August 6, 2020

Achava que ódio não existia no vocabulário brasileiro', diz jornalista francês que cobre cena artística mundial há 30 anos

 

 O jornalista francês Hélios Molina volta à vida normal após quarentena em Barcelona Foto: Divulgação / Regina Del Papa

 

Hélios Molina, que frequenta o Brasil desde os anos 1970, lança documentário sobre o impacto de um governo conservador na arte brasileira: 'O país vive um terremoto na cultura’ 

 

 O jornalista e escritor francês Hélios Molina, de 67 anos, achou o Brasil mudado quando esteve aqui, em janeiro. Com os olhos de quem frequenta o país desde 1977, é casado com uma paulista (a produtora cultural Regina Del Papa) e acompanha com interesse as notícias sobre o lado de cá, ele conta ter sentido o ódio no ar.

O que confirmou logo depois, ao entrevistar 30 artistas e pensadores para o documentário “Alô! Tudo bem?”, sobre o impacto de um governo conservador na cultura brasileira. O músico BNegão, o humorista Gregório Duvivier e a professora de design Claudia Bolshaw são alguns dos nomes que refletem sobre o assunto. Hélios, que cobre a cena cultural mundial há 30 anos — passou pelo “Le Figaro” e pelas revistas “Détour en France”, de viagem, e “Aladim”, de arte —, finalizou o documentário durante sua quarentena, em Barcelona.

O filme — que está na primeira edição on-line do Festival de Cinema Brasileiro em Paris, em cartaz na plataforma Jangada — pode ser visto também no site e no canal do YouTube da revista cultural  “Micmag Magazine”, criada por Hélios em 2011.

Hélios Molina roda documentário sobre o impacto de um governo ultraconservador na cultura brasileira Foto: Regina Del Papa
Hélios Molina roda documentário sobre o impacto de um governo ultraconservador na cultura brasileira Foto: Regina Del Papa

 

Você vem ao Brasil desde os anos 1970. Ao vir rodar o documentário este ano, que país encontrou? E que Rio?

Em janeiro, estive no Rio e pude sentir a amplitude da mudança no país. Como a ideia do filme era focar na cultura, percebi que o Brasil está vivendo um “terremoto” na cultura. As pessoas têm medo de falar sobre a situação política. A liberdade de expressão foi atingida, há tensão no ar. O Rio está mais triste.

O que percebeu das pessoas?

Dor. Instalou-se no Brasil um sentimento de ódio que eu não conhecia, achava que essa palavra não existia no vocabulário brasileiro. Uma parte da população foi em direção a ideias retrógradas, a uma certa vulgaridade. As fake news tiveram papel devastador numa sociedade fragilizada. Mas vi que ainda perdura a poesia, que a música e o humor continuam tendo um papel fundamental e salvador.

No filme, você diz que o Brasil degringola em direção à “incultura”. Por quê?

Artistas dizem que não têm mais apoio público ou privado para a criação. Salas de cinema independentes não se atrevem a mostrar filmes de autor. Existe uma real censura. O poder da religião tem uma influência nefasta sobre as programações culturais em geral. O que podemos esperar de um país que suprime o Ministério da Cultura?

O que pode resultar disso?

Haverá menos abertura de horizontes, menos senso crítico e mais submissão. A cultura cria espíritos livres, sem ela esse patrimônio forte do Brasil pode desaparecer.

Como os franceses percebem esse momento do Brasil?

Há uma consternação evidente. A corrupção política, a violência, a impunidade e o poder da religião são elementos assustadores para o francês. Somos muito ligados à cultura. Ao constatarmos esses ataques permanentes, criou-se um mal-estar que está afetando o turismo.

Surpreendeu-se quando o país elegeu um presidente conservador?

Não podia imaginar um retrocesso tão grande. Descobri ideias reacionárias intensas, egoísmo exacerbante. Fui surpreendido também pelas poucas reações populares contra essa política destruidora.

Como um neto e filho de espanhóis que lutaram na Guerra Civil espanhola, e contra o fascismo, sente-se diante do avanço dessas tendências no mundo atual?

Não esperava que, após o movimento libertário dos anos 1970, o mundo viveria novamente esse pesadelo das extremas-direitas. Minha família sofreu graves consequências sob a ditadura franquista, mortes e exílio. Graças a ela, aprendi o sentido da palavra resistência. Através dela, me sinto mais forte e menos só.

Você vê particularidades de como esse processo se desenrola no Brasil?

No Brasil existe um extremismo tropical (risos). É fora do controle, a Justiça parece impotente. Em tantos outros países, discursos políticos de caráter xenófobos ou racistas são fortemente condenados. As raízes desse extremismo ainda são da época da escravidão e da colonização. Por sorte, com perdão da palavra, ele representa 30%.

A defesa da democracia está associada à ocupação do espaço público. Como isso se dá na pandemia?

Os brasileiros já poderiam ter ocupado esse espaço público para se manifestarem ha muito tempo! O confinamento existe há três meses, e o problema aí é muito mais antigo. No isolamento, as pessoas devem se unir pelas redes sociais. Há artistas, pensadores, filósofos, ativistas, brasileiros em geral abrindo debates e criando movimentos.

Após lockdown, a França saiu do isolamento. Como vê a diferença entre o seu país e o Brasil no combate à doença?

É um abismo. O governo francês fez anúncios para acalmar o medo popular. Mesmo assim, houve uma gestão desastrosa em relação ao uso das máscaras. Também não soube frear as mortes nas casas de repouso. No Brasil, não há nenhuma resposta política e sanitária frente à pandemia.

É otimista sobre o Brasil?

A força vem do povo e nunca dos dirigentes. As novas gerações não têm memória suficiente para combater. Por isso, a ideia de fazer o filme como referência histórica para trazer um pouco de luz.

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