ESTHER SOLANO
Ah, Ciro, Ciro, como é um espe-
táculo triste ver alguém se sui-
cidar politicamente ao vivo e
em cores. Mais triste ainda é essa mor -
te ser evidente para quem olha de fora,
atônito ao necroespetáculo, e não con -
siga ser percebida pelo próprio defunto.
Sempre considerei Ciro um sujeito in-
teligente, ou, talvez deveria dizer, um su-
jeito de conhecimento. A inteligência é
um poliedro, tem aquela inteligência que
acumula conhecimento, aquela afetiva,
aquela relacional, tantas. São inteligên-
cias das mais variadas morfologias, das
mais variadas sensibilidades, mas todas
relevantes. Possuir conhecimento sem
uma inteligência afetiva e relacional que
organize socialmente esses saberes, que
dê consciência do lugar no mundo, do es-
paço, do momento, da própria significân-
cia ou insignificância, enfim, sem uma
inteligência estratégica, sem uma inte-
ligência dialógica, uma inteligência polí-
tica, é uma assimetria que na vida públi-
ca custa caro. Talvez o poliedro de inte-
ligências de Ciro, em algum momento de
sua biografia, tenha sido mais equilibra-
do, mais proporcional, refletia luzes de
vários ângulos. Não mais. Agora, quando
olho para eles, vejo muitos vácuos, mui-
tas sombras, muitos cinzas.
Escuto Ciro falando e escuto um ho-
mem ressentido. E não é que o ressenti-
mento por si só seja intrinsecamente ma-
lévolo e abjeto, mas, quando o ressenti-
mento vira uma das forças motrizes da vi-
da, quando vira oxigênio, alimento, moti-
vação... aí lascou. Ressentido por que, eu
me pergunto? Ressentido com quem? Pa-
rece-me que há duas origens do ressen-
timento, Lula e nós, o povo. Ciristas po-
derão tentar me contradizer, mas um ho-
mem é escravo de suas palavras e, nossa,
como Ciro é escravo das suas. Quando fa-
la de Bolsonaro, fala com desprezo, como
de fato se fala a respeito de um ser abomi-
nável, mas, quando fala de Lula, fala com
ressentimento, fala do ponto da cicatriz,
fala do lugar da mágoa, uma mágoa que se
faz ostensiva, que aparece como um pa-
vão ao esticar as penas. É evidente. Não
sei se tentou esconder ou se ensina com
orgulho, mas a cicatriz sempre aparece.
Lula roubou o grande papel que a
história lhe reservava. Essa é a cicatriz.
Obviamente, ele vai negar, os ciristas ne-
garão, mas a cicatriz fala por ele, porque a
cicatriz de Ciro é força motriz. E, amigos,
cá entre nós, a gente sabe muito bem que o
discurso da corrupção perdeu a originali-
dade. Não só Lula roubou de Ciro seu des-
tino messiânico, como o povo continua a
lhe roubar esse destino. Pois só Ciro tem a
resposta, só Ciro pode tirar o País do caos,
só Ciro tem um plano, porque, como dis-
se no embate com Gregório Duvivier:
“Se Deus me der a ventura de proteger o
Brasil”. Temo que Deus esteja em outra,
Ciro. Nem estava com Bolsonaro, nem
parece estar com você. Eu o encontro no
padre Júlio Lancellotti, cuidador de outro
tipo de cicatrizes, umas muito diferentes
das suas. Mas é isso. A chance de umBrasil
“fodástico” está na nossa frente e o brasi-
leiro não enxerga. Como o povo é burro e
prefere Lula?
Ah, Cirão das massas... na real, tirem o
“das massas”, porque pega um pouco mal
se autodenominar das massas com 7% de
intenções de voto. Ah, mas pesquisa é só a
radiografia do momento, não dá para cra-
var nada. Não dá para cravar tudo, mas
um pouquinho dá, né? E o que dá para cra-
var mesmo é que 7% não é a massa e que
48% é bastante mais massa.
Algo que detesto é a arrogância mani-
festa, escancarada. A arrogância daquele
que não sabe debater a não ser diminuindo
seu interlocutor, pois ele sabe mais, estu-
dou nos EUA, ou o outro é jovem, inexpe-
riente, ou comediante... Talvez porque, co-
mo mulher, eu tenha me deparado tantas
e tantas vezes com homens que, em vez de
falar, pontificavam, cuspiam dogmas de
suas bocas, tentavam me vilipendiar in-
telectualmente. Talvez seja porque, como
mulher, veja tantas e tantas colegas bri-
lhantes a falar baixinho, sem se apropriar
de seu brilhantismo e se apagando na fren-
te do ego masculino. E isso dói, como dói.
Então, Ciro, se você for de fato o envia-
do de Deus, por que não consegue con-
vencer o povo? Se Bolsonaro só oferece
terror e Lula só oferece corrupção, de-
veria ser muito mais fácil ganhar a con-
fiança dos eleitores, não é? Por que suas
“massas” não passam de 7% a 48%? O po-
vo é tão burro assim?
Cansada, cansada das carteiradas dos
homens brancos. Cansada de ver o res-
sentimento se impor. Cansada desse an-
tipetismo mórbido. No embate com Gre-
gório Duvivier, Ciro disse uma frase que
não perdoo, “bolsonaristas e lulistas são
a mesma coisa”.
Nesse momento Ciro expulsou a pu-
rulência de sua cicatriz pela boca. E, no
fundo, entendi o que ele queria falar. São
a mesma coisa porque são “as massas dos
outros”, porque a dele só chega a 7%.
A gente se vê em outubro, Ciro. Desta
vez vai para onde, Dubai? •
CARTA CAPITAL
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