Renata Mariz
‘‘O estado é grave e não podemos perder tempo”, ouviu Ana Paula de Souza do médico que entubou sua mãe em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro. O profissional alertou que Jalmira Ferreira de Souza, de 70 anos, precisava de uma unidade de terapia intensiva, que o pedido de transferência já havia sido feito, mas com poucas perspectivas de aparecerem leitos. “Se tiver algum conhecido, algum contato, corra atrás”, advertiu, no início da noite da sexta-feira 15.
Mais nova do casal de filhos de dona Jalmira, Ana Paula, de 38 anos, levou o conselho às últimas consequências. Em menos de 24 horas, tinha em mãos uma decisão favorável da Justiça ordenando o estado ou o município a fazer a “imediata transferência” da paciente para uma UTI. Mesmo com a remoção, por indicação de profissionais da rede e não pela fila de espera formal, o estado de saúde de Jalmira tinha se agravado. Era tarde demais. “Falei para a moça do fórum de Justiça: é ganhar e não levar. A vida não vai esperar fila”, disse Ana Paula, que enterrou a mãe na noite da segunda-feira 18, uma das quase 20 mil vítimas fatais da Covid-19 no Brasil.
Ao tentar encontrar explicações para a perda, a filha fala da “confusão” que viu no Sistema Único de Saúde (SUS), que é o responsável pelo leito que faltou a sua mãe. A fila — e a demora para sair dela — está relacionada à instabilidade de gestão que acomete o Ministério da Saúde desde o início da pandemia, e que provocou represamento ou lentidão nas habilitações de leitos. O Palácio do Planalto tem se mostrado em desalinho com as orientações mundiais de combate ao vírus, e que foram adotadas pela pasta desde o início. A falta de unidade no discurso e as interferências do presidente Jair Bolsonaro resultaram em duas trocas de comando do ministério em menos de 30 dias e num completo desalento na gestão. Como consequência, funcionalidades e obrigações da pasta foram alteradas. Por último, uma nova determinação de uso da cloroquina em pacientes com Covid-19 foi decretada por Bolsonaro num momento em que não há titular no ministério, apenas um interino, o general Eduardo Pazuello, especializado em logística.
Gestores de saúde do SUS e servidores da Saúde ouvidos por ÉPOCA apontaram como a principal consequência prática das mudanças ocorridas o represamento da habilitação de UTIs para Covid-19. É preciso que o Ministério habilite os leitos para que a diária de R$ 1.600 seja repassada pelo governo federal aos estados e municípios. Sem esse credenciamento, esses entes veem sua capacidade de criar vagas diminuída por não terem recursos próprios para mantê-las funcionando. Somente na última semana, quando o sistema de saúde já se tornara insustentável em muitos centros urbanos do país, é que boa parte dos pedidos de habilitação feitos ainda na gestão de Luiz Henrique Mandetta foi atendida, apontam gestores. Do total de 6.142 leitos de UTI credenciados pelo ministério para tratar pacientes do novo coronavírus, quase 40% foram habilitados só a partir da segunda-feira 18. A habilitação dura 90 dias.
São Paulo, o estado mais rico do país, que prevê o colapso do sistema de saúde em três semanas, expôs a cobrança em entrevista à imprensa na terça-feira 19. Geraldo Reple Sobrinho, presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems-SP), fez um “apelo ao ministério” para que 1.800 leitos fossem habilitados. Na última semana, 600 vagas haviam sido liberadas. São os pedidos que estavam represados no Ministério da Saúde, apontam os gestores.
“Como resultado do caos na pasta, houve atraso na habilitação de UTIs para Covid-19. Sem essa habilitação, estados e municípios que não tenham recursos próprios para arcar com os leitos não podem usá-los”
Embora qualquer transição de equipe atrase processos em andamento, a chegada do oncologista Nelson Teich, que substituiu Mandetta por 28 dias até pedir demissão do cargo, levou a uma interrupção nas ações de assistência de saúde. Além da demora nos leitos, a elaboração de um plano para montagem e financiamento de hospitais de campanha foi outro tema que ficou no limbo. “Havia uma discussão avançada para termos diretrizes para os hospitais de campanha, uma pactuação em curso. Mas secretários não foram nomeados, houve trocas, e tudo isso acabou emperrando o tema dentro do ministério”, afirmou Willames Freire, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
A instância na qual se discutiam essas e outras ações concretas para o atendimento de pacientes com Covid-19 foi extinta na gestão Teich. Trata-se do chamado “gabinete de crise”, que consistia numa reunião diária com o ministro, secretários da pasta e representantes de estados e municípios, que segue inexistente também durante a interinidade do general Pazuello. Nesse encontro aparentemente burocrático, travas eram desfeitas, cenários eram traçados, prioridades eram criadas e pedidos vindos das secretarias estaduais e municipais eram analisados pelo ministério. “Lá atrás, já fazíamos prospecção, por exemplo, sobre o estado do Amazonas, as dificuldades, o que podia ocorrer. Nada disso que acontece agora é novidade, tudo foi debatido, buscando-se soluções, exatamente no gabinete de crise”, afirmou Freire.
No lugar das reuniões diárias, secretários de Saúde conseguiram quatro conversas com Teich em sua meteórica passagem pela pasta. Pressionado, o então ministro havia se comprometido a retomar o “gabinete de crise” para acelerar ações como a habilitação de leitos. A primeira reunião estava marcada para a sexta-feira da semana passada, mas, antes de o encontro ocorrer, Teich se demitiu. Pazuello não manteve o compromisso.
É no canal direto com o governo federal que se podem repassar, de forma rápida, necessidades inesperadas, explicaram secretários. Um dos exemplos é a falta de swab, um cotonete comprido usado para coletar amostras de secreção das narinas e da garganta dos pacientes para fazer o exame de Covid-19. A compra de rotina desse item sempre foi de responsabilidade de estados e municípios, mas, com a pandemia, a aquisição se tornou tarefa hercúlea, já que falta o material em todo o mundo. A pasta foi informada da carência e prometeu 45,1 milhões de swabs, dos quais havia repassado apenas cerca de 100 mil até a primeira semana deste mês.
Em outro sinal de comunicação falha, Teich chegou a anunciar à imprensa um programa com novas orientações sobre a política de isolamento, mas teve de recuar ao ser avisado de que os secretários não endossariam tal proposta, que contemplava, inclusive, maneiras de reduzir a quarentena em determinados locais. Na ocasião, foi dito ao ministro que, em pleno crescimento da curva de casos e com sistemas de saúde colapsando, falar em redução de isolamento, ainda que de forma hipotética, criaria uma confusão na cabeça da população. “Se a interlocução não tivesse sido quebrada, o ministro poderia ter poupado seu tempo e o dos assessores”, disse um gestor que pediu para não ser identificado.
Como o SUS é um sistema administrado tanto pelo governo federal quanto por estados e municípios, em suas respectivas instâncias e com seus respectivos limites orçamentários, esses entes têm autonomia para agir dentro da rede assistencial. Prova disso é que governos locais vêm comprando respiradores, equipamentos de proteção individual, testes e contratando leitos de UTI da rede privada. Mas o papel do governo federal de coordenação e liderança é essencial, apontam gestores, sobretudo num período de escassez de suprimentos, em que o volume de uma compra eleva o poder de barganha de um comprador. “O apoio do Ministério da Saúde, com seu poder de compra, de negociação, no cenário da pandemia, é fundamental para tentarmos garantir os insumos necessários”, explicou Geraldo Medeiros, secretário de Saúde da Paraíba.
O orçamento robusto da União, que operacionaliza os repasses a estados e municípios via SUS, e a capacidade técnica para adoção de diretrizes e protocolos são outras características que evidenciam por que governos locais dependem do Ministério da Saúde. Desde a definição de regras sobre como notificar um caso de Covid-19 em qualquer parte do país, quando o vírus ainda era uma novidade em laboratórios e hospitais, até especificações sobre uso de máscara de pano pela população, todos os temas relacionados à pandemia passam pela condução direta ou indireta da pasta.
A capacidade de negociar em grande volume a importação de insumos e compras nacionais levou o ministério a fazer aquisições de itens relacionados ao combate ao novo coronavírus desde fevereiro. As entregas, porém, estão aquém das promessas ainda da gestão Mandetta. A previsão inicial anunciada era de 40 milhões de máscaras por semana, totalizando 240 milhões. Até agora, foram distribuídos 30 milhões de unidades, segundo dados da pasta. Da mesma forma, o ministério prometeu alugar 2 mil leitos para distribuir a estados em dificuldades, mas só 540 foram viabilizados. Os respiradores são capítulo à parte, com 861 entregues, menos da metade do prometido até maio, de 2.600. No total, o governo afirma que vai distribuir 15 mil ventiladores pulmonares adquiridos da indústria nacional.
A demora na aquisição é atribuída mais ao desabastecimento do mercado do que às trocas no Ministério da Saúde. Gestores dizem que as promessas já não vinham sendo cumpridas a contento na gestão Mandetta. A diferença é que, antes, podiam cobrar e obter informações por meio do canal direto mantido. Desde a troca de ministro, tiveram de apelar muitas vezes para o expediente do ofício — que demora, no mínimo, 24 horas para passar pela área de protocolo de um ministério para, só então, ser direcionado ao gabinete ministerial ou dos secretários. Uma burocracia incompatível com a urgência que a crise exige.
“O gabinete de crise criado por Mandetta, onde aconteciam reuniões diárias com representantes de estados e municípios para tratar das demandas mais urgentes, foi extinto por Teich, e não sinal de que seja retomado por Pazuello”
Para além das dificuldades técnicas, o contexto político também cria ruídos desnecessários num momento em que esforços deveriam ser concentrados para vencer a Covid-19. A determinação do uso indiscriminado da cloroquina, que esgotou a paciência de Mandetta e forçou a saída de Teich da pasta, tem se mostrado o principal ponto de conflito na comunicação do ministério com a população. É desconhecida a origem da obsessão de Bolsonaro pelo medicamento, cuja eficácia no tratamento da Covid-19 carece de evidências. O pouco que se sabe foi dito por Mandetta, após sua saída da pasta. “Ele quer um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia. A pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema. Como é barato e o Brasil produz, por ser medicamento da malária... Só que malária costuma dar em mais jovens”, disse, em entrevista ao Correio Braziliense.
À Globonews, Mandetta citou o desconforto ao ser pressionado pelo ex-chefe a chancelar a adoção da substância. “No final de um dia de reunião de conselho ministerial, me pediram para entrar numa sala e estavam lá um médico anestesista e uma médica imunologista, que estavam com a redação de um provável ou futuro, ou alguma coisa do gênero, decreto presidencial. E a ideia que eles tinham era de alterar a bula do medicamento na Anvisa, colocando na bula indicação para Covid”, afirmou Mandetta. “O próprio presidente da Anvisa se assustou com aquele caminho, disse que não poderia concordar. Eu simplesmente disse que aquilo não era uma coisa séria e que eu não iria continuar naquilo”, prosseguiu o ex-ministro.
“Discordâncias sobre o uso da cloroquina derrubaram dois ministros. Sem discutir, Pazuello, chefe interino da pasta, assinou decreto liberando o uso, enquanto o laboratório das Forças Armadas está fabricando o medicamento”
Já Nelson Teich se mostrou mais aberto a avaliar a viabilidade do uso do medicamento. Conforme a pressão de Bolsonaro escalou, ele fez consultas a hospitais e médicos sobre os resultados obtidos em tratamentos com a substância. Em uma ocasião, ao visitar um hospital de campanha no Rio de Janeiro, Teich perguntou pessoalmente aos médicos do local quais tratamentos eram utilizados e quais eram seus resultados, inclusive a cloroquina. Como em nenhum dos casos o retorno foi o esperado pelo presidente, o médico se negou a empreender qualquer medida de adoção oficial. Isso e o decreto que inseria academias e salões de beleza no rol de serviços essenciais culminaram em sua partida da pasta.
Seu secretário executivo, general Pazuello, agora interinamente no cargo, assinou na quarta-feira 20 o decreto de liberação da cloroquina para todo tipo de tratamento da Covid-19. Pazuello não é médico. Na esteira da saída de Teich do ministério, a pasta — que tem o maior orçamento da Esplanada, de R$ 125 bilhões, e é bastante cobiçada pelo centrão — ganhou coloração verde-oliva. Além de Pazuello, entraram na Saúde mais de 15 militares para funções de chefia. Nenhum deles com experiência na área.
As Forças Armadas têm desempenhado função-chave na crise que assola a Saúde. Enquanto, institucionalmente, o comandante-geral do Exército, Edson Pujol, tem buscado transmitir a imagem de que a caserna está no front de combate à pandemia em locais aonde o Estado não chega, Bolsonaro tem agido nas frestas disponíveis para organizar as Forças a seu dispor. Ordenar a fabricação da cloroquina pelo Laboratório das Forças Armadas foi um de seus atos. A designação de Pazuello para a pasta, que convocou outros militares para a missão, também tem as digitais do presidente.
Um dos nomes indicados por Pazuello, o major Angelo Martins Denicoli, novo diretor de monitoramento e avaliação do SUS, chegou a publicar, em suas redes sociais, informações falsas sobre o uso da substância, segundo o blog da jornalista Constança Rezende, do UOL. O major divulgou, no dia 8 de abril, que a FDA, órgão que regulamenta o uso de substâncias químicas nos Estados Unidos, havia aprovado o uso da hidroxicloroquina para o tratamento de todos os casos do coronavírus e que a Organização Mundial da Saúde era “genocida”. O major ainda publicou ofensas a ministros do STF e a políticos de oposição ao governo e afirmou que o “grande perigo” dos dias atuais não é o nazismo, e sim o jornalismo.
Outro militar nomeado, Giovani Camarão, futuro coordenador de Finanças do Fundo Nacional de Saúde, participou de uma festa com pelo menos 17 pessoas em abril quando o isolamento já estava em vigor. A informação foi publicada pela Folha de S.Paulo. Pazuello nomeou de uma vez nove subtenentes, majores, tenentes-coronéis, um capitão e um coronel para cargos de chefia na pasta. No ministério, servidores de carreira veem com preocupação a falta de experiência dos nomeados. Há relatos de que os militares não conhecem a gestão da saúde pública e esperam que tudo seja feito “de cima para baixo”, conforme a hierarquia, sem considerar que, na pasta, as decisões são pactuadas entre governo, estados e municípios. Contudo, o desalento no setor é tão grande que o simples fato de haver alguém a quem recorrer em cargos-chave é melhor do que nada, para alguns gestores públicos que têm de lidar com sistemas em colapso e centenas de mortos em um dia. Foi o que disse Alberto Beltrame, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). “É fundamental que a nova administração retome a gestão compartilhada da crise, interrompida pela instabilidade no ministério. Com essa interlocução recuperada, poderemos tomar ações mais rapidamente em meio à pandemia.”
Com Natália Portinari
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