Biografias do líder da Nação Zumbi e de Fred Zero Quatro mostram como nasceu em Recife o movimento que deu última chacoalhada importante na música brasileira, borrando fronteiras entre o que era MPB, pop e rock
Por Silvio EssingerFrancisco de Assis França (13-3-1966) e Fred Rodrigues Montenegro (26-5-1962) nasceram em uma Recife que desfrutava do status de terceira mais importante capital do Brasil e que, no espaço de tempo até eles chegarem à idade adulta, passou ao posto de uma das cidades com lamentáveis índices de desenvolvimento humano. “A quarta pior cidade do mundo”, como cantava Francisco em “Antene-se”, faixa de “Da lama ao caos”, álbum de estreia do grupo Chico Science & Nação Zumbi, eleito em 2022, por 25 especialistas ouvidos pelo GLOBO, como o melhor disco da MPB dos últimos 40 anos.
Mas “Da lama ao caos” não estava sozinho: ainda em 1994, sairia “Samba esquema noise”, estreia do Mundo Livre S/A, grupo liderado por Fred Zero Quatro, a outra ponta do mangue bit (também conhecido como mangue beat): mais do que somente música, um movimento que tentava desobstruir as artérias enfartadas de Recife, reprocessando tradições culturais pernambucanas sob a luz das evoluções tecnológicas que começavam a conectar o mundo. A metáfora política de Chico e Fred era a de uma parabólica enfiada na lama do mangue (ecossistema de enorme fertilidade, mas que a especulação imobiliária de Recife trabalhava para enterrar sob o concreto).
Centrado em seus principais personagens e aproveitando os 30 anos do lançamento dos discos-manifestos do mangue bit, “Criança de domingo” (do pernambucano José Teles) e “Mundo Livre S/A 4.0” (do agitador do underground niteroiense Pedro de Luna) vão a fundo para contar uma bela história: a de como jovens num país em redemocratização, fascinados por cultura pop, sem recursos financeiros mas vivendo num estado de ricas manifestações culturais, lideraram o movimento que deu a última chacoalhada importante sofrida pela música brasileira. Aquela que borrou as fronteiras entre o que era MPB, pop e rock, e deu pé para o desenvolvimento da pujante música periférica dos dias de hoje.
Maracatu, embolada, hip hop, coco, funk, punk, reggae, pop africano, samba, heavy metal... não houve quem não ficasse desorientado (e, sem seguida, maravilhado) ao ouvir pela primeira vez a música tão misturada e tão orgânica de Chico Science & Nação Zumbi. Em seu livro, José Teles traça, em uma narrativa detalhada e de certa forma poética, a trajetória de Chico até a sua grande invenção — que pode não ter atingido as paradas de sucesso do Brasil (tomadas então pelo axé, música da Bahia de comunicação bem mais imediata), mas que rapidamente ganharam o mundo, em tempos de difusão da world music e a poucos minutos da popularização da internet.
“É algo que com um parafuso e outras coisas mais você faz, e ele sai voando por aí”, dizia acerca de sua música Chico, rapaz mestiço, vindo de uma família de classe média baixa de Recife, onde cresceu imerso nas tradições populares de Pernambuco e mais tarde descobriu sua forma de expressão artística nas rimas, batidas e samples do hip hop. Teles se preocupa em botar os pingos nos is no que se refere à criação do som e da estética da Nação Zumbi, mostrando Chico — garoto, que com insistência e carisma, conseguiu ter acesso ao rock e à música eletrônica de ponta — como um visionário, sim, mas que não fez tudo só.
Foi nos corres, quase sempre de ônibus, entre as rodas de hip hop, os blocos afro e os folguedos tradicionais da periferia e as bandas de rock e os discos de música eletrônica da garotada mais abastada, universitária, do Recife que Chico construiu a sua música e a sua persona. De sua relação intuitiva com a tecnologia e da absorção de uma cultura de rua altamente miscigenada é que foi surgindo, de projeto artístico em projeto artístico, a Nação Zumbi: aquela que unia a Zulu Nation do DJ e MC pioneiro de hip hop Afrika Bambaatta, às nações de maracatu e a Zumbi dos Palmares.
“Nossa ideia não é acabar com o folclore e sim resgatar os ritmos regionais, envenená-los coma bagagem pop. Isso pode chamar a atenção das pessoas para os ritmos como eles são e criar interesse pelo folclore”, dizia Chico Science em 1994. Ele morreria num acidente de carro, no carnaval de 1997, tendo em visto parte de sua profecia se realizar: seu trabalho com a Nação Zumbi ajudou a popularizou o esquecido maracatu mais do que qualquer iniciativa oficial ou governamental.
Já Pedro de Luna cumpre a contento a missão de biografar Fred Zero Quatro: o companheiro de ideias de Chico Science, o cara que em 1992 redigiu o manifesto do mangue bit e que, desde 1984, toca o Mundo Livre S/A, banda situada entre o lirismo surreal do disco “Tábua de Esmeralda”, de Jorge Ben Jor, e a pulsação sonora, política e multicultural dos ingleses do Clash. “O mangue não era uma batida, nunca foi. Era uma espécie de utopia que a gente queria construir”, dizia Fred, o “pobre star” que se recusou a ser o sucessor de Chico.
Mais do que tudo, o livro de Pedro de Luna dá justa dimensão ao recifense, uma das figuras mais subestimadas da música brasileira, que passou pelos atropelos da indústria fonográfica brasileira com um disco brilhante (“Samba esquema noise”), cometeu um hit (a música “Meu esquema”) e, desde os anos 2000, vem trilhando de forma heroica os caminhos da independência com discos inquietos tanto na música quanto nas letras. Discos que não se esquivaram de fazer a crônica dos tempos politicamente terríveis em que foram produzidos, como “A dança dos não famosos” (2018) e “Walking dead folia” (2022).
GLOBO
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