Por Ana Flávia Gussen.
Afastado da Superintendên-
cia da Polícia Federal do
Amazonas depois de co-
mandar as operações An-
droanthus e Akuanduba,
responsáveis por apre -
ender o maior volume de
madeira ilegal da história
e que culminaram na queda do ex-mi-
nistro do Meio Ambiente Ricardo Sal-
les, o delegado Alexandre Saraiva relata
nesta entrevista à repórter Ana Flávia
Gussen os bastidores de outra ação po-
licial, a Korubo, em parceria com o indige-
nista Bruno Pereira, desaparecido na flo-
resta há mais de uma semana. A Korubo
foi um dos motivos que levaram à exone-
ração de Pereira da coordenação dos ín-
dios isolados da Funai pelo então minis-
tro Sergio Moro. “As organizações crimi-
nosas têm boa parte da administração pú-
blica no bolso”, afirma o delegado.
CartaCapital: O senhor chegou a tra-
balhar com Bruno Pereira. Qual a rele-
vância do trabalho do indigenista?
Alexandre Saraiva: Fiz operações co-
mo superintendente da Polícia Federal
no Amazonas ao lado de Bruno. Uma de-
las, em 2019, das mais bem-sucedidas, foi
a Korubo, quando destruímos 60 balsas
de garimpo ilegal que atuavam próximo a
terras de índios isolados no Vale do Java-
ri. À época, usamos tecnologia de satélites
para mapear os garimpeiros e a alta cúpu-
la do Ibama não queria a operação, que só
foi adiante por decisão judicial. Um mês
depois, o Bruno foi exonerado da coorde-
nação dos índios isolados.
CC: Em algum momento vocês chega-
ram a ser pressionados pelo governo ou
sofrer algum tipo de coerção ou ameaça?
AS: Lembro de uma conversa sobre essa
operação em Brasilia. O Bruno também
estava. Um agente público, posteriormen-
te alvo da Akuanduba (contra a exporta-
ção ilegal de madeira que mirou Ricar-
do Salles e o atual presidente do Ibama,
Eduardo Bim), disse que a operação era
um absurdo, pois destruíamos as balsas
dos garimpeiros. Olha o absurdo. A balsa
é o instrumento do crime, no local do cri-
me. E eu falei em reuniões com o Coman-
do Militar da Amazônia: vamos destruir,
pois, se eu não o fizer, é prevaricação.
CC: Como funcionava o trabalho de
C A R T A C A P I T A L — D E J U N H O D E 1 9
R E P R O D U Ç Ã O T V E F E L I P E W E R N E C K I B A M A
Bruno e qual a sua importância para o
combate ao crime organizado e defesa
dos povos isolados?
AS: O Bruno sempre foi um servidor pú-
blico com excelente diálogo com as comu-
nidades ribeirinhas e indígenas, mas tam-
bém com a Polícia Federal e o Ministério
Público. A sua relação com a PF começou
antes da minha gestão, continuou durante
e depois que saí. Ele era como um funil por
onde chegavam muitas informações. Re-
almente, sabia o que acontece ali. O Bru-
no sempre foi mais que um colaborador.
Era um articulador de primeira ordem.
CC: Como atuam as organiza -
ções criminosas no Vale do Javari?
AS: No Vale do Javari, aliás, na Amazônia
toda, as organizações criminosas atuam
onde tem dinheiro fácil. Tem pesca ilegal
de pirarucu, criação de tartaruga, extra-
ção ilegal de madeira, tudo isso dá dinheiro
fácil. Eles criam uma holding. Virou uma
região dominada pelo crime e totalmen-
te sem controle, exatamente pela ausên-
cia de um guardião: o Estado. O guardião
pode ser um satélite, podem ser os fiscais
da Funai, uma câmera ou um posto. O im-
portante é o que chamo de efeito da Lei Se-
ca: a probabilidade de alguém cair é bai-
xa, mas o fato de ter uma blitz reduz em
80% as chances de alguém beber e dirigir.
CC: O presidente Jair Bolsonaro ma-
nifestou-se publicamente contra as
medidas tomadas pelas instituições
de fiscalização e defesa, como a des-
truição de máquinas do garimpo ilegal.
Ele prometeu aos próprios garimpeiros
que atuaria contra isso. O que acha?
AS: Quando afundamos as 60 balsas na
Korubo, teve “gente da alta cúpula” do
governo que ficou com esse discurso e
até falava em “dó do pequeno garimpei-
ro”. Cada balsa custa de 100 mil a 150 mil
reais, no mínimo. Isso, sem contar que
quem opera e trabalha nisso muitas ve-
zes está em condição análoga à escravi-
dão. Então, quem realmente ganha di-
nheiro não está ali. É gente que de certa
forma tem ligação até mesmo com a al-
ta cúpula de alguns governos estaduais
e que há anos é eleita para o Congresso.
Essas organizações criminosas têm boa
parte da administração pública no bolso.
CC: Como avalia a tentativa do pre-
sidente da República e do presidente
da Funai de desqualificar o trabalho de
Bruno e Dom?
AS: Quando se tem um presidente da
Funai que defende o garimpo ilegal, a
sociedade civil se vê obrigada a tomar
a frente. O vácuo deixado pelo Estado é
ocupado pelo crime.
CC: Qual é o cerne dessa antipolítica
ambiental implementada pelo governo?
AS: Quando se é governo, há o poder de
indicar um determinado perfil para ocu-
par funções. É uma prerrogativa do pre-
sidente. Pode escolher gente comprome-
tida com a defesa do meio ambiente ou
outros perfis, voltados para crimes am-
bientais. É na hora de montar um time
que se definem as prioridades. Dou ou-
tro exemplo de prioridade. No meu últi-
mo ano na superintendência, foram en-
viados seis delegados federais para o Rio
de Janeiro e dois para o Amazonas.
CC: O governo Bolsonaro foi marca-
do por espetaculosas operações de ga-
rantia da lei e da ordem na Amazônia
que parecem não ter funcionado, ape-
sar dos investimentos de 500 milhões
de reais. Por que deu em nada?
AS: Não bastava colocar um tanto de mi-
litares do Exército, mas de aliar a força à
inteligência, a partir de ações coordena-
das com a Polícia Federal e o Ibama. Na
época da GLO, eles nunca nos pergunta-
ram nada. Existe a doutrina das Forças
Armadas: os militares vivem à espera do
inimigo externo, que nunca chega. Exis-
tem, no entanto, insurgentes criminosos
que destroem o Estado por dentro.
CC: Em nota, o Comando Militar da
Amazônia disse estar ciente do desa-
parecimento de Pereira e Phillips, mas
que “aguardava o acionamento por par-
te do alto escalão”. Má vontade?
AS: É uma linha de comando muito len-
ta, muito vagarosa. Certa vez, eu estava
com o pessoal dos direitos humanos em
uma comunidade Munduruku, sob ata-
que. Eu precisava do Exército, um gene-
ral empenhado em ajudar, mas a linha de
comando estava totalmente agarrada.
CC: Dá para conter ou diminuir es -
sa escalada criminosa na Amazônia?
AS: Existem saídas. Satélites de imagem
podem mapear uma determinada área.
Depois, basta mandar a equipe e ela des-
trói as máquinas, no caso do garimpo, por
exemplo. Fizemos a operação Xawara
(termo indígena para as doenças causa-
das pela fumaça exalada na queima do
mercúrio, metal poluente usado nos ga-
rimpos de ouro) e a PF conseguiu apreen-
der dez aviões, suspendeu a habilitação de
oito pilotos e destruiu pistas abertas em
clareiras na floresta. Os garimpeiros que
exploravam terras indígenas Ianomâmi
foram asfixiados, eram de 3 mil a 5 mil
e saíram quase todos. Na época, tínha-
mos uma base no Rio Uraricuera, da Fu-
nai, Ibama, PF e Exército, que foi fecha-
da depois. Hoje existem mais de 20 mil
garimpeiros lá. Isso tem nome: descaso.
CC: Se existem formas e elas deram
certo em algum momento, por que na -
da é feito?
AS: Olha, do ponto de vista operacio -
nal é possível, mas do ponto de vista bu-
rocrático é complicado, pois começam
a enviar ofícios ao Ministro da Justiça,
como fizeram alguns senadores, co-
mo Jorginho Mello (PL-SC) e Telmário
Mota (Pros-RR), depois que eu denunciei
os empresários, políticos na Androanthus
e Akuanduba, por exemplo. O PCC nunca
derrubou um superintendente da Polícia
Federal, essa organização criminosa sim.
CC: O senhor já foi ameaçado? Que
conselho daria para quem se preocupa
com a Amazônia?
AS: Fui alvo e foram encontradas fo -
tos minhas em operações com um alto
na cabeça escrito “a ser abatido”. Eu saí
de lá por ter sido afastado. Se tenho al-
go a aconselhar? Não comprem ipê, ma-
çaranduba, não comprem ouro ilegal. A
sociedade também pode ajudar a mudar
essa realidade. Parar de consumir tam-
bém é um meio de salvar a Amazônia. •
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