitura
de um artigo que se opunha ao direito de transgêneros usarem o banheiro
que desejam. Ele explicou que não esperava que os alunos concordassem
com o texto, mas que era necessário conhecer e discutir pontos de vista
diversos. Um estudante o denunciou à administração da universidade por
preconceito; o professor foi repreendido, aconselhado a não falar mais
sobre transexualidade, e seu contrato não foi renovado no semestre
seguinte.
2. Na Universidade Yale, uma professora escreveu à administração
sugerindo que não se instaurassem regras ditando que fantasias seriam
apropriadas ou inapropriadas no Halloween, pois não era preciso tratar
os alunos como criaturas vulneráveis, incapazes de negociar entre si o
que é ou não aceitável. Esse e-mail tão razoável sobre tema tão trivial
foi fatalmente interpretado como uma defesa de fantasias racistas.
Protestos de estudantes intimidaram a professora e seu marido, que
também tinha um posto em Yale; a administração da universidade não lhes
prestou apoio, e eles acabaram renunciando aos cargos que ocupavam.
Nem mesmo a defesa da causa LGBT salvou a
apresentadora Ellen DeGeneres de ser “cancelada” depois de fotos suas
com George W. Bush virem à tona. Foto: Montagem sobre foto de Steve
Granitz / WireImage
A cancel culture universitária exercita-se também na prática de vetar, em eventos no campus,
convidados cujas ideias são tidas como agressivas. Com frequência, a
universidade cede à pressão e “desconvida” o palestrante incômodo —
geralmente algum acadêmico identificado com a direita, embora os
“desconvidados” em anos recentes também incluam o comediante Bill Maher e
Madeleine Albright, secretária de Estado do governo Clinton. Quando o
evento é mantido, em geral, protestos estudantis tentam impedi-lo,
barrando a entrada de pessoas no local da conferência ou fazendo barulho
para que não se possa ouvir o indesejado. Especialmente brutal foi o
protesto que impediu o inglês Milo Yiannopoulos, jovem agitador da
direita, de falar na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017.
Manifestantes mascarados do Antifa, grupo que diz combater o fascismo,
espancaram dezenas de pessoas, e a destruição na universidade e nos
arredores foi estimada em US$ 0,5 milhão. Na lógica tribal dos
manifestantes, violência ainda maior seria o que Yiannopoulos teria a
dizer. Outros protestos violentos se seguiram naquele ano, exacerbando a
polarização da política americana. A radicalização é, aliás, uma
consequência do ambiente de intimidação física e verbal que se
estabeleceu em muitos campi: os moderados, avessos à beligerância gratuita, tendem a se calar, e só as vozes mais extremas têm vez.
“Essa onda censória emergiu com a chegada à universidade da Geração
Z, ou iGen — i de internet. Nascidos em torno de 1995, os jovens de
classe média dessa geração viveram em lares superprotetores, com menos
tempo de brincadeira livre nas ruas e de vida social ativa”
Haidt e Lukianoff não são direitistas rábidos à caça de espectros
como a ideologia de gênero ou a correção política. Eles se apresentam
como progressistas e eleitores do Partido Democrata, mas acreditam que a
diversidade de pontos de vista e a livre discussão de visões de mundo
são essenciais para a educação. Preocupam-se também com o bem-estar
psicológico dos jovens hoje engajados na call-out culture. Essa onda
censória emergiu, segundo os autores, com a chegada à universidade da
chamada Geração Z, ou iGen — i de internet. Nascidos em torno de 1995,
os jovens de classe média dessa geração viveram em lares
superprotetores, com menos tempo de brincadeira livre nas ruas e de vida
social ativa. Cresceram com smartphones na mão, ligados às redes
sociais que então começavam a conquistar o mundo. São, segundo
estatísticas americanas de saúde mental, mais propensos à ansiedade e à
depressão. Formados em uma cultura política que enfatiza versões não
muito matizadas de identidade étnica e justiça social, em geral
encontraram faculdades que não os desafiaram intelectualmente — ao
contrário, incentivaram sua santimônia.
Haidt e Lukianoff transmitem, no livro, a esperança de que as
distorções emocionais com que essa geração observa e julga o mundo
possam ser corrigidas, e deixam, nos capítulos finais, recomendações
para que escolas, pais e alunos alterem os rumos. É de esperar, pelo menos, que as próximas gerações arrumem o estrago.
Não sei se chamo de escândalo. Roubalheira. Ou burrice. Na dúvida, tudo junto. Precisamos impedir que se passe a boiada no Rio. Pensamos na Amazônia e esquecemos que há florestas em perigo na nossa esquina. Cerca de 180 mil árvores na Floresta do Camboatá podem ser dizimadas, com bênção oficial, para construir um autódromo de quase R$ 1 bilhão. Tudo para levar a Fórmula 1 de Interlagos, em São Paulo, para a Zona Norte do Rio. Rixa provinciana, inoportuna, sem sentido. Pior, um crime ambiental. Uma audiência pública virtual prevista para 7 de agosto, agora, é passo decisivo para se ir adiante com o novo autódromo.
Esses verdes ecochatos são todos contra o desenvolvimento econômico,
não é mesmo? Vamos aproveitar a pandemia para passar a motosserra no
desconhecido Camboatá, naquela região carente, cimentada e calorenta de
Deodoro e Guadalupe. Você já ouviu falar?Os influenciadores ricos da Zona Sul só visitam o Jardim Botânico e o Parque Lage. Nem sabem onde fica o Camboatá.
Eu nunca fui ao Camboatá nem conhecia sua história. O nome vem de uma
árvore comum, com flores brancas e frutos que atraem pássaros. Último
lugar de Mata Atlântica de áreas planas na cidade, com fauna e flora em
extinção. Só restam no Brasil 12% de Mata Atlântica. O Camboatá tem 200
hectares, equivalente a 200 campos de futebol, com nascentes e áreas
úmidas onde, nas cheias, ressurgem os peixes rivulídeos, conhecidos como
peixes das nuvens, porque reaparecem com as chuvas. Peixes nas nuvens
me remetem ao realismo fantástico latino-americano.
Como trocar oxigênio e beleza eternos por especulação imobiliária e
uma pista de 5.835 metros de extensão com uso esporádico nos GPs? Um
projeto que nem sabemos se ficará pelo meio ou se será abandonado após a
construção, como tantos elefantes brancos de obras megalômanas. Querem
destravar logo. E construir o circuito em um ano, para ter a F1 já no
Rio em 2021. Que chá de cogumelo esse pessoal toma?
O terreno é do Exército. Havia ali paióis de munição. Cientistas do
Jardim Botânico, entre eles o biólogo e pesquisador Haroldo Lima, minha
maior fonte para este artigo, começaram a catalogar as árvores do
Camboatá na década de 1980 a pedido dos militares. No governo Cabral, em
2010, surgiu a conversa de construir ali um autódromo. E como as
péssimas ideias sempre sobrevivem no Rio, quando há muita grana
envolvida, a pressão aumentou agora.
Vamos comemorar, cariocas, vamos tirar a F1 dos paulistas, num ano em
que o Grande Prêmio Brasil foi cancelado por conta da pandemia
descontrolada. Por que será que insistem no novo autódromo num estado
quebrado, falido, desigual, com necessidades urgentes como escolas,
hospitais, saneamento, moradias dignas e segurança? Como assim? Ah,
esqueci. Tem aquela história de “legado” pra boi dormir.
Faz quatro anos desde a Olimpíada do Rio. O Brasil prometeu a 2
bilhões de espectadores criar a Floresta dos Atletas. No Maracanã, os
atletas plantaram, em totens, sementes que seriam levadas para Deodoro.
Lindo. Seria “um legado olímpico verde”. Faltou dinheiro. Tinha de
faltar. Precisávamos de joias e barras de ouro. Hoje, as sementes
viraram arbustos em um sítio. Com manutenção cara. Jamais foram
replantadas.
Quanto papo me-engana-que-eu-gosto. A turma do autódromo do Rio
promete compensar a destruição da floresta com propostas inexequíveis,
como “um novo corredor verde entre maciços da região”. Tudo para rotular
o projeto de “autódromo verde e sustentável”. O único verde que esse
pessoal idolatra, sério, deve ser o dólar.
Os argumentos a favor são os de sempre. “O dinheiro não será público,
será privado”. “F1 trará receita milionária para o Rio”. “Vamos plantar
árvores para compensar a derrubada da floresta”. “Atrairemos turismo
para uma área degradada”. Tem cara de maracutaia, tem focinho de
maracutaia. O autódromo será um lindo cartão postal, já pensou se nem
uso tiver?
O hexacampeão mundial Lewis Hamilton já se disse contra o autódromo
no Camboatá. “Vão derrubar árvores? Amo o Rio. Mas não quero correr em
um circuito que prejudique uma terra tão bonita para nosso futuro”.
Felipe Massa também reprovou. Correr sobre as cinzas de árvores nativas
não pega bem. O mundo dos negócios não está mais disposto a associar
suas marcas à devastação de uma floresta rara.
Construam o autódromo em outro lugar, gritam os ambientalistas e
Caetano Veloso, que morou adolescente em Guadalupe. O Movimento SOS
Camboatá sugeriu seis outros lugares no entorno para a construção do
circuito, sem mexer na floresta. Mas, sabe como é, tem coisa aí. Meu
apelo é mais radical. Esqueçam esse autódromo do Rio, que virou para o
presidente B. uma obsessão semelhante à cloroquina. Quer porque quer a
F1 no Rio. Lembram o Ronaldão falando que “não se faz Copa com
hospitais”? Sempre é bom lembrar. Um copo vazio está cheio de ar.
Quantas negociatas se escondem por trás? Os idealizadores do GP no
Rio alegam que vão derrubar (apenas) 30 mil árvores. Mas esse é só o
espaço ocupado pela pista e pelo aparato necessário às corridas. Os
restantes 41% do terreno serão “cedidos à Rio Motorpark”, subsidiária da
americana Rio Motorsports”, como “contrapartida imobiliária”. Ou seja,
para construir condomínios, prédios, derrubar mais árvores.
O projeto está cheio de pegadinhas. A empresa Rio Motorpark foi
criada às pressas, 11 dias antes de ser anunciada sua escolha. Sem
capital e sem estrutura para obra desse porte. Sua garantia é um “bank”
não autorizado pelo Banco Central.
Tenho uma esperança. O projeto é tão esdrúxulo que não vingará. E não
será apenas por uma reação ambientalista, mas do business da F1, que
planeja futuramente corridas sustentáveis, com carbono zero e
combustível não poluente. A história do Camboatá vai correr o mundo. Vai
virar uma luta de todos. A boiada não vai pastar na floresta carioca.