Vagner Fernandes, especial para O GLOBO
Desde que assumiu a gestão do município do Rio de Janeiro, em 2017, o prefeito Marcelo Crivella vive uma relação de conflito com os trabalhadores da Cultura. Um dos pontos da discórdia tem sido, recorrentemente, o mecanismo de incentivo fiscal que assegura, desde 2013, o percentual de 1% da arrecadação do Imposto Sobre Serviços (ISS) para o fomento de projetos culturais na cidade. Batizado Lei do ISS, o instrumento possibilita que empresas contribuintes renunciem a parte do pagamento do imposto, até o limite de 20% do montante devido, destinando-a ao patrocínio de manifestações artísticas. Ou que essas lancem mão de 5% do total previsto na lei para ser executado no ano seguinte.
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Em 29 de abril, Crivella pôs em prática a ideia de tirar da Cultura a verba oriunda do ISS, ao conseguir aprovar um projeto de lei (PL), por ele próprio enviado à Câmara dos Vereadores, com o qual pode desvincular as receitas das legislações municipais. Votado em caráter emergencial, o PL converteu-se na Lei 6.737/2020, que deu liberdade para o prefeito agir, usando os recursos vinculados de todos os órgãos municipais da forma como lhe convier. A justificativa foi a necessidade de transferência de dinheiro para o combate à pandemia da Covid-19. No mesmo dia 29, Crivella baixou um decreto regulamentando a lei, com apenas três artigos, da qual vetou duas emendas propostas pelos vereadores, essenciais para evitar que o montante desvinculado seja usado para outro fim.
'Cheque em branco'
Para a cultura da cidade, é um tiro certeiro, pois o dinheiro do ISS é o único que há atualmente para o fomento às artes.
— Demos um cheque em branco ao Crivella, sem atentarmos para o fato de que ele poderia usá-lo sem critérios. Foi o que fez, punindo, sobretudo, a Cultura — diz o vereador Rafael Aloísio de Freitas (Cidadania), que apresentou um projeto de decreto legislativo (PDL), pedindo revogação do artigo que permite ao prefeito tirar da Cultura o montante do ISS.
A verba é significativa. Neste 2020, estão previstos R$ 54,7 milhões. Até 31 de maio, R$ 43,9 milhões já haviam sido recolhidos pelas empresas cadastradas. Desse total, somente R$ 5 milhões foram efetivamente pagos aos produtores contemplados. Os R$ 38,9 milhões de diferença, com a aprovação da lei e a promulgação do decreto, podem ser transferidos para a Saúde. Diante do quadro de instabilidade fiscal e de incertezas jurídicas, é provável que os recolhimentos futuros, que configuram R$ 10,8 milhões relativos ao período de junho a dezembro, não cheguem aos produtores. O prefeito, hoje, poderia retirar da Cultura um total de R$ 49,7 milhões, referentes ao montante já recolhido e ao que ainda será.
Especialistas divergem
Ex-chefe da Casa Civil de Crivella, o vereador Paulo Messina (MDB), autor da Lei do ISS, sinaliza que o prefeito comete duas infrações. Primeiro por não distinguir que o dinheiro de renúncia fiscal não se vincula às receitas. E segundo por tentar retroagir atos anteriores à vigência de lei e decreto novos.
— À medida que o município abre mão de parte do imposto, autorizando-o a investir na Cultura, o dinheiro deixa de ser da prefeitura. Por outro lado, ainda que fosse permitido haver desvínculo, o que não é o caso, isso só poderia ser feito a partir de 29 de abril, data de publicação da Lei 6.737/2020. Todo o montante recolhido antes teria de ir para a Cultura — diz Messina.
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Atualmente desafeto de Crivella, Messina suspeita que o prefeito, sob o respaldo de uma lei aprovada às pressas, comete pedalada fiscal:
— O município está com os cofres vazios, e a lei busca recolher dinheiro de todos os fundos. Essa atitude nos leva a crer que, no caso da Cultura, vão usar esse recurso do ISS para no futuro, havendo caixa, recolocarem no lugar. O nome disso é pedalada fiscal. Vou ingressar com uma denúncia no Tribunal de Contas do Município — informa Messina.
A análise do vereador quanto à natureza do recurso é defendida pelo professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Sergio André Rocha Gomes da Silva, também membro da Diretoria da Associação Brasileira de Direito Tributário .
— A Lei do ISS estabelece uma renúncia de receita e não uma vinculação. A Lei 6.737/2020 e o decreto não valem para a Cultura, portanto. Essa carta branca dada pelo Legislativo municipal ao Crivella fere os princípios da legalidade, moralidade administrativa e transparência — opina Sergio André.
Cultura e Fazenda na contramão
Adolpho Konder, secretário municipal de Cultura, assegura que a pasta vem buscando criar soluções para o setor a fim de minimizar os impactos negativos provocados pela crise sanitária. Ele diz que o diálogo com a secretaria de Fazenda tem sido constante no sentido de quitar as pendências com os contemplados.
— Conseguimos liberar R$ 5 milhões do ISS. A secretaria também está conversando, permanentemente, com patrocinadores e produtores — garante o secretário, que conta neste 2020 com um orçamento de R$ 115 milhões para a pasta, o menor desde 2011.
O otimismo de Konder, no entanto, caminha na contramão da perspectiva apresentada pela secretária municipal de Fazenda, Rosemary Macedo. A imprevisibilidade da pandemia tem levado o município, segundo ela, a adotar medidas drásticas em função da queda na arrecadação. E em seu entendimento, contrariando as análises do vereador Paulo Messina e do professor Sergio André Rocha, os recursos do ISS destinados à cultura são, sim, resultantes de receitas vinculadas à legislação municipal.
— A Lei 6.737/2020 suspende todas as vinculações, tendo em vista a necessidade de maior autonomia do Poder Executivo para manter os serviços essenciais à população — enfatiza Rosemary. — Os recursos do ISS serão liberados de acordo com a devida entrada nos cofres do Tesouro.
Ela não esclarece, no entanto, como foram aplicados ou de que forma vem administrando os R$ 38,9 milhões que ainda teria em caixa do ISS da Cultura, pois pagou somente R$ 5 milhões dos R$ 43,9 milhões já recolhidos.
Carlos Alexandre Azevedo Campos, doutor em Direito Público pela Uerj, onde ministra aulas de Direito Financeiro e Tributário, faz coro à tese da secretária municipal de Fazenda:
— Ao conceder benefício fiscal em contrapartida aos incentivos dados por contribuintes a projetos culturais, a Lei do ISS acaba promovendo autêntica vinculação prévia de receita do imposto. O próprio STF (Supremo Tribunal Federal) tem esse entendimento.
Neste imbróglio jurídico, enquanto medidas efetivas de socorro aos trabalhadores da Cultura não forem apresentadas ou formalizadas pela prefeitura, artistas, produtores e técnicos não têm dúvidas quanto ao subtexto contido na lei e no decreto municipal do pre
feito Marcelo Crivella: “Vocês que lutem!”
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