Sylvia Colombo
Conheci Dom Phillips em 2007, quando chegou ao Brasil, com o plano de ficar no país um ano, talvez dois, de se bancar fazendo frilas, apaixonado por música e futebol e com seu livro sobre a cena das raves dos anos 1990, "Superstar DJs Here We Go!" quase saindo do forno. Nos falamos pela primeira vez quando ambos havíamos chegado escandalosamente cedo para um almoço festivo na casa de uma amiga em comum. Ele, por pontualidade britânica, eu, certamente, por confusão mesmo. O papo foi na calçada, sob um sol forte. E a conversa que começou naquela tarde de sábado em São Paulo só chegou ao fim, de fato, na última semana.
Neste período, não deixamos de conversar e de nos encontrar, mesmo depois de passarmos a viver em diferentes cidades. No primeiro papo, ele se apresentou como ex-editor da Mixmag querendo dar um tempo da Inglaterra: "Não aguento viver num país em que chove tanto que às vezes chove chuva fria direto na sua cara, horizontalmente" (Dom acompanhava essas frases com um gestual único, impossível não compreender nem sentir gotejos na sua própria cara). Foi a primeira vez em que Dom me fez rir. Eu não tinha ideia, mas o papo com Dom duraria anos, assim como as piadas e o interesse mútuo pelos planos de um do outro nunca mais pararam. Até a nossa última comunicação. Ele sempre mandava fotos com olhar original e com legendas inteligentes e irônicas sobre tudo o que via em suas viagens. A que recebi por último foi a tal imagem do avião com arco-íris enviada por Whats App quando ele anunciava mais um retorno à Amazônia, que era para ser uma de suas últimas viagens antes de se dedicar completamente à redação do livro.
Muito se tem politizado o assunto, e é normal e urgente que isso seja feito. Muito também se tem rotulado Dom como um ativista do ambiente. Aí discordo um pouco. Dom era um amante da natureza, tinha um interesse legítimo pelo futuro da Amazônia e dedicou, em seus últimos anos, esforços para isso. Mas seus objetivos eram jornalísticos, a ideia era retratar a Amazônia por meio das vozes de todos os que habitam aquele lugar, e formular soluções, de modo claro e acessível. Jamais sua ideia havia sido escrever um panfleto. Dom nunca foi um ativista, sempre um atinado jornalista que podia sempre se aprofundar um pouco mais que os demais, se de fato estivesse interessado no assunto. E o assunto podia ser de naturezas distintas, desde o último disco do Criolo até o impacto das obras para as Olimpíadas no Rio.
Muito se tem discutido sobre o impacto que sua e outras mortes de indigenistas, ambientalistas estão causando na imagem do Brasil no mundo. Eu tenho concordado com a maioria dos textos que fazem as relações entre a tragédia que ceifou a vida de Dom com a atual política brasileira. Esses problemas crônicos da Amazônia existiam antes, o garimpo e a pesca ilegal, entre eles. Mas fica claro que o atual governo ou deu uma carta branca ou pelo menos faz vista grossa para os abusos das máfias que ali operam.
A morte de Dom e de Bruno Pereira deixam um crime que já sabíamos que existia ainda mais escancarado. A pergunta que suas mortes nos deixam é, nós vamos permitir que as coisas sigam como estão?
Mas não posso deixar de ressaltar, dentro de todo esse redemoinho de dor que estamos vivendo nas últimas semanas, o valor da amizade. Esse luxo que temos a oportunidade de amealhar em nossas vidas. Sempre imaginamos que nossos amigos sempre estarão ali para nós. E estão. Até que não mais. A morte de Dom me fez pensar em como, muitas vezes, convivemos com (algumas) pessoas maravilhosas e que tomamos isso como algo banal, já conquistado. Até que elas se vão. Embora, como diz a iluminada Alessandra, mulher de Dom, deixem um pouco delas em cada um de nós. E é por isso que aqui prefiro fazer um elogio às amizades inspiradoras. Porque isso é o que Dom é para mim (e digo no presente porque me imagino comentando muitas coisas do dia-a-dia com ele também daqui para a frente).
Nestes 15 anos em que viveu no Brasil, Dom mudou muito, movido sempre por sua imparável curiosidade. Nos primeiros anos, em São Paulo, ia a tudo o que lhe parecia interessante para entender a cidade, rodas de samba, shows de rap na periferia, botecos, festivais de música e inumeráveis jogos do Corinthians, do qual se tornou fã, para a minha alegria. Em 2009, quando o jogador Ronaldo voltou da Europa para jogar no alvinegro, Dom se deixou levar pelo entusiasmo das tardes de sábado no Pacaembu. Escrevia sobre o tema, buscava entrevistas com os jogadores para meios britânicos. Fui com ele a vários jogos. Um dia, eu estava meio deprê em casa e ele me convenceu a sair e ir com ele ver um Corinthians e São Paulo, fora de São Paulo, e em que o nosso Timão foi arrasado. Eu, ainda mais para baixo do que quando saí, dirigia de volta na estrada tentando explicar a Dom o significado da palavra "roubada". "We went to a roubada today, you know that, no?", eu dizia. E ele ria. Daí paramos num boteco nordestino, o papo fluiu para o lado da infinidade de quitutes da casa, cujos nomes ele conhecia melhor que eu, e o apetite e a curiosidade de Dom com relação a todos. Continuamos rindo.
Trata-se do tipo de amigo que mesmo as mais simples anedotas carregam uma lição. E hoje, diante dessa tragédia, penso na melhor lição que recebi de Dom. Embora pareça banal, a de ter curiosidade por tudo e ao mesmo tempo ser capaz de rir de tudo, até de você mesmo, tenha sido a mais importante delas.
Dom esteve lutando para se fixar no Brasil nos primeiros tempos. A vida de um free-lancer estrangeiro no país não é fácil. Mas ele sempre encontrava um modo de ironizar como faziam sua vida impossível entre cartórios e entidades do Estado para regularizar sua vida no Brasil. "Me deram um papel, me disseram cuida papel (sic), traz papel na próxima assinado, fui buscar cara que assina papel, não tava, voltei dias depois, achei cara, papel assinado, chego lá, não precisava o papel". Era algo como tirar um CPF, ou qualquer coisa do gênero, mas a gente se divertia com como ele via a burocracia dos trâmites brasileiros uma coisa do outro mundo sem precisar aprofundar muito sua crítica, apenas pelo modo como ele relatava a saga.
Uma vez, em 2008, eu estava morando em Buenos Aires, pra variar, estudando para meu mestrado. E Dom foi me visitar. A princípio, disse que era muito confuso isso de estar tão aplicado nos estudos de português e eu de repente apresentava para ele um idioma e um mundo diferente, em espanhol. Um inglês tentando falar espanhol com sotaque brasileiro causava curiosidade em garçons e amigos. Não havia muito como entendê-lo. OK, eu ia de intérprete. Mas o Dom, freelancer, precisava fazer alguma matéria para pagar a passagem do avião. Vendeu um par de ideias para os meios musicais para os quais colaborava, e a que emplacou foi uma sobre "emos" na América Latina. "Emos", para quem não se lembra, eram aqueles adolescentes góticos que se deprimiam em praças e cemitérios. E lá fomos nós dois, buscar "emos" em Buenos Aires. Nos indicaram a praça Rodríguez Peña, onde entrevistamos adolescentes pálidos com olheiras forçadas de maquiagem e caras de tristes. Dom perguntava "Why are you so depressed?" (acho que só eu notava a ironia), e o garoto de 13 anos, magrinho, respondia que a vida não fazia sentido. A gente segurava a gargalhada. Depois de umas três amostras, saímos para beber e rir das modas adolescentes.
Dom também quis ir ao tango. Eu numas de só mostrar para ele o que era um milonga. Mas, já no salão, Dom me pergunta, "mas nós vamos dançar, né?" Bom, depois de umas doses e espero que sem nenhuma câmara ligada, o Clube Armenia viu uma brasileira desajeitada e um inglês que achava que estava arrasando na pista se atropelando e rindo nossos pulmões para fora. No dia seguinte, eu mal acordava e Dom já dizia, "hoje tem jogo do Racing, me leva?". Ele queria uma experiência porteña intensa e em poucos dias.
Esse mesmo afinco e interesse por tudo o que o rodeava eram coisas com as quais a gente se acostumava. Se era engraçado por um lado, era inspirador por outro. Tipo, eu vivo aqui há anos e nunca fui a esse bairro, a esse bar, e, ao final, acabei indo porque Dom havia desbravado antes.
No Rio, seu amadurecimento sobre o Brasil aumentou. Cobrir as preparações da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 e seu impacto o fizeram pela primeira vez opinar de modo mais forte sobre política, como que sentindo que alguma coisa estava se diluindo no Brasil.
Lembro-me que, em seu casamento com a querida Alessandra Sampaio, mais ou menos nessa época, uma deliciosa festa armada pelos noivos, no Rio, vários correspondentes iam avisando que iam embora, que depois desses eventos o Brasil perderia interesse, Dom estava decidido a ficar, depois de ter encontrado "a mulher certa para mim", como me disse naquela mesma noite, sobre a Alê. Era meio fácil concluir que, de tão apaixonado, o Dom passaria seus últimos anos no Brasil. Duro era se dar conta que os últimos anos já estavam sendo aqueles. Havia um clima de alegria naquela noite em Santa Tereza, uma noite de encontros e reencontros, impossível de ser replicado.
Se São Paulo deu a Dom a ideia de uma cidade culturalmente fervilhante, imensa, com muito a descobrir, o Rio lhe deu a natureza, o Stand Up Paddle, a vida do lado de fora e longe das telas. Deu-lhe também um bronzeado que manteve para sempre.
Depois veio certo desencanto com o jornalismo diário, e a obsessão com as questões climáticas crescendo a partir de algumas matérias que tinha escrito para o Guardian. Recuperei esses dias um papo que tivemos sobre possibilidades de trabalho, antes da bolsa que tomou para o livro da Amazônia.
E ele me dizia: "preciso me reinventar, tem vaga numa agência de notícias aqui no Rio, mas não quero mais "hard news", quero algo mais consistente. Vou tomar as férias para pensar". As férias, em geral, eram no Reino Unido, quando fazia caminhadas "sempre no meio da lama", descrevia, com os irmãos Sian e Gareth.
Uma vez, voltou de uma dessas e anunciou, vou fazer um livro para fazer a diferença sobre a Amazônia, para propor soluções. Um ano antes de ir a campo, Dom estudou minuciosamente, se preparou. Não se meteu na floresta de modo desavisado ou "aventuresco", como Bolsonaro afirmou, nem foi com uma visão maniqueísta de "garimpeiro mau x indígena bom". Seu imenso preparo, com leituras, entrevistas, faziam com que chegasse aí com a cabeça e o coração abertos para ouvir a todos, mas com uma imensa bagagem teórica já processada. O mesmo Bolsonaro zombou também do preparo físico de Dom. Não deve tê-lo visto nunca. Dom nadava, andava de bike, surfava, fazia musculação, trekking, tinha um pulmão de ferro, que nem a covid tinha conseguido debilitar.
A gente queria que tivesse sido mais tempo. Mas, nestes 15 anos de Brasil, Dom amadureceu e teve uma vida intensa e cercado de amigos e com muito amor.
O Brasil transformou o Dom. Dom transformou seus amigos. E, talvez, seu legado ainda ajude a transformar o Brasil.
FOLHA
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