December 30, 2024

O bolso ou a vida

 

 


A verdadeira polarização se dá entre
o capital financeiro e a democracia

 
P O R S E R G I O L I R I O

 O Cavalo de Troia foi
construído com os es-
combros do Muro de
Berlim. Sem a ameaça
comunista, encerrada
a Guerra Fria com a
aparente vitória do “mundo livre”, a ter-
ceira via nasceu, nos anos 90 do século
passado, como uma quimera: prometia
domar a selvageria capitalista, o sistema
triunfante, e humanizar o inominável. O
britânico Anthony Giddens era o Olavo
de Carvalho dos “neoprogressistas”. No

 Reino Unido, Tony Blair, o golden boy do
novo trabalhismo, orgulhava-se da sua
perspectiva monarquista e antissindical.
Fernando Henrique Cardoso venceu
duas eleições no Brasil ao cavalgar no su-
cesso do Plano Real. Bill Clinton apro-
fundava as relações carnais entre os de-
mocratas e Wall Street.

 
Não demorou para muitos perceberem:
a terceira via não passava de uma viela sem
saída. Quem se deixou enganar foi obriga-
do a fazer o retorno e trafegar pela estra-
da principal e única. Por ingenuidade ou

cinismo, os humanistas de casaca do fim
do século prometiam conter o tsunami das
forças do mercado com uma simples placa
de “proibido ultrapassar”. É preciso redu-
zir o tamanho do Estado, diziam, para que
o Poder Público possa concentrar-se nas
atividades primordiais, saúde e educação.

 
Duas décadas e meia se passaram
e a terceira via acabou engolfada pelo
tsunami, que, enfim, não sabia ler a pla-
ca. Os aliados de ontem viraram adversá-
rios tão perigosos quanto os burocratas
da planificação soviética ou os românti-
cos revolucionários. O comunismo aca-
bou e o anticomunismo tomou outras
formas. Os social-democratas foram
declarados os hereges a ser queimados
em fogo alto. Enquanto isso, as barrei-
ras continuaram a ser derrubadas. Saú-
de, educação, futebol, até a morte é me-
dida e mediada pelo lucro. Dispensaram
a ladainha da eficiência do setor privado.
As privatizações de estatais – vide o caso
da Enel em São Paulo – limitam-se a uma
equação financeira. A economia na mão
de obra e na prestação de serviços é o mo-
tor dos ganhos dos acionistas. Os clientes
que reclamem ao bispo. Ou, pior, à Inteli-
gência Artificial das centrais telefônicas
diabolicamente treinada para matar de
raiva quem está do outro lado da linha.

 
Em setembro, durante a discussão do
orçamento de Portugal, um deputado da
Iniciativa Liberal, variação lusitana do
Partido Novo brasileiro, descreveu o mo-
delo de Estado sonhado pela agremiação.
Nenhuma menção a escolas ou hospitais.
Caberia ao Poder Público cuidar da se-
gurança interna e das fronteiras. Citar
um parlamentar de uma legenda obscu-
ra de um país periférico tem apenas um
caráter ilustrativo. Não surpreenderia se
tais ideias integrassem o manual da “In-
ternacional Fascista” articulada nos úl-
timos anos. A galopante desigualdade e
a insatisfação crescente de uma maioria

   mantida à margem do progresso exigem
cada vez mais o uso da força, contra os
inimigos externos e internos.

 
A redução do Estado às funções de po-
lícia talvez não seja o último estágio de
consolidação do tecnofeudalismo. Em
muitos países, o número de seguranças
privados ultrapassa o conjunto das for-
ças oficiais. A multiplicação de bitcoins
alimenta um mercado paralelo que cor-
rói as moedas nacionais ou continentais.
Na Idade Média, suseranos tinham o di-
reito de manter um Exército particular e
cunhar o próprio dinheiro. As semelhan-
ças não são meras coincidências.

 
A ilusão acabou. Enquanto a democra-
cia serviu de contraponto à cortina de fu-
maça, não de ferro, das repúblicas sovi-
éticas, era conveniente associar capita-
lismo e liberdades. Os donos do dinhei-
ro nunca dependeram, porém, de qual-
quer sistema político. Atuam em sim-
biose, ocupam o hospedeiro mais con-
veniente às circunstâncias. Nessa qua-
dra da história, as autocracias se ofere-
cem como o modelo ideal para garantir
sua sobrevivência. Eis a verdadeira pola-
rização: o capital financeiro contra os re-
gimes democráticos. Os bilionários a ca-
minho de virarem trilionários, um gru-
pelho turbinado pela revolução tecnoló-
gica, decidiu que se trata de uma questão
de vida ou morte. O bolso ou a vida. Dese-
nha-se um duelo no pôr do sol em Tom-
bstone. Um detalhe: a equivalência de ar-
mas não é a mesma. De um lado, uma ba-
zuca, do outro, um bodoque.

 
Progressistas de modo geral tendem
a resumir a concentração de renda a um
problema moral. Às vezes, econômico.
Expressam indignação com o fato de
uma centena de super-ricos deter um
patrimônio maior do que aquele de bi-
lhões de outros seres humanos. E lem-
bram: para a dinâmica do PIB, melhor
mil indivíduos com mil do que um com 1
milhão. Mas concentração de renda sig-
nifica, acima das iniquidades, concen-
tração de poder e esse é o maior risco à
existência das sociedades modernas. Ou
da humanidade. Quem poderá deter as
aspirações mais delirantes de alguém, e
Elon Musk é a caricatura, que acumula
uma riqueza superior àquela de muitas
nações? Quem imporá limites a magna-
tas globais, acostumados a operar acima
e à revelia das leis nacionais?

 
A bazuca do capital financeiro são
as big techs. Também neste caso, os pro-
gressistas têm dificuldade em entender
o mecanismo. Há quem lamente o des-
preparo da esquerda para se comunicar
nas redes sociais, como se circulassem
em uma ágora grega, uma praça pública.
Alexa, perdoe-os, eles não sabem o que
pedem. As plataformas, na melhor das hi-
póteses, são uma praça de alimentação de
um shopping. As escolhas são limitadas
pelo espaço e pelo tamanho do investi-
mento. É uma batalha perdida dia-
riamente, em uma guerra que só
pode ser vencida por meio de
uma intervenção estatal
equiparável ao desmem-
bramento dos oligopó-
lios nos Estados Unidos no início do sé-
culo XX. Atenção: o advento da IA é ou-
tro passo adentro da mina escura e funda.

 
O capital financeiro advoga a liberda-
de, carajo... Para os seus. Quanto à patu-
leia, chicote no lombo. Subjugar os sem-
-poder, controlar o corpo das mulheres,
matar os infiéis, destruir a fauna e a flo-
ra. A ordem é eliminar todo e qualquer
obstáculo. Se der errado, pena. Até o li-
mite do possível, os bilionários se refu-
giarão nos arranha-céus, atrás dos mu-
ros, em carros blindados e em cidades ex-
clusivas. Quando o ar se tornar irrespi-
rável, os voos e estações espaciais opera-
dos por empresas privadas os livrarão da
vingança da natureza e dos deserdados.

 
Ver o fim da aventura humana na Terra
de cima será mais um serviço vip, espe-
táculo reservado a poucos. Marte não es-
tá assim tão longe. Um plano de negócios
bem concebido e uma operação estrutu-
rada certamente irão viabilizar a sobre-
vivência em um ambiente até agora hos-
til. Bastariam alguns retoques, a come-
çar pela cor. Nosso (novo) planeta nun-
ca será vermelho. Convoquem um gênio
dos efeitos especiais. Se é para mudar a
decoração, por que não vender o naming
rights? Quem sabe assim os sobreviven-
tes venham a prosperar no Planeta X, sob
as diretrizes da projeção holográfica do
Supremo CEO Musk.

 CARTA CAPITAL

 

 
C A R T A C A P I T A L   D E D E Z E M B R O D E     9
gressistas têm dificuldade em entender
o mecanismo. Há quem lamente o des-
preparo da esquerda para se comunicar
nas redes sociais, como se circulassem
em uma ágora grega, uma praça pública.
Alexa, perdoe-os, eles não sabem o que
pedem. As plataformas, na melhor das hi-
póteses, são uma praça de alimentação de
um shopping. As escolhas são limitadas
pelo espaço e pelo tamanho do investi-
mento. É uma batalha perdida dia-
riamente, em uma guerra que só
pode ser vencida por meio de
uma intervenção estatal
equiparável ao desmem-
bramento dos oligopó-
çar pela cor. Nosso (novo) planeta nun-
ca será vermelho. Convoquem um gênio
dos efeitos especiais.e é para mudar a
decoração, por que não vender o naming
rights? Quem sabe assim os sobreviven-
tes venham a prosperar no Planeta X, sob
as diretrizes da projeção holográfica do
Supremo CEO Musk.

CARTA CAPITAL  

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