Diante da realidade surreal trazida pelo novo coronavírus, histórias de opressão perdem o apelo e dão lugar a narrativas de idealização total
Bolívar Torres
A ideia de que estamos vivendo uma trama de Black mirror, a
série inglesa distópica que satiriza as consequências nefastas da
tecnologia, vem há algum tempo se espalhando na internet. Virou até meme
nas redes sociais. Citada pelos usuários para comentar um noticiário
cada vez mais sombrio e insólito, a frase “Worst Black mirror episode ever” (“Pior episódio de Black mirror”) traduz o medo diante de uma realidade que já parece ter superado a ficção.
Perguntado recentemente sobre uma possível volta da série, cuja última temporada foi exibida em 2019, o produtor e roteirista Charlie Brooker frustrou expectativas. “O mundo provavelmente não tem apetite por histórias sobre uma sociedade desmoronando no momento”, respondeu. É possível que a febre por distopia, que levou clássicos como 1984, de George Orwell, e O conto da aia, de Margaret Atwood, de volta à lista de mais vendidos e produziu inúmeras novas obras do gênero, tenha perdido força. Exausto pela Covid-19, o público talvez deseje uma ficção menos próxima das dificuldades atuais.
“Antes mesmo da pandemia, já começava um cansaço da ficção científica com as distopias”, disse Carlos Orsi, escritor brasileiro voltado para esse gênero. “Vejo um reconhecimento geral de que a distopia bateu num beco sem saída, mais ou menos como, décadas antes, havia-se reconhecido que as utopias eram chatas e, a seu modo, também becos sem saída.”
Orsi vê a ficção científica mais “de ponta” se voltando para temas com viés mais otimistas. Entre os subgêneros em voga, ele destaca o afrofuturismo, que especula futuros ou realidades alternativas inspirados na cultura africana (como a Wakanda do filme Pantera Negra), e o solarpunk, uma tentativa de imaginar cenários em que a tecnologia tem uma base sustentável e a sociedade superou modelos predatórios.
O solarpunk é uma resposta esperançosa ao sombrio cyberpunk, movimento popularizado nos anos 1980 cujas tramas giram em torno de uma tecnologia cada vez mais invasiva e perigosa, com os computadores vigiando e ditando nossa vida. Um bom cartão de visitas da ficção otimista no Brasil é a coletânea Solarpunk, organizada pelo escritor Gerson Lodi-Ribeiro. Nos contos do livro, os autores imaginam sociedades que atingiram um modo de produção sustentável e igualitário. Há cenários em que humanos aprenderam a fazer fotossíntese e em que a energia é gerada a partir de tatuagens feitas por nanodispositivos.
Desde o início da atual crise sanitária, em março, pensadores de diversas áreas ventilaram a ideia de que o vírus representava uma oportunidade. Intelectuais que até pouco tempo atrás se mostravam pessimistas quanto ao futuro do mundo, como o geógrafo David Harvey ou o filósofo Slavoj Žižek, sugerem agora que a pandemia trouxe novos elementos. Não apenas ela força e acelera mudanças econômicas, políticas e sociais, como nos torna mais abertos a novos estilos de vida.
As especulações utópicas de subgêneros como o solarpunk estão em sintonia com o momento em que o mundo pensa o pós-Covid-19. “Acho que tem uma abertura muito grande para esse tipo de ficção”, disse Lodi-Ribeiro. “Hoje, as narrativas que imaginam um futuro otimista são mais plausíveis. Porque, se piorar mais do que já está, o mundo acaba e não tem algo parecido com a humanidade. É um pouco como a própria pandemia: a gente imagina que vai piorar antes de melhorar. Mas tem de melhorar.”
Pouco antes da pandemia, Lodi-Ribeiro havia começado a escrever um livro distópico e teve dificuldades de prosseguir. “Difícil arranjar clima”, admitiu.
O escritor Fábio Fernandes lembrou que até Atwood era reticente em chamar seu Conto da aia de distopia. Para a autora canadense, tudo que acontecia ali já tinha um pé na realidade — e os terrores especulados poderiam muito bem ter ressonância no futuro. Não deu outra: publicado originalmente em 1985, o livro voltou à lista de mais vendidos mais de 30 anos depois e virou símbolo feminista em um momento em que muitas mulheres temem perder parte dos direitos conquistados.
O público atual teme ainda mais viver na República de Gileade, a teonomia cristã militar imaginada por Atwood.
“As distopias são os chamados cautionary tales, as histórias que nos alertam para os problemas. Muitas delas viram realidade, justamente porque nunca escutamos”, disse Fernandes. “Gosto do que elas apontam, mas me pergunto... Elas realmente são necessárias neste momento?” Em meio à pandemia, o escritor aposta suas fichas no otimismo: “A ficção distópica é o desabafo. A utópica é propor soluções”.
Mas nem sempre as propostas apontadas pelos fãs de utopia querem ser viáveis ou possíveis. “Escrevo ficção também para tornar realidade o mundo que desejo, sem necessariamente acreditar que esse mundo um dia pode ser real”, disse o escritor Fábio Kabral, que criou uma série de livros em torno de Ketu Três, uma grande metrópole afrofuturista em que os avanços tecnológicos andam lado a lado com a preservação da natureza e onde o preconceito não existe.
Em épocas de angústias, como na depressão americana após a crise de 1929, as ficções costumam abraçar o escapismo, lembrou o designer gráfico e escritor Octavio Aragão. A Hollywood da década de 1930, por exemplo, foi prolífica em musicais e sapateados feitos para distrair o público de seus problemas. “Meu receio é o efeito anestésico”, disse Aragão. “Se tivermos uma leva de histórias utópicas com futuros positivos, não estaríamos vendando nossos olhos coletivos, assim como nos musicais dos anos 1930?”, questionou.
Todo escritor utópico depara com um dilema: em um mundo perfeito, não há conflito. E sem conflito, dirão dez entre dez professores de literatura, não há drama. Mas, como costuma acontecer na vida real, as sociedades “perfeitas” dos livros nem sempre são o que parecem. Nas utopias imaginadas pelos escritores, casos de espionagem, roubo de tecnologia e manipulações políticas estão sempre prontos para quebrar a ordem. Não raro, máscaras caem. “Existe uma brincadeira na ficção especulativa que diz: sua utopia será sempre a distopia de uma outra pessoa”, disse Lodi-Ribeiro.
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