January 6, 2010

Vigor presente tanto no jazz cubano quanto no rock de novos e veteranos

Num ano sem grandes revelações, a experiência foi fator fundamental




“AKOKAN”: Pianista e compositor cubano, inicialmente, Roberto Fonseca impressionou as plateias brasileiras atuando nos grupos de dois veteranos cantores de seu país, Ibrahim Ferrer e Omara Portuondo. Seu novo disco solo, “Akokan”, confirma o vigor e a inventividade desse músico, seja em recriações para clássicos de Cuba (como “Drume negrita”) ou em composições originais (como “Lento y despacio” e “Pequeños viajes”).

“WORLD PAINTED BLOOD”: Depois da volta à boa forma do Metallica, em 2008, com “Death magnetic”, no ano que chega hoje ao fim outro monstro do thrash metal, o Slayer, lançou um CD de acordo com sua reputação. Com “World painted blood”, o quarteto californiano mostrou que sua fúria segue intacta, ao contrário da competência técnica dos músicos, cada vez maior. Destaque absoluto para o inacreditável baterista Dave Lombardo.

“LIVE IN LONDON”: Em julho de 2008, o veterano cantor e compositor canadense Leonard Cohen, então com 74 anos, emocionou o público que lotou a O2 Arena, em Londres, num recital que reuniu clássicos como “Suzanne”, “Bird on the wire” e “Hallelujah”. Baladas que servem de veículo para a forte poesia desse mestre zen do pop.

“TONIGHT”: Com o seu terceiro disco, a banda escocesa Franz Ferdinand deu uma leve guinada no som, saindo do dance rock fácil para um tipo de som mais psicodélico e denso. Foram ousados neste sentido, nos dando músicas que demoram mais a colar do que as dos trabalhos anteriores, mas ricas em texturas. Como “Lucid dreams”, a faixa mais ambiciosa que já gravaram. Ponto para eles.

“LIVE FROM THE MADISON SQUARE GARDEN”: Dois sobreviventes do melhor rock produzido nos anos 1960 (e 70, 80...), Eric Clapton e Stevie Winwood juntaram forças nesse vibrante CD e DVD ao vivo. Entre os trunfos do repertório no show em Nova York estão cinco das seis faixas que eles lançaram no único disco do efêmero supergrupo Blind Faith, que criaram em 1969, e ainda a homenagem a Jimi Hendrix, na versão de “Voodoo Chile”.

“REALITY KILLED THE VIDEO STAR”: Os quase três anos de silêncio e depressão, após o fracasso comercial e artístico de “Rudebox”, acabaram fazendo bem a Robbie Williams. O cantor inglês retomou seu pop abrangente em “Reality killed the video star”, com referências que vão de Beatles a Elton John, em canções como “You know me”, “Last days of disco” e “Bodies”.


“PHRAZES FOR THE YOUNG”: A estreia solo de Julian Casablancas, vocalista dos Strokes, cumpriu as expectativas. Com sonoridade que mergulha no pop de sintetizadores dos anos 1980 com uma postura punk, o artista se aproxima do som de sua banda, mas com inovação em vez de pastiche. Retrô e contemporâneo, o primeiro single “11th dimension” dá mostras da força do CD.

“LIVE AT READING”: Quase 20 anos depois, chega o DVD do registro de uma acachapante apresentação do Nirvana no festival inglês de Reading, de 1991, quando eles mal haviam aparecido nas paradas de sucesso com o disco “Nevermind”. E o que se vê é o Nirvana no auge do sucesso, ainda surpresos por tocarem para grandes multidões. Histórico.

“IT ’S BLITZ ”: Os Yeah Yeah Yeahs, liderados pela exótica cantora Karen O, surpreenderam com o seu terceiro trabalho, trocando a maioria das guitarras por versões simuladas do instrumento e puxando o som para uma espécie de dark dance, pesado, mas com mais detalhes eletrônicos e climas.

“THE RESISTANCE”: É preciso um bocado de coragem para, em pleno século XXI, lançar um disco de rock progressivo parecido com aqueles que se faziam em meados dos anos 1970 e não soar como piada. Mas o inglês Muse foi lá e fez, um disco grandioso e imponente, sem medo de soar ridículo, carregado de temas impressionantes, corinhos vocais à la Queen, solos de piano, fanfarras e tudo a que se tem direito numa obra desse tipo (até a capa, meio sci-fi). Matt Bellamy (voz, guitarra, piano e letras) e seus asseclas meteram a cara e não se deram mal. Ligue o seu aparelho quadrafônico e viaje no som.

O Globo, 31 de dezembro de 2009

Dos 22 sobrou só ele: o algoz Ghiggia

UGO GIORGETTI

Na semana passada houve uma cerimônia estranha no Maracanã; Contrariando a crença atual de que adversários são inimigos a serem trucidades, e que só importa vencer, Ghiggia, o algoz do Brasil na pior derrota de sua história, foi homenageado e teve seus pés moldados na calçada da fama do nosso maior estádio. Foi uma ocasião em que pudemos demonstrar o quanto ainda não perdemos totalmente os vínculos com a civilização que, aliás, nos permitiu, na época, perder em nossa própria casa sem que os adversários se sentissem ameaçados ou desrespeitados.

A atitude do povo brasileiro na derrota para o Uruguai em 1950 fez mais para o prestígio internacional do Brasil que algumas vitórias que conseguiríamos depois. De qualquer forma foi tocante ver o velho Ghiggia emocionado ao constatar que o País de quem tirou a Copa lhe rendia homenagem. Aos 83 anos o velho ponta direita compreendeu perfeitamente o alcance do que se estava fazendo. Ghiggia é o único sobrevivente dos 22 jogadores que estavam em campo naquela tarde de 1950, talvez por isso a homenagem tenha sido tão significativa. E o destino, tecendo uma de suas caprochosas teias, nos deixou para receber as homenagens como único sobrevivento justamente o homem que decretou nossa derrota.

Sobrou a ele nos dizer, com um simbolismo irônico, que o herói daquela partida ainda está vivo, que nos fins de tarde de tempo ameno se senta em algum banco em Montevidéu olhando o Rio da Prata e talvez lembrando de seu gol decisivo.

Dos 22 sobrou um. O homem que decidiu o jogo. Fico pensando o que sei desse jogador do qual ouço falar desde 1950. Do qual conheço apenas um lance de que participou: o gol. De resto, nada. Terá sido um grande ponta? Driblava? Chutava forte? O que fez naquela Copa, além do segundo gol contra o Brasil? Não sei sequer em que time Ghiggia jogava no Uruguai. Dele ficou apenas um lance, milagrosamente preservado, daquela partida. Um lance rápido repetido um milhão de vezes desde aquele dia. Vê-se um jogador,.que para os padrões de hoje me parece um pouco gordinho, entrar com a bola dominada e desferir um chute com convicção, com toda a força que tinha, a ponto de levantar um pouco de poeira. Depois ve-se a bola no fundo das redes e Barbosa desconsolado se erguendo lentamente. É isso. Nada mais resta de Ghiggia.

Aliás, cada vez mais se sabe menos sobre aquela partida, porque quem realmente saberia o que verdadeiramente se passou dentro de campo já não existe: morreram todos. Mas é possível que o único que sobrou tenha os segredos do que aconteceu naquela tarde no Maracanã e esse talvez seja o lado bom da falta de documentação. Poucos filmaram aquela Copa, a primeira depois da Segunda Guerra, quando ainda havia países que recompunham as suas ruinas, e a falta de registro filmado aumenta a importância do testemunho de quem estava lá. Penso que só os jogadores sabem como foi uma partida. O resto de nós, torcedores, imprensa, etc., vemos o que é possível ver de fora, de longe. Vemos um outro jogo e, às vezes, nem isso. Em cada partida há um lado oculto que só quem joga vê.

Frequentemente é a parte mais importante. Por isso o que ocorreu naquela distante partida da decisão do Mundial de 50 quando o Brasil perdeu a Copa só Ghiggia sabe. Ele é o último dos que estavam lá, onde as coisas aconteceram.

Estadão. 3 de dezembro de 2009

January 5, 2010

O dia em que irritei Fernanda Young

A única décima colocação de qualquer concurso do mundo que rendeu um e-mail e um tweet

Artur Xexéo




ilustração de CRUZ (clique para ve-la maior)

Esta coluna promove a eleição da Mala do Ano há mais ou menos 15 anos. Digo “mais ou menos” porque admito que não me lembro muito bem de quando tudo começou. Na época, ainda frequentava o outro botequim e não tenho acesso a seus arquivos. Lembro-me, porém, de que a ideia partiu de um leitor, e, desde então, é o leitor quem manda no concurso. Nesse período, foram eleitas mais ou menos 15 malas.

Como sempre foi hábito mencionar as dez primeiras colocadas, não seria um grande erro afirmar que devo ter citado mais ou menos 150 malas nestes 15 anos. Porém, como algumas malas apareceram no Top 10 mais de uma vez (a ministra Dilma, por exemplo, vencedora de 2009, já estava entre os dez mais de 2008), talvez eu tenha citado cem personalidades diferentes desde a primeira eleição.

Pois bem, dessas cem malas, nenhuma escreveu ao colunista para reclamar de sua inclusão entre as favoritas do leitor.

E foi assim até quarta-feira passada, quando recebi o seguinte e-mail: “Caro Xexéu: Que bom saber que você finalmente entendeu o duplo-sentido incluído no título do meu programa.

Quanto a ser uma das ‘malas’ que mais chatearam você este ano, eu entendo, e me desculpo.

O que você fez em 2009, afinal? Escreveu um romance que já teve sua primeira edição quase esgotada? Escreveu um filme que foi campeão de bilheteria? Escreveu uma peça que foi montada em várias cidades do país? Teve algum sucesso nos seus planos de ser entrevistador de TV? Conseguiu ficar bonito em alguma foto? É, chateia mesmo.

Fernanda Young” Fernanda Young ficou em décimo lugar no concurso deste ano. Fico só imaginando qual seria sua reação se tivesse sido a vencedora.

Uma tentativa de assassinato? Há duas ou três coisas que gostaria de comentar sobre o e-mail. Para começar, não entendi direito — o que é muito natural, afinal o texto de Fernanda Young costuma ser altamente sofisticado e não é para qualquer um entender — qual seria o duplo sentido do título de seu programa de TV. Que duplo sentido pode ter algo chamado “Irritando Fernanda Young”? Acrescentaria que não há motivo algum para se pôr um hífen em “duplo sentido”. Eu sei que, com o novo acordo ortográfico, todo mundo está meio perdido com o emprego do hífen. Mas Fernanda Young é uma escritora com romances “quase esgotados”, escreve peças que são montadas “em várias cidades”, escreve filmes que são campeões de bilheteria, fica bonita nas fotos. Enfim, Fernanda Young é uma mulher de sucesso. Não pode ficar soltando hífens por aí a esmo.

Percebi também que Fernanda Young não entendeu o espírito da coisa. Ela não é uma das malas que mais me chatearam este ano.

Não acompanhei seu desempenho de sucesso em 2009. Não li seu romance quase esgotado, não comprei sua “Playboy” (parece que esta não esgotou, não; é mais fácil de comprar do que o romance) e, embora tenha estado em várias cidades do país em 2009, nunca calhou de estar no mesmo município em que sua peça estivesse sendo montada. O pouco que vi de Fernanda Young em 2009 foi no programa que ela apresenta nas madrugadas de domingo para segunda-feira no GNT. Ele não me chateia, mas me diverte. É verdade que me diverte mais quando Fernanda Young fala menos que o entrevistado (quando fala mais baixo, acho melhor também). Enfim, não tenho razão alguma para me chatear com Fernanda Young. Ela apareceu entre os dez mais da Mala do Ano pelo simples fato de ter sido votada pelos leitores desta coluna. Só isso. Será que há um duplo sentido (sem hífen, por favor) na eleição que eu não tenha captado? Por fim, gostaria de saber o que faz Fernanda Young imaginar que suas vitórias pessoais são um exemplo para a Humanidade. Ela tem razão: não escrevi um romance, não escrevi um filme, não escrevi uma peça, não tive planos de ser entrevistador de TV e não fiquei bonito em foto alguma. Aliás, fico tão feio em fotos — elas são justas com meus aspectos estéticos, devo admitir — que prefiro não posar para elas. E daí? Quem disse para Fernanda Young que suas realizações são o desejo dos outros. Os meus, posso garantir, não têm nada a ver com isso. Por exemplo, já estou mais do que realizado por uma pequena vitória conquistada em 2009: irritei Fernanda Young.

E para terminar, mas para terminar mesmo, vou contar o que mais me impressionou no email dessa mulher de sucesso: ela o enviou às 8h04min da manhã de quarta-feira, o dia em que seu nome apareceu no décimo lugar da Mala do Ano. E isso depois de já ter mandado uma mensagem, em versão reduzida, a todos os seguidores de seu Twitter. Vem cá, às 8h04min da manhã, em São Paulo, ela já tinha lido minha coluna, já tinha assimilado a questão, já tinha planejado uma resposta e já a tinha escrito? Isso é que é leitor fiel. Espero em 2010 contar com leitores tão dedicados quanto Fernanda Young.

O colunista deseja a todos os outros leitores um feliz 2010.

O Globo, 30 de dezembro de 2009


January 3, 2010

OS MELHORES LIVROS DE 2009




EUCLIDES DA CUNHA: O centenário da morte do escritor não foi tão badalado quanto o de Machado de Assis, ano passado, mas talvez tenha motivado lançamentos mais importantes. A “Poesia reunida” (Unesp), organizada por Leopoldo Bernucci e Francisco Foot Hardman, aumentou em muito o número de poemas editados do autor, corrigiu erros de edições anteriores e contribuiu para abrir todo um novo campo de estudos euclidianos. Igualmente importante é a biografia “Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos” (Ateliê Editorial), do pesquisador americano Frederic Armory, que morreu em fevereiro, antes de ver seu trabalho publicado. Baseado numa pesquisa exaustiva, e sem o partidarismo de estudiosos anteriores, Armory produziu uma obra de referência para a compreensão da vida e também dos livros de Euclides. A nova edição revista e ampliada das “Obras completas” (Nova Aguilar) tem importância óbvia, e, entre os muitos estudos críticos, “Euclidiana” (Companhia das Letras), de Walnice Nogueira Galvão, se destaca.







CLARICE, de Benjamin Moser (Cosac Naify): Apaixonado pela obra de Clarice Lispector, o americano Benjamin Moser trabalhou por cinco anos nesta biografia, que conseguiu, por um lado, reavivar o interesse pela autora no exterior (principamente nos Estados Unidos, onde o livro foi bem acolhido por crítica e público) e, por outro, apresentar ao leitor brasileiro um olhar particular sobre ela. Refazendo o percurso de Clarice de sua aldeia natal, na Ucrânia, até o Rio, Moser investiga as raízes judaicas da escritora e coloca sua obra no contexto social e político do Brasil da época. Sem grandes revelações sobre a autora, a biografia se constrói em torno dos mistérios de sua vida e de sua escrita.

O FILHO DA MÃE, de Bernardo Carvalho (Companhia das Letras): Como em outros livros seus, neste romance Bernardo Car valho maneja com maestria as convenções da escrita realista, para de modo traiçoeiro por em questão as convicções do leitor a respeito da psicologia humana, das identidades e da própria literatura. Tendo como pano de fundo a guerra entre Rússia e Tchetchênia, o livro flerta com o melodrama, mas recusa o sentimentalismo para construir um cenário pautado pelo ódio étnico, pelo militarismo e pela homofobia.

CAIM, de José Saramago (Companhia das Letras): Vinte anos depois de “O evangelho segundo Jesus Cristo”, o escritor português volta a se inspirar na Bíblia, desta vez tomando como mote a história do irmão assassino de Abel para criticar os dogmas e as contradições da religião. Com um humor corrosivo, Saramago sugere que o crime expõe a crueldade e o capricho de deus (sempre em letras minúsculas para o autor ateu), que teria desprezado os sacrifícios de Caim em prol daqueles oferecidos por Abel.

MEU AMOR, de Beatriz Bracher (Editora 34): Em seu primeiro livro de contos, Beatriz — autora dos romances “Azul e dura” (2002), “Não falei” (2004) e “Antonio” (2007), este último finalista dos prêmios Jabuti, São Paulo de Literatura e Portugal Telecom — amarra delicadamente diversas narrativas em torno das múltiplas expressões do amor. São encontros, desencontros, alegrias, expectativas, perdas, rejeições, que revelam ao leitor o que o amor tem de mais concreto: a multiplicidade de vozes.

LEITE DERRAMADO, de Chico Buarque (Companhia das Letras): O quarto romance publicado por Chico Buarque é protagonizado por Eulálio Montenegro d’Assumpção, patriarca de uma família tradicional e decadente.
No leito de morte, ele dita suas memórias para uma figura feminina na qual se confundem uma enfermeira, sua filha e sua ex-mulher. Mais que a vida de um personagem, o que “Leite derramado” oferece é um painel ao mesmo tempo ambicioso e conciso de dois séculos de História brasileira, borrado pelas deformações da memória do narrador.

CINE-PRIVÊ, de Antonio Carlos Viana (Companhia das Letras): A epígrafe bíblica escolhida por Viana para abrir o livro — “Toda a cabeça está enferma, e todo o coração abatido” — dá o tom do que está por vir: vinte contos sobre personagens desamparados e desesperançosos, escritos numa linguagem seca, que não abre espaços para a redenção. Autor de “Aberto está o inferno” (2004) e “O meio do mundo e outros contos” (1999), o contista sergipano confirma nesta nova obra o domínio da narrativa e o apreço pela concisão.

O CONTROLE DO IMAGINÁRIO E A AFIRMAÇÃO DO ROMANCE, de Luiz Costa Lima (Companhia das Letras): A percepção de que a literatura brasileira era submetida a exigências recorrentes de exotismo e engajamento levou o crítico Luiz Costa Lima a desenvolver nos anos 1980 a noção de controle do imaginário, depois estendida à idade moderna. Com esse estudo, ele refina o conceito e mostra como o romance foi objeto de tentativas de controle desde seu nascimento, devido a sua vinculação com o prosaico e ao abandono dos tons e temas elevados da épica.

A MINHA ALMA É IRMÃ DE DEUS, de Raimundo Carrero (Record): Com este romance , Carre ro completa sua tetralogia “Quarteto Áspero”, formada também por “Maçã agreste”, “Somos pedras que se consomem” e “O amor não tem bons sentimentos”. Em “A minha alma é irmã de Deus”, Camila, uma jovem solitária do Recife, conhece o pastor e músico Leonardo, da seita Os soldados da Pátria por Cristo, e segue com ele numa viagem pelo interior do Nordeste. Mas, ao ser abandonada pelo mentor, ela vê suas certezas desmoronarem.

A LITERATURA EM PERIGO, de Tzvetan Todorov (Difel): Um dos principais nomes da crítica literária estruturalista, Tzvetan Todorov causou controvérsia ao dizer que críticos, professores e até escritores têm contribuído para tornar a literatura irrelevante na sociedade contemporânea.

Em parte por culpa do próprio estruturalismo, diz, a crítica hoje se ocupa mais de seus conceitos e divisões do que da relação dos livros com o mundo. Entre o ensaio e o libelo, Todorov faz o mea culpa e defende uma reaproximação entre a literatura e a vida.

Os melhores de 2009 na literatura foram escolhidos pela equipe do Prosa & Verso (Guilherme Freitas, Mànya Millen, Miguel Conde e o crítico José Castello)

O Globo, 28 de dezembro de 2009

 

December 26, 2009

0S MELHORES PROGRAMAS DE TV DE 2009

“MAYSA”: Só o apuro da reconstituição de época e as credenciais da minissérie, com texto de Manoel Carlos e direção de Jayme Monjardim, bastariam para atrair a atenção do público. Mas o programa também tinha como fio narrativo a vida marcada por excessos da cantora Maysa Matarazzo, vivida pela estreante Larissa Maciel. No time de revelações ainda havia Mateus Solano, elogiado no papel de Ronaldo Bôscoli.



“CAMINHO DAS ÍNDIAS”: Eram duas novelas em uma. A mais exótica se passava na Índia, onde o intocável Bahuan (Márcio Garcia) e a funcionária de telemarketing Maya (Juliana Paes) viviam uma paixão proibida, ameaçada pelo casamento arranjado dela com Raj (Rodrigo Lombardi).

A outra, passada no Rio, tinha como destaques a luta pelo poder na empresa Cadore, os saracoteios de Norminha (Dira Paes) na Lapa e o amor entre o esquizofrênico Tarso (Bruno Gagliasso) e Tônia (Marjorie Estiano).

Escrita por Glória Perez e dirigida por Marcos Schechtmann, a novela fez história ao ser a primeira produção brasileira do gênero a conquistar o Emmy Internacional. Ainda popularizou rituais e danças da cultura indiana e botou na boca do povo expressões como “are baba” e “atchá”. O público deu ao folhetim uma média de 39 pontos de ibope.
 
E chegou a influenciar a trama, consagrando o personagem de Lombardi, que terminou ao lado da mocinha.




“ESQUADRÃO DA MODA”: Versão do reality britânico de sucesso “What not to wear”, o programa conseguiu igual repercussão no SBT. Apresentada pela modelo Isabella Fiorentino e pelo stylist Arlindo Grund, a atração promove a transformação do guarda-roupa de uma pessoa comum. O ponto alto do ano foi a participação da cantora Stefhany.



“CARAS & BOCAS”: Apesar do tema — o mundo das artes plásticas —, a novela de Walcyr Carrasco nada tem de elitista. A atração das 19h, que conseguiu elevar em 20% a média de audiência dos últimos três folhetins do horário, chama a atenção pelas cenas de comédia, pelo texto ágil e por incluir um macaco pintor no elenco. A história é centrada na relação de amor e ódio entre a galerista Dafne (Flávia Alessandra) e o pintor Gabriel (Malvino Salvador). O sucesso popular fez a novela ser esticada em dois meses.



“POR TODA MINHA VIDA”: Embora tenha sido criado em 2006, o programa que biografa nomes da música brasileira teve em 2009 sua consagração.

Indicada pela terceira vez ao Emmy Internacional (pelo episódio sobre Mamonas Assassinas), a atração que une documentário e dramaturgia recriou as trajetórias de Cazuza, Claudinho (parceiro de Buchecha) e Raul Seixas.



Com boas audiências, virou fenômeno até no Twitter, onde fãs criaram o “Claudinho e Buchecha Day”.



“CINQUENTINHA”: Quatro viúvas, uma herança. Com essa receita de confusão, Aguinaldo Silva escreveu a divertida minissérie dirigida por Wolf Maya. As ex-mulheres eram vividas por Betty Lago, Maria Padilha, Marília Gabriela e Susana Vieira. O autor brincou com a biografia das atrizes para criar suas personagens.



“SOM & FÚRIA”: Escorada no prestígio do diretor Fernando Meirelles (de “Cidade de Deus”), a minissérie, versão da canadense “Slings and arrows”, foi das estreias mais comentadas do ano. A produção da 02 mostrava as coxias de montagens de Shakespeare.

No elenco, Felipe Camargo em seu primeiro protagonista de TV depois de 17 anos, Maria Flor e uma elogiada Andrea Beltrão.



“TRUE BLOOD”: A onda de vampiros que contaminou a ficção chegou à TV, pela HBO, com a série de Alan Ball. A trama se passa numa cidadezinha onde convivem sugadores de sangue, outros seres bizarros e humanos com a sexualidade a mil. Anna Paquin e Stephen Moyer são os protagonistas.



“GLEE”: Junte pérolas da música pop, uma trama passada numa high school e personagens à margem do sonho americano: esta é a receita do seriado de maior sucesso de 2009. Exibido pela Fox e inspirado no açucarado “High school musical”, o seriado retrata um coro de colégio formado por “perdedores”. Entre eles, um cadeirante, um gay e uma negra obesa. Além da história saborosa, a produção também virou fenômeno musical. Suas versões vocais de canções como “Don’t stop believing”, do Journey, chegaram ao topo das paradas.



“CILADA”: Roteirista e ator da sitcom, Bruno Mazzeo conseguiu um feito para poucos este ano: estar no ar, ao mesmo tempo, na TV aberta e na a cabo. Surgido no Multishow, o programa, na sexta temporada em sua versão original, virou quadro do “Fantástico” em abril. A proposta, de mostrar as roubadas em que o sujeito comum acaba se metendo, continua a mesma, mas agora Mazzeo faz graça com relacionamentos amorosos.



Os melhores de 2009 foram escolhidos pela equipe da Revista da TV
 
 
O Globo, 24 de dezembro de 2009

December 17, 2009

O poder das empresas de ônibus do Rio

Na capa do jornal "O Globo" de ontem o destaque foi dado à grande via que a Prefeitura vai abrir ligando a Penha à Barra da Tijuca. Para viabilizá-la 3630 imóveis serão desapropriados e e o investimento será da ordem de 790 milhões de reais.

É muito dinheiro e seria interessante fazer uma avaliação que qual será o percentual da população que se beneficiará dessa grande obra. Afinal é realmente muito mais significativo o fluxo de gente daquela região para a Barra do que para o Centro da cidade?

Não seria mais importante criar vias alternativas e melhoras as que já existem, além da própria avenida Brasil tão abandonada e deteriorada?

Ao que parece esse grande investimento continua a fazer o dinheiro público fluir na direção dos interesses dos empreiteiros da Barra e dos donos das grandes empresas de ônibus.
Este é um mistério que sempre me inquietou: como é que as empresas de ônibus conseguem fazer com que todas as políticas públicas sempre as beneficiem e que nenhuma medida no sentido de contê-las se viabilize?

Não se viu nenhuma redução do número de ônibus que todos os dias atravacam as suas do rio com suas enormes carrocerias depois da restrição às vans. Não se consegue implementar o bilhete único que reduziria o extorsivo custo do transporte que atende (mal) à maior parte da classe trabalhadora. Não houve nenhum investimento significativo no sentido de melhorar e ampliar a malhar ferroviária que, no passado, já foi o mais importante meio de transporte para a população dos subúrbios.

E praças outrora lindas como a Saens Pena e a General Osório, desaparecem e se tornaram lugares feios e insalubres devido ao paredão de ônibus que fazem ali seu ponto final.
Será que não se deve também à força dessas empresas e de suas bancadas municipais e estaduais o atraso secular do projeto de ampliação do nosso metrô?

Uma das coisas interesses que esse grande urbanista que é Sergio Magalhães diz em sua entrevista publicada no caderno Razão Social do Globo e que linkei nesta página é que as autoridades são reativas. Ou seja elas reagem à pressão e podem modificar suas políticas em função de pressões de seus virtuais eleitores. É preciso então que todos, sempre que tiverem oportunidade, se manifestem contra essas duas forças do atraso que impedem a renovação do Rio de Janeiro histórico e popular: empreiteiros e empresários de transporte ganaciosos que não estão nem um pouco comprometidos com o bem-estar da população. 
 
- Isabel Lustosa

December 16, 2009

Choque de ordem: uma fórmula antipática e ineficaz

A idéia de que a ordem social se transforma a partir de uma atitude de impacto não se comprova na prática.

A prática demonstra que choques de ordem funcionam no momento em que são aplicados mas não implicam em melhorias continuadas da ordem. Essas só ocorrem com projetos de longa duração, com investimentos de fluxo contínuo, com a constante presença do Estado junto à comunidade sob a forma de boas instalações e de funcionários bem formados.

Todas essas medidas que vemos anunciadas nos jornais com estardalhaço, algumas ridículas como o recolhimento dos brinquedos em algumas praças, outras atacando apenas os setores menos capazes de opor resistência, como os vendedores ambulantes; ou destruindo instalações de bares de alguns desapadrinhados, visam apenas a publicidade e o voto dos desavisados. E são desmoralizadas, por exemplo, pela volta dos moradores de rua aos mesmos lugares no dia seguinte. Sinal de que essa não é a solução para o problema da população de rua. É preciso achar uma outra política.

Não é assim que o Rio vai mudar para melhor.

Esse progresso só será alcançado a partir de um planejamento consciencioso e articulado das políticas públicas de longo prazo que contemplem as questões urbanas em seu conjunto: transportes, circulação, iluminação pública, limpeza das ruas, escoamento das águas, segurança e, é claro, saúde e educação.

Sem esquecer o planejamento ordenado do crescimento da cidade e, este é um problema que, no momento, diz respeito à expansão especulativa que se volta para a Zona Oeste e que pretende se beneficiar dos recursos públicos destinados às Olimpiadas de 2016.

- Isabel Lustosa


December 13, 2009

Sonho de cinema por trás dos muros

Menores infratores do Instituto João Luiz Alves, na Ilha, fazem filme sobre futebol



Tulio Brandão

Para os menores infratores do Instituto João Luiz Alves, na Ilha do Governador, o melhor da vida é a ficção.

Pelas retinas de cada um deles, escorrem lembranças de violência, colapso familiar, perdas. Para mudar as imagens dessa sala escura, eles ganharam de presente a oportunidade de fazer um filme. Decidiram, claro, não escrever sobre seus dramas reais, mas contar a história do mundo em que eles gostariam de viver. “Sonho de futebol” — que está sendo dirigido por Zelito Viana, Cris D’Amato e Cininha de Paula — narra as dificuldades de jogadores de um time de terceira divisão do Rio.

O filme — resultado do Projeto Oficinas Culturais Cine Degase, patrocinado pela Oi — tem cenas sendo rodadas neste momento no próprio Instituto João Luiz Alves. A Justiça só autorizou a participação dos menores no projeto com a condição de que eles aparecessem maquiados ou ganhassem uma caracterização de personagem.

A adaptação foi feita a partir de sugestões dos próprios garotos pelo maquiador Vavá Torres. José Renato Monteiro, um dos coordenadores da oficina, espantou-se com a reação de garotos que normalmente têm cara de mau ao ficar diante das câmeras: — A primeira pergunta é: “eu estou bem”? Alguns falam em continuar no ofício de ator, quando ficarem livres.

Um abismo separa os dois mundos.

X, de 16 anos, oscilava entre o sonho do galã e a dura realidade que o aguarda fora dos muros do instituto.

— Não tenho ilusão. No crime uma hora a casa cai: você morre, fica aleijado ou vai preso. Por isso vou mudar, mas antes tenho que resolver umas paradas sérias lá fora — diz ele. — Depois, vou procurar as pessoas para fazer um curso. Tudo o que eu quero, consigo.

Para a psicanalista Leila Ripoll, que apoia o grupo durante o projeto, eles têm pressa: — Nas filmagens, há uma intolerância muito grande à espera. Eles querem jogar bola, mas são obrigados a parar o tempo todo para filmar. Dizem que, assim, com interrupções, não tem graça. A questão do tempo, para eles, é muito complexa. Mas, ao mesmo tempo, gostam da experiência do cinema.

Um deles me disse que a filmagem é o único momento da vida em que ele não sofre.

A falta de paciência contrasta com o esforço dos menores em chegar preparados às filmagens. A diretora Cris D’Amato, que dirigia as cenas do campo de futebol, driblou com categoria os problemas da filmagem: — Encontrei pessoas delicadas, que decoram os textos e, literalmente, vestem a camisa para fazer um filme.

A arte é importante porque contribui para tirar esses jovens de uma realidade cruel, e oferece o lúdico, o amor, a esperança.

O talento salta os muros altos do instituto. Um dos menores confinados fez um rap sobre o filme. Virou a trilha sonora.

O filme deve ser finalizado até dezembro.

Os produtores ainda não sabem se haverá lançamento comercial. Só uma coisa é certa: cada menor infrator ganhará uma cópia, em DVD, para eternizar, ao menos na televisão da família, o sonho de uma vida longe do crime.

O Globo, 7 de dezembro de 2009

 





December 12, 2009

Solar Del Rei, em Paquetá, vive seus dias de plebeu




Imóvel que já hospedou Dom João VI está interditado e espera reforma emergencial para não desabar por completo


Jaqueline Costa

foto de Custódio Coimbra


Depois de ter sido a mais suntuosa propriedade de Paquetá e de ter hospedado por diversas vezes Dom João VI , o Solar Del Rei, em Paquetá, vive tristes dias. Logo na entrada, uma placa adverte sobre a interdição e o risco de desabamento. O imóvel, que abriga a única biblioteca da ilha, foi fechado pela prefeitura em 27 de outubro, após anos de abandono. A construção está caindo aos pedaços.

Em decorrência dos problemas no telhado, infiltrações e rachaduras se espalham por toda parte, o forro do teto está empenado e ameaça cair, e estão podres as esquadrias de madeira. O muro da propriedade também corre o risco de ruir. Nas salas que abrigam duas carruagens do século XIX, a água escorre pelas paredes internas nos dias de chuva.

Para garantir a restauração do imóvel histórico, o Ministério Público Federal está movendo uma ação civil pública contra a Fundação Anita Mantuano de Artes do Rio (Funarj), proprietária do solar. Mas a instituição informa que, como o imóvel está cedido para o município do Rio por prazo indeterminado desde 1976, cabe à prefeitura fazer a manutenção dele.

O município reconhece a responsabilidade e informa que está prevista uma obra emergencial, que inclui parte da cobertura, esquadrias e o muro. Mas ainda não há data para começar, já que os R$ 667 mil orçados ainda não foram liberados. Segundo Paulo Vidal, coordenador da Subsecretaria municipal de Patrimônio Cultural, está prevista uma restauração completa, financiada pelo BNDES.

— A reforma emergencial deve durar seis meses e visa a dar segurança ao solar, ao acervo e às pessoas que lá trabalham. Em seguida, assim que os trâmites do financiamento estiverem resolvidos, começará uma reforma completa, incluindo a parte de paisagismo, que custará cerca de R$ 1.900 — explica Paulo.

Em 21 de outubro, o Iphan realizou uma vistoria no local e constatou que o principal ponto de deterioração é o telhado. Foi feito um novo ofício à prefeitura para que obras emergenciais sejam iniciadas logo. Segundo o laudo, o imóvel está em franco estado de degradação interna e externa. A visita anterior da instituição ao solar ocorreu em 2006, quando já haviam sido feitas recomendações para cessar o processo de ruína.



Ameaça de multa pelos anos de abandono
Tentativa de acordo para a reforma do imóvel fracassou

Além da restauração do solar, o Ministério Público Federal (MPF) quer que a Funarj pague uma multa correspondente ao dobro dos prejuízos causados pelo abandono. Se não houver recursos suficientes para as obras necessárias, o MPF pede ainda que o Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Iphan) se responsabilize pelas reformas.

— O MPF tentou resolver a questão por meio de um acordo, um termo de ajustamento de conduta, mas as instituições não se manifestaram — disse a procuradora da República Gisele Porto, responsável pela ação civil pública.

Cláudia Luna, coordenadora da ONG Nosso Papel, responsável pelo projeto Ponto de Cultura de Paquetá, lamenta o fechamento da biblioteca não só pela decadência do patrimônio histórico, mas pela interrupção do atendimento na biblioteca. Ela foi uma das organizadoras de um abaixoassinado entregue na última segunda-feira à Secretaria municipal de Cultura.

A Biblioteca Popular funcionava desde 1977 na construção.

O acervo, com cerca de 15.300 títulos, ainda está lá, assim como parte da memória da Ilha de Paquetá, que inclui fotografias antigas.

— O solar é fundamental para a educação das crianças da ilha porque, além dos livros, o espaço abriga exposições, lançamentos e cursos. A ilha tem cerca de quatro mil moradores, sendo cerca de 700 crianças e adolescentes. Eles são desprovidos de opções de lazer e cultura e vivem isolados até por conta do preço das passagens das barcas — argumenta Cláudia.

Bens tombados, porém tombados

Em Paquetá, há 17 bens tombados em níveis diferentes — um deles é um conjunto de ilhas próximas. A Escola Municipal Pedro Bruno, um dos dez imóveis tombados pelo município, é outra construção da ilha que carece de restauração.

Na fachada lateral, há infiltrações e muitas janelas estão com os vidros quebrados.

O palacete, em estilo neoclássico, foi a terceira e última sede da Fazenda São Roque e, desde da década de 60, funciona como escola. Paulo Vidal, da Subsecretaria municipal de Patrimônio, diz que há um projeto em curso para reformar toda a escola.

Em frente à escola, há um singelo coreto, na Praça São Roque, feito de alvenaria, com colunas toscanas e guarda corpo em cobogós cerâmicos.

No alto, há um beiral recortado em madeira. Alguns pedaços estão faltando.

No Parque Darke de Mattos, na Praia José Bonifácio, quase todas as luminárias e brinquedos estão quebrados. O lugar, tombado pelo Inepac, foi parte de uma antiga residência. Seus jardins têm árvores centenárias, túneis, mirantes e trilhas.

O Globo, 6 de dezembro de 2009

December 2, 2009

Mercado de armas no Rio e em SP é lucrativo

Grande fluxo bélico para os dois principais mercados do país segue por via rodoviária, vindos do Paraguai e da Bolívia

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

O contrabando de armas para criminosos segue as mesmas regras comuns da economia legal, regulado pela mais básica das leis: a da oferta e da procura. O mercado está tão lucrativo que a novidade do momento no Brasil é a utilização esporádica de pequenos aviões para contrabandear armas como fuzis automáticos. Previamente, apenas cargas mais valiosas, como drogas, justificariam o uso de aeronaves.

O grande fluxo de armas para os dois principais mercados do país -criminosos da Grande São Paulo e do Grande Rio- segue mesmo é por via rodoviária, vindos da mesma direção básica: as porosas fronteiras com Paraguai e Bolívia.

Lotes maiores chegam misturados a cargas de caminhões. Os frigoríficos são boas opções, pois é difícil que um policial rodoviário queira se embrenhar no meio de carcaças de bois para vasculhar um eventual contrabando. Caminhões-tanque também são boas opções: as armas vão bem embrulhadas dentro do líquido.

O armamento, segundo se depreende pelas amostras apreendidas, tem origem muito variada.
Os fuzis automáticos preferidos são dos dois calibres mais comuns no mundo ocidental, o 5,56 mm padrão Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) -caso do M-16 ou sua versão semiautomática vendida livremente nos EUA, o AR-15- e 7,62 mm padrão Otan (caso das várias versões do fuzil belga FAL, utilizado pelo Exército). No momento, apenas Chile e Brasil produzem fuzis na América do Sul.

A Argentina chegou a produzir sua versão do FAL, mas sua produção está parada. Fuzis FAL argentinos já foram apreendidos no Brasil com criminosos, assim como armas que eram dos exércitos da Bolívia e Paraguai.

Mesmo uma arma razoavelmente antiga -como um fuzil americano BAR, que a Força Expedicionária Brasileira usou na Segunda Guerra- continua sendo potente hoje nas mãos de criminosos. Conforme o popular clichê da imprensa, "é capaz de derrubar helicópteros" (caramba, uma pedrada bem colocada basta para derrubar um helicóptero sem blindagem!). E certamente perfuraria um carro-forte se armado com a munição adequada.

As Forças Armadas brasileiras são uma pequena fonte de armas. Além de elas estarem bem vigiadas internamente, atacar um quartel é uma medida rara e arriscada para obtenção de armas. Em 2009, apenas 16 armas foram roubadas ou furtadas do Exército; e 12 já foram recuperadas.

Algumas armas do crime vêm direto de Miami por navio para os países vizinhos antes de começarem a jornada por terra. Fuzis Ruger, por exemplo, são apenas fabricados nos EUA.
Uma outra rota de contrabando, usada principalmente no Rio, é aquela feita por navios. Como os "clientes" estão nos morros ali perto, fica fácil usar uma lancha ou um aparentemente inocente pesqueiro para receber o armamento antes mesmo de o navio atracar. Por não ter "fregueses" tão próximos, Santos, não costuma estar na rota.

A rota por mar tende a ser mais usada por contrabandistas de um modelo de arma mais raro no país, mas que começa a se fazer presente: os fuzis russos da série AK, conhecidos como "a Coca-Cola das armas", pois estão em toda a parte, são produzidos em muitos lugares, e a quantidade produzida foi prodigiosa: 60 milhões.

O russo Mikhail Kalachnikov -o "K" do nome; o "A" é de "automática"- produziu uma arma robusta e simples de usar, também calibre 7,62 mm, mas disparando uma munição mais curta que a do padrão Otan. A AK-47 (que data de 1947), sua versão melhorada AKM, e uma versão de calibre menor (AK-74, calibre 5,45 mm), costumam ser contrabandeadas de países do leste europeu (os ex-satélites do mundo comunista), e de países africanos que viveram guerras civis, como Angola, onde uma arma dessas é vendida literalmente a preço de banana. O preço, claro, aumenta quando chega nos morros cariocas. Questão de mercado, de oferta e de procura

Folha, 22 de novembro de 2009