Abraço de urso Biden deixa-se enredar por Netanyahu e torna-se sócio da iminente catástrofe
P O R S I M O N T IS DA L L
É isso? Será isso o que os maiores líderes ocidentais podem fazer enquantoahoraHse aproxima? O “gentil” Joe Biden distribuiu simpatia e dólares em uma visita de sete horas a Israel. Pequenas quantidades de ajuda pingam em Gaza. Dois de 200 reféns foram libertados. Mas não há cessar-fogo, não há “pausa humanitária” ou zona segura, não há fim para os bombardeios, não há plano de longo prazo. Crescem os temores de uma conflagração cada vez maior.
Em vez disso, há uma aquiescência oci- dental relutante, embora vergonhosa, so- bre o iminente ataque militar em grande escala de Israel a Gaza – com seu objeti- vo compreensível, mas inatingível: a erra- dicação definitiva do Hamas. Com mais de 4 mil palestinos mortos, o “time” do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, para usar o termo chocante escolhido por Biden, deveria receber car- tão vermelho. Acabou de receber luz verde.
A desordem política ocidental, a con- fusão e a hesitação diante desse desastre em evolução são desanimadoras. Os pri- meiros-ministros visitantes, o britânico Rishi Sunak e o alemão Olaf Scholz, im- prensando Biden, agiram para agradar ao seu público doméstico e, deixando de lado as gentis palavras de cautela, agiram como queria Netanyahu. Os desacordos entre autoridades graduadas transfor- maram a União Europeia num especta- dor quase irrelevante.
No Conselho de Segurança da ONU, guardião esfarrapado do ultrajado direi- to internacional, a França e todos os ou- tros apoiaram um esboço de resolução para interromper as hostilidades e anu- lar a ordem de evacuação do norte de Ga- za dada por Israel. Mas os Estados Uni- dos vetaram, dizendo que isso ataria as mãos de Israel. Pateticamente, o Rei- no Unido absteve-se, juntamente com a Rússia, uma combinação infeliz.
Muita diplomacia está em curso nos bastidores. O maior receio é que, se Israel atacar, o Hezbollah no Líbano abra uma segunda frente. A instabilidade tem se alastrado ao Iraque e à Síria. As promessas dos Estados Unidos de fornecer mais bom- bas e balas para Israel enfurecem o mun- do muçulmano. Entretanto, ninguém, nem mesmo Biden, sabe qual é o plano de Netanyahu pós-Hamas, pós-guerra. Isso porque quase certamente não existe um.
As atrocidades terroristas de 7 de ou- tubro, que ceifaram 1,4 mil vidas israe- lenses, foram chocantes. Poucos contes- tam que Israel tem o direito legal e moral de se defender. Mas os líderes árabes, te- mendo a ira do seu povo, têm razão quan- do dizem que a punição coletiva de civis não é a melhor forma de reagir. A ONU também exige um cessar-fogo. Sem isso, outras tragédias como a explosão do hos- pital anglicano al-Ahli serão inevitáveis. Apesar do que dizem as dissimuladas au- toridades britânicas, não existe uma in- vasão “calma e comedida”.
O gabinete de guerrade Israel esta- beleceu quatro objetivos para a “Opera- ção Espadas de Ferro”: destruir militar- mente o Hamas, eliminar a ameaça terro- rista em Gaza, resolver a crise dos reféns e defender as fronteiras do Estado e os ci- dadãos. Mas as autoridades admitem que ainda discutem o que virá depois. Dizem que uma ocupação renovada é impossível. Mas parece faltar uma estratégia de saí- da. Uma invasão “significará confrontar o Hamas no seu território e será provavel- mente um assunto prolongado e sangren- to”, alertou o Grupo de Crise Internacio- nal, independente. “Livrar Gaza de ma- neira sustentável de todas as manifesta- ções daquilo que os israelenses conside- ram terrorismo e que muitos palestinos chamam de resistência será impossível, se não houver uma ampla mudança política.”
Então, quem poderia governar Gaza, supondo que o Hamas seja de fato depos- to definitivamente? Um administrador nomeado pela ONU e apoiado por forças de manutenção da paz? Uma espécie de Alto Representante internacional, como na Bósnia? Sugere-se que o controle po- deria ser devolvido à Autoridade Palesti- na, destituída pelo Hamas em 2007. Mas a AP é fraca e mal-amada. Para começar, seu presidente, Mahmoud Abbas, teria de abrir caminho para novos líderes eleitos. Em todo caso, não está claro quanta influência os líderes ocidentais hesitan
tes podem exercer sobre qualquer acor- do para o pós-guerra. O apoio aparente- mente incondicional de Biden e Sunak a Israel os desqualifica como mediadores da paz. A Liga Árabe exige novamente a retomada de conversações para a cria- ção de um Estado palestino. Mais do que nunca, Israel não está escutando.
Biden cometeu três erros básicos no Oriente Médio desde 2021. Concentran- do-se nas questões internas e na China, tentou ignorar a região. Não é possível. Em segundo lugar, embarcou nos Acor- dos de Abraão de Donald Trump e na ca- ravana de normalização árabe-israelen- se. Fatalmente, esses acordos “históricos” tentaram contornar o conflito palestino. Terceiro: Biden não conseguiu reagir du- ramente quando Netanyahu, um grande fã de Trump, montou seu próprio golpe antidemocrático no estilo do Capitólio, aliou-se a fanáticos da extrema-direi- ta determinados a anexar a Cisjordânia e minou os esforços dos Estados Unidos para atenuar as tensões com o Irã. Biden ignorou-o, mas pouco mais que isso.
Essa geada derreteu forçosamente,
mas não porque o líder de Israel te- nha mudado de repente. Netanyahu lu- ta desesperadamente para sobreviver. Quando Biden desceu do Air Force One em Tel-Aviv na quarta-feira 18, foi aper- tar a mão de Netanyahu. Mas este o agar- rou num abraço de urso carente. Perigo- so, profundamente impopular, duas-ca- ras, tóxico – esse é Netanyahu hoje.
Não é exagero dizerque ele poderia arrastar Biden consigo. Após o choque inicial os ter reunido, os dois líderes es- tão novamente em caminhos divergen- tes. Longe de buscar uma desescalada, Netanyahu prevê uma “longa guerra”. Na verdade, parece que é o que ele quer. “Isto não é do interesse de ninguém, ex- ceto de Netanyahu, que, provavelmente, vê o fim de seu governo chegar com o tér- mino da próxima batalha com o Hamas”, comentou o analista norte-americano David Rothkopf. Um conflito prolongado, que inflija mais vítimas civis e maior ins- tabilidade regional, poderá afetar ainda mais profundamente os Estados Unidos. Biden, emanando empatia, limitado
por seus pontos cegos e por sua nature- za positiva, agora é o “dono” desta guer- ra. Se a situação se deteriorar ainda mais, não haverá como escapar. Ele tem uma longa guerra para travar, com a Rússia na Ucrânia. E potencialmente enfrenta outra, fria ou quente, com a China. Co- mo abutres a voar em círculos, Vladimir Putin e Xi Jinping, que se encontraram em Pequim, assistem tranquilamente.
Seja quem for o culpado, e certamente não é tudo culpa dele, esta catástrofe se de- senrola sob o comando de Biden. Os com- parsas de Trump e do Partido Republicano estão à espreita. Falta apenas um ano para a eleição presidencial nos Estados Unidos em 2024. É triste pensar que Netanyahu, que Biden tanto fez para salvar, estaria entre os que aplaudem a sua derrota.
ENQUANTO A POLÍCIA BRINCA DE GATO E RATO COM OS FREQUENTADORES DA CRACOLÂNDIA, OS CRIMES DISPARAM NA REGIÃO E ATIÇAM OS MILICIANOS
No rescaldo das violentas in- tervenções das forças de segurança para dispersar os frequentadores da Cra- colândia, os dependentes químicos passaram, nas últimas semanas, a reta- liar com arrastões em co- mércios e depredação de veículos, até mes- mo de viaturas policiais. A prefeitura e o governo do estado, sócios na cruzada re- pressiva, atribuem os ataques ao alegado êxito no combate ao narcotráfico, um in- cômodo para os líderes do crime organi- zado. Já os usuários de drogas, protago- nistas dos saques, dizem estar cansados de apanhar à toa, sem reação. Não impor- ta quem tem razão. Esse conflito perma- nente só aumenta a sensação de insegu- rança da população, acuada por uma on- da de violência jamais vista naquela área.
Enquanto a polícia brinca de gato e ra- to com os dependentes químicos, os cri- mes aumentaram de forma assustadora nos dois distritos policiais que cobrem a região. Desde a deflagração da Operação Caronte, em junho de 2021, os roubos tri- plicaram e os furtos cresceram 244% no perímetro do 3º DP, de Campos Elísios. Na área aos cuidados do 77º DP, de San- ta Cecília, os roubos tiveram alta de 89% e os furtos, 41,5%, segundo dados da Se- cretaria de Segurança Pública do estado, que divulga as ocorrências mensais de ca- da delegacia(gráficos às págs. 12 e 13).
Quem acompanha o problema de perto garante: a onda de assaltos não é obra dos frequentadores da Cracolândia, mas de quadrilhas especializadas em tomar ce- lulares e raspar as contas bancárias das vítimas pelos aplicativos do aparelho. Há tempos os moradores se queixam da atu- ação da temida gangue da bicicleta. A po- lícia paulista parece, porém, ocupada de- mais com a urgente tarefa de conduzir a procissão de dependentes envoltos em co- bertores de uma rua para outra. Não bas- tasse, milicianos passaram a assediar os comerciantes da região com a cobrança de uma “taxa de proteção”.
A prova cabal do fracasso da política de dispersão dos usuários, inaugurada por Gilberto Kassab em 2012 e replicada por sucessivos governos, foi a confissão feita pelo governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, na terça-feira 18. Ele ad- mitiu o que a prefeitura cogita há tempos, permitir a reconcentração dos usuários sob a ponte Governador Orestes Quércia, conhecida como Estaiadinha, no Bom Re- tiro. “Lá, eu consigo deixá-los um pouco mais afastados da área residencial e da área comercial. Vamos ver se a estratégia vai dar certo.” Após a repercussão negati- va, o prefeito Ricardo Nunes, do MDB, dis- se que houve um “mal-entendido”. O aten- dimento aos usuários será direcionado ao Bom Retiro, mas o fluxo “tem dinâmica própria”, não há como transferi-lo.
Trata-se de mais uma iniciativa fada- da ao fracasso, avalia Raquel Rolnik, pro- fessora da Faculdade de Arquitetura e Ur- banismo da USP. Desde os anos 1980, re- memora a urbanista, existem iniciativas do governo do estado e da prefeitura para abrir uma nova frente de expansão imo- biliária na região da Luz, o que não ocor- reu por uma série de fatores, a começar pela estrutura fundiária do local, bastan- te fragmentada. A presença de dependen- tes químicos, de pessoas em situação de rua e de trabalhadores empobrecidos, que viviam em pensões e cortiços, sem- pre foi vista como empecilho para o pro- jeto. Emerge, então, o conveniente discur- so da “guerra às drogas”, espécie de car- ta branca para a polícia agir à margem d lei na expulsão dos indesejáveis. “Mesmo com todo o aparato repressivo, a política de dispersão fracassou, só fragmentou os grupos de usuários, que depois voltam a se reagrupar”, observa Rolnik. “Agora, o go- vernador fala em levar essas pessoas pa- ra outro lugar, mas não com o objetivo de tratá-las. A ideia é varrer o problema para debaixo da ponte, literalmente.”
Quem circula pela região espanta-se com a quantidade de comércios fechados. Até mesmo as lojas da Rua Santa Ifigênia, tradicional ponto de comércio de eletrôni- cos, estão sucumbindo. “Quando os usuá- rios estavam concentrados, todo mundo sabia onde estavam, eventualmente sur- gia algum problema, mas nada compara- do com o que vivemos hoje. Essa horda de gente sendo levada para lá e para cá assusta as pessoas”, desabafa José RobertoCheda, dono de lojas de equipamentos de som des- de 1975. Segundo ele, o policiamento au- mentou, mas não intimida mais os bandi- dos. “Fui o primeiro lojista a contratar se- gurança particular, há mais de 30 anos.”
Aproveitando-se do clima de insegurança, milicianos pas- saram a competir com os serviços privados de segu- rança. Após uma denúncia da Controladoria-Geral do Município, o Ministério Público paulis- ta abriu uma investigação para apurar a conduta do guarda civil metropolitano Elisson Assis, apontado como chefe de uma milícia que vendia proteção a comer- ciantes. Outros seis agentes da corporação foram afastados de suas funções por sus- peita de envolvimento. Com a condição de ter a identidade preservada, um segu- rança particular confirmou a atuação dos concorrentes fardados. “Outro dia, quan- do aquele GCM caiu em flagrante, arman- do esquema de extorsão, a turma dele veio para cima de mim”, conta. “Tentaram me levar preso para dar um apavoro.”
Em um ponto do fluxo mais afastado, com poucos usuários, um deles aproxi- ma-se da repórter deCartaCapitalpor- que havia sido alertado sobre a presen- ça de “gente estranha”. “Aqui é perigoso, você está na elite docrack, onde estão as maiores pedras, os traficantes mais res- peitados, é melhor dar o fora”, ameaçou.
Depois do primeiro contato conturbado, topou uma conversa, longe da vista dos de- mais. Durante a caminhada pela Rua dos Gusmões, o rapaz cumprimentou vários funcionários de lojas. “Aquele ali é segu- rança, aquele lá é da polícia, ganha por fo- ra”, entrega um a um. “Esta guerra é inte- ressante para as polícias, cada qual quer dominar uma área e faturar”. Segundo ele, a “limpeza” custa caro aos proprie- tários, mas para o tráfico nada mudou.
“Agora, os traficantes só têm mais mulas.” Foi numa dessas aventuras que Letícia de Souza da Silva “caiu”. “Fui presa pas- sando dez pedras, mas a polícia queria mesmo era a traficante, que se safou”, ex- plica. Levada para o Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha, dois dias depois foi liberada via pagamento de fiança, e voltou para a Cracolândia, on- de vive há quase oito anos. Diferentemen- te de outros usuários, ela é avessa à con- vivência com o grupo. Prefere manter-se afastada, em ruas próximas das maiores concentrações. “Se estou sozinha, é sua- ve. Mas se tem mais dois ou três comigo, a polícia já vem dar enquadro. Como se eles não soubessem quem são os traficantes.” Enquanto Freitas silencia diante do fracasso da gestão da segurança pública no Centro de São Paulo, o prefeito Nunes parece redobrar a aposta na repressão.
Após ser rebaixado de posto na admi- nistração municipal, Alexis Vargas, en-
tão secretário de Projetos Estratégicos da prefeitura e responsável pela coorde- nação dos trabalhos na Cracolândia, pe- diu demissão. Em seu lugar, Nunes esca- lou o linha-dura Edsom Ortega, que che- gou a proibir a distribuição de marmitas a pessoas em situação de rua quando co- mandou a pasta de Segurança Urbana na gestão de Kassab.
Um ano atrás, Vargas defendia com afinco a dispersão dos usuários da Cra- colândia para favorecer o “tratamento humanitário prestado pela prefeitura”. O crime organizado, argumentou em ar- tigo publicado na Folha de S.Paulo, não co- mandava apenas a distribuição de drogas na região, também estava por trás de estu- pros e homicídios cometidos no fluxo. Se- gundo o secretário, a abordagem em gru- pos menores seria mais segura para pro- fissionais da saúde e da assistência social.
Por outro lado, para dispersar os usu- ários, policiais e agentes da GCM sempre primaram pelo uso excessivo da força, ob- serva o psiquiatra Leon Garcia, que atua no Centro de Atenção Psicossocial da Sé, com um público semelhante ao da Cra- colândia. “No ano passado, um homem foi baleado e morto em meio às ações de dis- persão. Há muitos relatos e registros em vídeo de ações violentas da polícia, inclu- sive contra ativistas que atuam com pro- gramas de redução de danos”, lembra. “Essa atuação repressiva esgarça todos os vínculos que aqueles indivíduos pode- riam ter com políticas públicas do Estado. Eles ficam desconfiados, arredios. É um contrassenso. Essas operações ocorrem há mais de dez anos e nunca deram certo.”
De fato, a Operação Caronte – nome emprestado do bar- queiro de Hades, que segun- do a mitologia grega carrega- va a alma dos mortos – é niti- damente inspirada na fracas- sada Operação Sufoco, levada a cabo por Kassab em 2012. Para forçar os frequen- tadores da Cracolândia a aceitarem a in- ternação, era necessário impor “dor e so- frimento”, dizia o então prefeito, sedu- zido com a ideia de “revitalizar” o bair- ro da Luz. À época, a Cracolândia esta- va circunscrita ao quarteirão compreen- dido entre a Rua Helvétia e as alamedas Dino Bueno e Cleveland. Somente a pri- meira parte da promessa foi cumprida: a Defensoria Pública colecionou denún- cias de abusos cometidos pelos policiais. Mas as violentas operações só espalha- ram o “fluxo” pela região central da cida- de, e depois os usuários se reagruparam.
Ao assumir a prefeitura dois anos de- pois, o petista Fernando Haddad lançou o programa De Braços Abertos, com uma perspectiva radicalmente distinta. Inspi- rada em exitosas experiências internacio- nais dohousing first, política pública que prevê a oferta de moradia digna em primei- ro lugar, a iniciativa alocou os dependen- tes químicos em quartos de hotéis e pen- sões no Centro, além de ofertar vagas de trabalho em serviços de zeladoria, como varrição de ruas. Durou pouco. Haddad não conseguiu se reeleger e, em 2017, o tu- cano João Doria retomou a política de dis- persão dos usuários, com a demolição das antigas pensões que os abrigavam. À épo ca, o prefeito chegou a celebrar o “fim da Cracolândia”, que ao cabo se reagrupou na Praça Princesa Isabel e voltou a aglomerar milhares de dependentes químicos.
“Os críticos dizem: ‘Ah, mas o De Bra- ços Abertos também não resolveu nada’. Na verdade, ele não teve tempo de resol- ver. Para implantar um programa desses, você demora sete, oito anos”, pondera o psiquiatra Dartiu Xavier, professor e pes- quisador da Unifesp, que trabalha há mais de 40 anos com dependentes químicos. “À época, vi pessoas interromperem o uso de crackou reduzirem muito o consumo só por ter uma vaga em pensão e uma ativi- dade laboral. Imagine a força disso: um dependente abandonar o vício sem pas- sar por uma consulta médica.” Mas nem tudo eram flores no programa de Haddad.
Parte das vagas em ho- téis e pensões, descobriu- -se mais tarde, foi subloca- da pelos dependentes quí- micos. Além disso, constatou-se a pre- sença do tráfico de drogas e da prostitui- ção em algumas unidades, lembra Clarice Madruga, pesquisadora da Unifesp e co- ordenadora do Levantamento das Cenas de Uso das Capitais, o Lecuca. “Ohousing first, como qualquer outro programa de moradia para dependentes, tem como contrapartida a adesão ao tratamento. Em vários países são realizados testes toxico- lógicos para identificar eventuais recaí- das e pensar em estratégias para evitá-las.
Esse monitoramento é importante para orientar o trabalho terapêutico e moti- vacional. Já o De Braços Abertos não exi- gia qualquer compromisso dos usuários.” Garcia, que à época chefiava a Secre- taria de Políticas sobre Drogas do Minis- tério da Justiça, observa que houve uma evolução dos hotéis sociais ao longo da gestão de Haddad. “No último ano, todos eles tinham uma equipe técnica. Um de- les, o de maior número de vagas, conta- va até com um GCM à paisana na porta- ria para impedir a entrada do tráfico e da prostituição”, diz. “A única condição colo- cada aos moradores era a visita periódica de um agente de saúde e um agente social.”
Diante do cenário de guerra no Cen- tro da cidade, Nunes passou a vender as “internações compulsórias” como solu- ção. Pura bravata, não compete a políti- cos definir quem deve ou não ser interna- do. Tanto a internação involuntária, a pe- dido de um familiar, quanto a internação compulsória, por determinação judicial, dependem do aval de um médico, a quem cabe avaliar a real necessidade da medi- da. Além disso, a própria prefeitura infor- mou, em resposta aos questionamentos de CartaCapital, que foram feitos 910 enca- minhamentos para internação voluntária nos últimos 12 meses. Ou seja, a política de impor “dor e sofrimento” aos frequenta- dores da Cracolândia parece ter dado al- gum resultado, com dependentes procu- rando tratamento por decisão própria.
A administração municipal não soube, porém, informar quantos desses pacien- tes receberam alta, quantos voltaram a viver nas ruas e, mais importante, quan- tos retornaram ao vício. A razão é simples: ninguém monitora isso. Segundo espe- cialistas, nem sequer é possível rastrear os prontuários, pois muitos pacientes es- tão indocumentados e usam nomes falsos.
O cerne da questão é que as internações são pouco efetivas, observa Xavier. “Exis- tem vários estudos sobre esse tema, em lu- gares diferentes, com populações diferen- tes, é até difícil compará-los. Mas todos indicam um porcentual de recaída altís- simo, superior a 90%, em até três meses após a alta. Em algumas pesquisas, essa taxa chegou a 95%. No caso docrack, não há sequer uma diferença significativa do êxito de internações voluntárias ou força- das”, observa. “Por que isso ocorre? O indi- víduo é retirado do ambiente dele, coloca- do numa clínica ou hospital psiquiátrico. Enquanto estiver lá, não fará uso da dro- ga, até por estar em cárcere médico. Mas, ao receber alta, se retornar para a situa- ção de miséria e exclusão social em que vi- via, dificilmente ele vai se manter sóbrio.”
Madruga acrescenta que o acolhimen- to em comunidades terapêuticas não pode ser confundido com internação, até por- que elas não são reconhecidas como equi- pamentos de saúde, e sim de acolhimento social, que oferece um local de moradia de longa permanência, com foco na reinser- ção social após a fase inicial de tratamen- to, que seria a desintoxicação. “A política atual de regulação exige que esses equi- pamentos recebam pacientes sem condi- ções clínicas de saúde que exijam monito- ramento médico, e sugere a manutenção do acompanhamento pela unidade básica de saúde ou Caps do seu território.”
Essas instituições continuam, porém, malvistas por parte dos profissionais da saúde após fiscalizações do Conselho Fe- deral de Psicologia apontarem toda a sorte de abusos, incluindo trabalhos forçados, privação de liberdade, contenção química dos internos e agressões físicas. “Uma re- solução da Anvisa, a RDC 29, de 2011, esta- beleceu parâmetros para a atuação des
equipamentos. No estado de São Paulo, a maior parte deles segue rigorosamente a lei, a ponto de reivindicar a definição de ‘Comunidades Terapêuticas Legalmente Constituídas’, para se distinguir daquelas que promovem esses horrores. Parece-me uma alternativa interessante, desde que o Poder Público as fiscalize com rigor.” Oenrosco é que boa parte de- sas comunidades terapêuti- cas está em bairros afasta- dos ou em cidades do interior. “Felizmente, agora, a prefeitu- ra passou a investir em hotéis sociais na região central. Não faz mesmo sentido empurrar essas pessoas para a pe- riferia. Elas relutam em sair para longe, já estão vinculados ao território”, diz Garcia.
Enquanto Nunes celebra o fim das grandes aglomerações da Cracolândia, indicador que flutua ao sabor das opera- ções policiais na região, Madruga diz ser mais conveniente analisar a taxa de in- fluxo, isto é, de novos frequentadores da cena de uso. “Em 2017, após aquela mega- operação do Doria, o número de usuários despencou de cerca de 2 mil para 200. À época, especulou-se que aquele seria o nú- cleo duro, que jamais iria abandonar a re- gião, mas fomos a campo e constatamos que a maioria deles era de novos frequen- tadores.” De acordo com o Lecuca, a ta- xa de influxo, que chegou a 46% em 2016, caiu para 20% no ano passado. “Ainda as- sim, é um porcentual altíssimo. Se o fluxo, hoje, tem cerca de mil usuários, pode ga- nhar 200 novos frequentadores até o fim do ano. Precisamos reforçar o trabalho de prevenção em todos os níveis, tanto para evitar o consumo de adolescentes, que au- menta as chances que a pessoa desenvol- va transtornos aditivos mais graves, quan- to prevenção secundária, que seria a in- tervenção precoce em casos em que já se identifica o abuso ou a dependência den- tro das UBSs e evita que agrave a ponto de levar uma pessoa a mudar para uma cena de uso. Não faz sentido esperar o agrava- mento do quadro clínico para intervir.”