December 20, 2024

Passado a limpo

 



DITADURA A Comissão da Anistia cumpre
sua meta e encerra 2024 com mais de
1,5 mil pedidos de reparação analisados 

FABIOLA MENDONÇA

Cerca de 5 mil ex-funcionários
da extinta Panair, tradicional
empresa de aviação
criada em 1929 e extinta
em 1965 pelo regime militar,
receberam um pedido de desculpas
coletivo do Estado brasileiro, durante a
última audiência do ano da Comissão de
Anistia, na sexta-feira 29. À época, esses
trabalhadores perderem o emprego pelo
simples fato de os proprietários da empresa
se negarem a apoiar o golpe de 64,
provocando a ira dos militares, que decretaram
a falência da companhia aérea
numa canetada.


Foram necessários 60 anos para uma
retratação pública. Assim como aconteceu
no caso da Panair, a Comissão de
Anistia julgou outros sete pedidos coletivos
e cerca de 1,5 mil processos individuais
este ano, um balanço que supera os
números de 2023, quando só foram apreciados
80 processos. Para 2025, a estimativa
é julgar a mesma quantidade de casos
deste ano e, em 2026, zerar todos os
pedidos de anistia. “Esperamos que o
Estado consiga, depois de duas décadas
e meia, completar esse jubileu de prata.
Não é possível que a sociedade brasileira
tenha de esperar tanto tempo para
esse reconhecimento púbico”, destaca
Eneá de Stutz, presidente da Comissão
de Anistia, colegiado criado em 2001.


O julgamento da Panair é emblemático
porque todos os funcionários foram
demitidos de forma compulsória em represália
aos donos da empresa, mas outros
três casos julgados este ano ficarão
marcados para sempre nos trabalhos
da Comissão de Anistia. Um deles
foi o julgamento dos povos Krenak,
de Minas Gerais, e Guyraroká, de Mato
Grosso do Sul, em abril, na primeira audiência
da Comissão em 2024. Nos dois
casos, os indígenas foram perseguidos,
presos e torturados, acusados de subversão
e de fazer oposição ao regime militar.


Em uma sessão emocionante, Stutz
ajoelhou-se para fazer o pedido de desculpas,
cena semelhante à ocorrida em
julho, na retratação ao povo Guarani
Kaiowá. “Eu senti uma responsabilidade
tão grande, um peso tão gigante para
pedir desculpas, que me ajoelhei”, lembra
a presidente do colegiado, destacando
que, no caso dos Kaiowá, a denúncia
foi de genocídio e estupros contra crianças
e mulheres indígenas.


Para alcançar um número recorde de
apreciação dos pedidos de anistia, a Co-

missão adotou como método separar os
casos por blocos e analisá-los coletivamente.


Além disso, colocou os processos
na ordem cronológica. Neste ano, julgou
os pedidos feitos entre 2001 e 2010. Em
2025, vai analisar as solicitações realizadas
entre 2011 e 2021. No ano seguinte, os
casos que surgiram desde então e os que
ainda estão por vir. A Comissão também
estipulou em 2 mil reais o valor máximo
de indenização permanente para a reparação
econômica nos casos individuais,
independentemente da ocorrência, que se
soma a uma indenização de 100 mil reais
em parcela única, como prevê a legislação
que trata do tema. A anistia financeira vale
apenas para os pedidos individuais, enquanto
para os coletivos a reparação é política.


Outra ação adotada pela Comissão
a partir deste ano foi dar voz às vítimas.
“O protagonismo nos processos de reparação
não pode ser meu, da Comissão
nem do ministro de Estado. A vítima tem
de ter voz para apresentar suas demandas
de reparação. O julgamento dos Guarani
Kaiowá, por exemplo, foi uma sessão
linda, porque eles tiveram liberdade
e confiança para falar o que queriam e
do jeito deles, tanto que optaram por se
manifestar no idioma deles e não na língua
daqueles que sempre os reprimiram,
que é o português”, relata Stutz, ressaltando
que a centralidade da vítima é um
importante requisito previsto pela ONU
em julgamentos como esses.


No mesmo dia da sessão dos Guarani
Kaiowá, a Comissão julgou um caso coletivo
de imigrantes japoneses que foram
colocados num campo de concentração
em São Paulo, no pós-Guerra, entre 1946
e 1947. “Foi emocionante ver o auditório
lotado com uma centena de senhores e senhoras
acima dos 70 anos de idade, representando
seus familiares.” Com um atraso
de quase 80 anos, a Comissão de Anistia
fez mais um pedido de desculpas coleti-

vo. O recorte temporal da Comissão vai de
1946 até 5 de outubro de 1988, data da promulgação
da Constituição Federal, por isso
abarcou o caso desses imigrantes.


“É superimportante a gente concluir
a transição para a democracia. A Comissão
de Anistia precisa finalizar sua tarefa
de reparação junto aos perseguidos políticos,
a Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos precisa dar uma resposta
aos familiares e o que aconteceu com
seus entes queridos, e os responsáveis pelas
violações de direitos humanos no período
da ditadura têm de ser responsabilizados
penalmente, para que a gente
não tenha a possibilidade de pensar em
um novo 8 de Janeiro”, dispara Stutz, referindo-
se ao debate atual sobre anistia
para perdoar os extremistas ligados ao
ex-presidente Jair Bolsonaro, que tentaram,
de várias formas, dar um novo golpe
de Estado, dessa vez com o plano de
assassinar o presidente Lula, o vice Ge-

raldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre
de Moraes.


“Enquanto a gente não completar essa
tarefa da transição, seja no campo da
reparação, da memória e da verdade, e,
principalmente, da responsabilização,
esse fantasma vai continuar rondando as
nossas cabeças. Se não punir, vai ser sempre
possível alguém ou algum grupo achar
que pode dar um golpe, porque o máximo
que vai acontecer é o golpe ser frustrado,
já que não terá consequências para o
golpista”, finaliza Stutz. Segundo Nilmário
Miranda, assessor Especial para a Democracia,
Memória e Verdade do Ministério
dos Direitos Humanos, a Comissão
de Mortos e Desaparecidos, recriada em
agosto deste ano, tem como uma de suas
prioridades retificar o atestado de morte
daqueles que ainda hoje estão na lista dos
desaparecidos políticos, para constar no
documento a causa real do assassinato.


Outra iniciativa será a perícia de ossadas
que vieram da região do Araguaia

possivelmente de brasileiros assassinados
pelos militares, e de outras que estão
em cemitérios, como o de Perus. A Comissão
também pretende construir memoriais
em locais utilizados pelo regime
militar para matar e torturar os opositores.


“A relação da democracia com a memória
e a verdade passa por não deixar
esquecer o que aconteceu, para que nunca
mais se repita. Quando o passado não
é resolvido, como aconteceu com os golpistas
de 1964, eles voltam depois como
Kids Pretos”, diz Miranda, referindo-se
aos militares da elite do Exército envolvidos
na tentativa de golpe após a derrota
de Bolsonaro, em 2022. “Sem memória e
verdade, não há democracia.”

CARTA CAPITAL

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