O STJ permite o plantio de cannabis
no Brasil, mas impõe regras que dificultam
a produção de medicamentos acessíveis
MARIANA SERAFINI
O biólogo Renato de Traglia Tonini
vê com mais entusiasmo a liberação do
plantio, pois facilitará as pesquisas com
cannabis no País, que hoje dependem da
importação de insumos. Doutorando
em Genética e Melhoramento pela Universidade
Federal de Viçosa e pesquisador
do Banco Ativo de Germoplasma de
Cannabis, ele explica que, de fato, o clima
tropical é propício à produção de cânhamo
com baixíssima concentração de
THC. “É comum que uma semente, ao ser
aquecida, tenha o teor de THC alterado.
Os grãos importados podem ter suas características
modificadas em um ambiente
mais quente.” A despeito disso, o
plantio de maconha permitirá trabalhar
para a estabilização das sementes, avalia.
Logo após a decisão do STJ, Santa Catarina
aprovou, em 27 de novembro, uma
lei que institui a política estadual de fornecimento
gratuito de medicamentos à
base de maconha. Pedro Sabaciauskis,
diretor da associação Santa Cannabis,
destaca que agora as entidades poderão
contribuir para tratamentos na rede
pública, de forma alinhada aos objetivos
das autoridades de saúde. “Esse pode
ser um bom caminho para todos os estados,
porque fortalece a economia local
de cada região”, avalia.
Pela lei, o SUS fornecerá medicamentos
produzidos pelas indústrias da região para
todas as doenças, conforme a prescrição
médica. É uma legislação mais avançada
do que a de São Paulo, que atende apenas
três comorbidades. Para o especialista,
a grande vantagem da decisão do STJ
será o fomento à pesquisa. “Hoje, a Santa
Cannabis apoia 15 pesquisas em seis universidades
diferentes. Nosso paciente mais
jovem tem 1 ano e 6 meses, e o mais velho
tem 102 anos. Os medicamentos à base de
cannabis atendem um público muito amplo.
Não tem mais como voltar atrás.” •
Em decisão histórica, a Primeira
Seção do Tribunal Superior
de Justiça autorizou,
em novembro, a importação
de sementes e o cultivo de
cannabis para fins medicinais no Brasil.
Os ministros da Corte estabeleceram um
prazo de seis meses para a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa)
regulamentar a questão. Embora represente
um avanço, pesquisadores e ativistas
alertam que ainda há muitos desafios
a serem superados. Inicialmente, a liberação
restringe-se à produção do chamado
cânhamo industrial, variedade da
cannabis com até 0,3% de THC, o princípio
psicoativo da maconha. Na prática,
essa limitação encarece a extração do canabidiol,
usado na maior parte dos tratamentos
à base de cannabis.
A ministra Regina Helena Costa, relatora
do caso no STJ, entende que a
cannabis com baixa concentração de THC
não pode ser enquadrada nas restrições
da Lei de Drogas e destaca que a liberação
destina-se exclusivamente a fins farmacológicos
e industriais. Se, por um lado, o
mercado do cânhamo, voltado para a indústria
têxtil e de bioplásticos, poderá dar
um grande passo, por outro, a decisão ainda
é limitadora para a indústria farmacêutica
e para as associações dedicadas
à produção de remédios de baixo custo
com substâncias extraídas da maconha.
Margarete Santos de Brito, diretora da
Apepi, a primeira organização a conquistar
na Justiça o direito de importar sementes
e cultivar cannabis no Brasil para
a fabricação de medicamentos, alerta que
a decisão traz insegurança jurídica e pode
interferir no tratamento de milhares
de pacientes. “Para as associações é muito
ruim, porque nos coloca em uma posição
de ilegalidade”, critica. Atualmente,
nenhuma entidade produz a planta com
um teor tão baixo de THC no País, alerta
a advogada e ativista.
Apesar da restrição imposta, a decisão
do STJ abre caminho para o diálogo,
avalia Brito. A Apepi e dezenas de outras
associações acionaram o Ministério da
Saúde e esperam que seja possível avançar
em uma regulamentação específica.
Isso porque, sem o suporte dessas entidades,
muitos pacientes se veem obrigados
comprar medicamentos importados,
que são caros e inacessíveis para a maior
parte da população. Nas prateleiras das
farmácias, um frasco de canabidiol pode
custar mais de 2,5 mil reais, enquanto
o custo do óleo da substância produzido
por organizações de apoio a pacientes
não costuma chegar a 10% desse valor.
Na avaliação do psiquiatra Flávio
Falcone, integrante da Equipe do Programa
de Orientação e Atendimento a Dependentes
da Unifesp, a decisão do STJ ainda
não traz benefícios para os milhares de
pacientes brasileiros que dependem desses
medicamentos. “Parece atender apenas
aos interesses da indústria farmacêutica
e do cânhamo”, avalia. Ele explica que
um tratamento baseado em baixa concentração
de THC, além de não servir a todas
as comorbidades tratadas atualmente
com cannabis, pode encarecer muito o
produto final. “Quando utilizávamos o canabidiol
importado, eram necessárias cerca
de 20 gotas para uma dose medicamentosa.
Com o óleo de teor mais alto de THC,
produzido pelas associações, bastam duas
gotas. É mais eficaz e mais barato.”
Utilizar todos os componentes da flor
de cannabis − ou seja, o CBD e o THC, as
duas substâncias mais exploradas para
tratamentos medicinais − é a melhor forma
de obter bons resultados para a maioria
das doenças, explica o psiquiatra, que
também atua na associação Flor da Vida.
Atualmente, cerca de 400 mil pacientes
estão autorizados pela Anvisa a fazer tratamento
baseado em medicamentos produzidos
a partir da maconha. Os óleos e
as pomadas têm apresentado resultados
satisfatórios para inúmeras doenças, entre
elas epilepsia, fibromialgia, ansiedade,
depressão, alguns tipos de câncer, além
de quadros clínicos de dores crônicas.
Falcone acrescenta que, mesmo com a
decisão do STJ, as associações vão precisar
continuar recorrendo à Justiça para
manter suas produções. Os pacientes que
optam por plantar cannabis para produzir
seu próprio medicamento também
precisarão obter um habeas corpus para
se proteger de qualquer processo relacionado
à draconiana Lei de Drogas.
“Ainda não é o ideal, mas representa
um avanço importante, sobretudo se
considerarmos o atual cenário, de ausência
completa de regulação”, acredita
Felipe Nechar, diretor jurídico da organização
Divina Flor. O advogado avalia
ser difícil produzir no Brasil uma flor de
cannabis com tão baixa concentração de
THC, principalmente devido a fatores climáticos.
“Ao chegar ao solo tropical, cada
semente vai aclimatar-se de uma forma
diferente. Em Mato Grosso, nossa produção
tem em torno de 20% de THC e 60%
de CBD”, explica. Ao chegar ao produto final,
essa concentração é diluída de acordo
com a necessidade de cada paciente.
O biólogo Renato de Traglia Tonini
vê com mais entusiasmo a liberação do
plantio, pois facilitará as pesquisas com
cannabis no País, que hoje dependem da
importação de insumos. Doutorando
em Genética e Melhoramento pela Universidade
Federal de Viçosa e pesquisador
do Banco Ativo de Germoplasma de
Cannabis, ele explica que, de fato, o clima
tropical é propício à produção de cânhamo
com baixíssima concentração de
THC. “É comum que uma semente, ao ser
aquecida, tenha o teor de THC alterado.
Os grãos importados podem ter suas características
modificadas em um ambiente
mais quente.” A despeito disso, o
plantio de maconha permitirá trabalhar
para a estabilização das sementes, avalia.
Logo após a decisão do STJ, Santa Catarina
aprovou, em 27 de novembro, uma
lei que institui a política estadual de fornecimento
gratuito de medicamentos à
base de maconha. Pedro Sabaciauskis,
diretor da associação Santa Cannabis,
destaca que agora as entidades poderão
contribuir para tratamentos na rede
pública, de forma alinhada aos objetivos
das autoridades de saúde. “Esse pode
ser um bom caminho para todos os estados,
porque fortalece a economia local
de cada região”, avalia.
Pela lei, o SUS fornecerá medicamentos
produzidos pelas indústrias da região para
todas as doenças, conforme a prescrição
médica. É uma legislação mais avançada
do que a de São Paulo, que atende apenas
três comorbidades. Para o especialista,
a grande vantagem da decisão do STJ
será o fomento à pesquisa. “Hoje, a Santa
Cannabis apoia 15 pesquisas em seis universidades
diferentes. Nosso paciente mais
jovem tem 1 ano e 6 meses, e o mais velho
tem 102 anos. Os medicamentos à base de
cannabis atendem um público muito amplo.
Não tem mais como voltar atrás.” •
CARTA CAPITAL
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