Vladimir Nabokov escreveu um conto chamado "As Irmãs Vane", em que empregava um truque que ele mesmo admitia que só poderia ser usado uma vez. O último parágrafo do texto precisa ser lido como um acróstico, com as iniciais de cada palavra formando uma outra frase, que prova que as irmãs do título, mesmo depois de mortas, continuam afetando a realidade do narrador.
Dalton Trevisan está muito mais vivo que as irmãs Vane. A realidade imediata de Curitiba, e mesmo os fatos que cercaram e ainda cercam sua morte, continuam sendo absolutamente matizados, alterados e determinados por ele. Pela visão que ele tinha e a imagem que criou de Curitiba. Ele não era de se dar a acrósticos e brincos que tais, mas as marcas que deixou na paisagem de cada rua, cada praça, cada ponte e cada rio afogado fazem o mundo inteiro virar texto, e continuar provando a existência de seu autor.
São poucos, muito poucos, os artistas desse tamanho. Os Fellini, Almodóvar, Lynch. Os irmãos de Nelson Rodrigues, Joyce, Salinger e Machado de Assis. Aqueles que são capazes de perceber tão a fundo a realidade que os cerca que acabam por nos mostrar o mundo de uma forma incontornável. Nova e, ao mesmo tempo, permanente. Mais antiga que nós todos. E sempre à frente de cada um de nós.
É muito difícil conceber a ideia de uma Curitiba que continua existindo sem o olhar de Trevisan. Quando eu nasci, em 1973, ele já estava mais do que consagrado como o maior contista do Brasil. Quando meu pai nasceu, em 1948, ele já tinha feito história na literatura brasileira com a revista Joaquim, e estava publicando seus "Sete anos de pastor", que depois renegaria.
Quando a minha filha nasceu, em 1997, ele estava inaugurando uma fase nova e poderosíssima da sua obra, com uma sucessão de contos brevíssimos, muitas vezes depurados, filtrados de sua produção anterior para virem à tona em livros como "Ah, É?" e "234".
Quando nasceu o primeiro filho do meu irmão, em 2013, ele acabava de ganhar, pela terceira vez, o Prêmio Portugal Telecom —hoje Oceanos—, depois de uma enfiada de quatro jabutis, uma carrada de outros prêmios, e de nada menos que o Camões.
Ele estava de olho na cidade que conheceu criança, uma quase vila de cerca de 80 mil habitantes —mundo de carroças, casas de lambrequins, rios a céu aberto; e continuava vigiando a cidade que conheceu já velho, com seus eternamente quase dois milhões de habitantes: mundo de crack, prédios feios, rios canalizados.
Foram quase 80 anos de observação literária desse estranho fenômeno social, dessa cruel conspiração de cartógrafos que é a cidade de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. E nesse embalo ele ao mesmo tempo diagnosticou seus tipos e suas perversões, retratou seus desejos e recalques e inventou nossa forma de nos entender.
Eu, jovem, li o conto em que Nelsinho —o "Vampiro de Curitiba" do livro que leva esse nome—, vai ao banheiro na casa da antiga professora, que agora parece querer seduzi-lo, e "bem paranaense", faz xixi evitando qualquer ruído. E lembro de ter pensado na maravilha que era alguém prestar atenção num detalhe como esse, e lembro de ter me visto cem por cento representado.
Foi bem por isso que no momento em que eu soube da morte de Trevisan, eu julguei ter percebido que a cidade tinha acabado. De verdade.
Eu tive uma aguda sensação de que era ele quem mantinha viva e coerente uma cidade que no mundo duro dos fatos é ela própria um fato duro, cru, muitas vezes mau. Era o fio constante dos livros e dos famosos caderninhos de cordel que ele soltava até ainda agorinha o que garantia que a ilusão-Curitiba valesse a pena e tivesse potencial de explicação. Potencial de se explicar e de explicar alguma coisa desse Brasil bizarro que a gente vive aqui no suLE por isso estava tomando nota de frases como: "Sai-te, gato posterior, não sejas tão infalivelmente!" "Uma noite, envergando a capa sobre o pijama, saiu de óculo escuro, a noite inteira entregue às práticas do baixo espiritismo".
De títulos como: "Grávida, porém Virgem", "O Delicado", "Não sou Bonito, mas Sou Simpático", "Dinorá, Moça de Prazer".
De expressões como: "um colibri nanico nas asas da luxúria", "vivinho e lampeiro", "formicida com guaraná", "caroço eu te cuspi", "assim a vida da gente", "o coisa", "o terceiro motociclista do globo da morte", "o mais reles dos ratos piolhentos do amor", "sem honra nem palavra", "nem de minha mãe eu gosto", "em toda casa de Curitiba".
E lembrando da "arara bêbada", da "broinha de fubá mimoso", da "corruíra nanica"… da "dália sensitiva de bundinha em botão".
E foi aí que percebi a minha burrice. Porque todo vampiro é imortal, como anotou aquela minha filha, que hoje cuida das redes sociais do escritor. Porque Dalton Trevisan não desaparece nunca, apesar de ter ele mesmo reconhecido que "os velhos piratas morrem na cama".
Porque ele passou a vida encarapitado num muro confeitado de cacos de vidro, olhando para dentro da minha casa e da minha cabeça —eu e os outros sempre quase 2 milhões—, e transformando tudo em Dalton. Tingindo tudo tão Trevisan.
Porque cada "barata leprosa com caspa na sobrancelha" que agora, nessa cidade órfã, quer navegar na fama do vampiro e se fazer de seu amigo, íntimo, próximo, querido privilegiado (eu?) é personagem da obra trevisaniana tanto quanto a Gorda do Tiki Bar ou o Maníaco do Olho Verde.
Porque cada órgão de imprensa (este?) que publica há década e meia uma foto de um velho aleatório de boné pensando se tratar de Dalton Trevisan (e até o local indicado na legenda está errado, ri do meu lado a minha mulher) está no enredo do maior de todos os contos da literatura brasileira.
Que o piá da casinha solitária da Ubaldino começou a escrever lá nos anos 1940, refinou, poliu, mascou, reviu e cuspiu ("tossicou") num lenço "de florinha" que agora já pertencia ao velho da casinha solitária da Ubaldino.
Dalton Trevisan não morreu. Graças a ele.
FOLHA
Ilustração de Poty Lazzarotto para obra de Dalton Trevisan
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