August 30, 2020

'Amor de mãe': diretor artístico revela bastidores de retomada das gravações da novela

 José Luiz Villamarim dirige Nanda Costa numa das cenas de "Amor de mãe", nas gravações guiadas pelos rígidos protocolos de segurança impostos pela pandemia de Covid-19 Foto: TV Globo / Divulgação

José Luiz Villamarim

Chego aos Estúdios Globo ao meio-dia. A sensação é de vazio. Equipes reduzidas. Antes da Covid-19, tínhamos até 60 pessoas por dia no set. Hoje, são 20, 25. Sigo solitário. Quando saio do carro, já há tomada de temperatura para entrar na primeira portaria do MG4, o estúdio onde a novela “Amor de mãe” é gravada. Dentro da estratégia do novo protocolo, há diferentes entradas para atores, produção, equipe que faz a higienização. É tudo planejado para evitar encontros e aglomerações. As reuniões que aconteciam nos estúdios, agora são feitas, pela manhã, via Teams ou Zoom, depois de reler as cenas que vamos filmar.


O protocolo divide o espaço em três: azul, por onde circulam mais pessoas, e é todo mundo de máscara o tempo todo; amarelo, onde colocamos as roupas de proteção (aquele macacão branco, além da máscara), por onde circulam a equipe e também seguranças e profissionais que limpam o lugar; e a área vermelha, que são os camarins e o estúdio. Onde há ator é área vermelha, porque eles precisam tirar a máscara e, assim, é necessário reforçar os cuidados e reduzir ainda mais o número de pessoas.


Na área amarela, visto minha roupa de proteção, higienizo meus objetos pessoais para colocar na sacola do protocolo. Levo telefone, escova de dentes, iPad, porque não tem mais papel com o roteiro no estúdio. É um ritual. Aí, guardo a bolsa num escaninho individual e vou comer em um restaurante com mesas separadas por dois metros de distância e onde parece que o dia não muda, porque as pessoas estão sempre do mesmo jeito, com o macacão branco, uma sensação estranhíssima. Almoço uma comida que agora parece aquelas de avião: em porções pré-determinadas e já embaladas; os talheres, no ziplock.

Música no estúdio

“Amor de mãe” é uma novela realista, então eu queria evitar efeitos de pós-produção, como a rotoscopia (técnica que permite filmar atores num local e recortá-los para inserir em outro cenário) ou o chroma key (em que atores podem ser filmados separadamente num fundo verde e depois unidos numa cena de beijo, por exemplo). Além de ficar muito falso, e não ter a ver com a pegada da novela, essa pós-produção demora muito.

Então, após pesquisar e consultar especialistas (como Alberto Chebabo, professor da UFRJ e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia), decidimos usar divisórias de acrílico nas gravações. Desse jeito, os atores se aproximam de verdade, mas sem que haja contato nem troca de “perdigotos”. Funciona como um escudo. Sem falar que... cinco segundos de uma cena rodada assim precisam de 45 minutos de pós-produção para apagar as bordas do acrílico. Se usássemos rotoscopia, por exemplo, levaríamos 48 horas. Há mais truques. Um é usar uma lente fechada para dar a impressão de que se está mais próximo. Outro é fazer os atores se cruzarem, mas só falarem o texto quando já estiverem distantes.


Regina Casé e Thiago Martins, separados por um acrílico, durante as gravações de "Amor de mãe" Foto: TV Globo / Divulgação
Regina Casé e Thiago Martins, separados por um acrílico, durante as gravações de "Amor de mãe" Foto: TV Globo / Divulgação

Em “Amor de mãe”, trabalhamos com a câmera dentro do cenário, o que ajuda o espectador a se sentir mais próximo, mas é um complicador na situação atual. Então, o Walter Carvalho e o Philippe Barcinski (diretores da novela) vieram com a solução de usar acrílico nas câmeras, como essas máscaras tipo face shield, protegendo quem filma e quem é filmado, já que os atores ficam muitas vezes sem máscara. Também há um fiscal de protocolo, vendo se os atores passam álcool em gel nas mãos sempre que tocam alguma coisa, antes que levem as mãos ao rosto. O álcool virou uma espécie de TOC.

As gravações da novela pararam em 14 de março, eu estive no estúdio pela última vez seis dias depois. Segui trabalhando, junto com a Manuela Dias (autora da trama), e com a equipe durante esse tempo todo, pesquisando caminhos, planejando a volta, buscando soluções. Voltamos ao estúdio no dia 10 de agosto, fazendo testes, entendendo como seria.


No dia 14, filmei a primeira cena, com Regina Casé, na casa da Lurdes. Também botamos a pandemia na novela, o que ajuda na realização. Há muitas cenas com máscara. E, durante os ensaios, todo mundo usa máscara. Eu evito me aproximar, o que foi difícil, porque gosto de pegar no ator, falar pertinho. A Regina também tem isso. Agora, não pego mais. Gosto de colocar música no estúdio, é um jeito de trazer mais emoção. Uso música como método de trabalho, como parte do processo. Desde o laboratório, a preparação do elenco. E aí, quando começamos a filmar, a música traz aquela memória afetiva. Costumo abrir o trabalho ouvindo “O estrangeiro”, do Caetano. E o elenco também traz canções. Regina trouxe a dela, “Onde estará o meu amor?”, com Bethânia cantando. O clima tem sido muito especial. No distanciamento provocado pela pandemia, mesmo quando a gente se encontra, o encontro não se realiza plenamente. E isso emociona. Mas a equipe está feliz em voltar, e animada para concluir a história interrompida num susto, que já dura cinco meses. Todos desejosos de ver o resultado no ar. Trabalhar neste momento de exceção pelo qual o mundo passa é uma maneira de manter o nosso norte, é o exercício da paixão que nos mantém vivos.

“No distanciamento, provocado pela pandemia, mesmo quando a gente se encontra, o encontro não se realiza plenamente. E isso emociona”

José Luiz Villamarim

Diretor de "Amor de mãe"

Eu queria começar pelo cenário da personagem da Regina, um cenário apertado, intimista, inspirado em casas reais que visitei. O quarto, por exemplo, tem 2 metros por 1,5 metro. Nesse novo protocolo, de dois metros de distância entre atores e equipamentos, era o ambiente mais difícil de filmar. Aquele lugar nos daria um diagnóstico sobre se seria possível filmar a partir do protocolo ou não. E estar de volta ao cenário, com a equipe, foi muito emocionante.

Beijo sem efeito especial

No dia 24 começamos as gravações externas. Por causa do protocolo, temos só duas frentes. Antes, eram duas frentes no estúdio, de segunda a sábado, uma externa na cidade cenográfica e outra numa locação pelo Rio. Assim os blocos de seis capítulos eram produzidos. Com o protocolo, ainda não sabemos como fica a produtividade, mas são apenas duas frentes. Porque quanto menos pessoas, menores os riscos. Cada frente tem dois diretores e uma equipe de crise. Gravamos duas semanas e paramos uma. Há ainda uma quarta equipe, remota, que entra em cena caso seja necessário substituir alguém.

Depois de três horas de gravações, paramos para trocar a máscara e temos um intervalo de meia hora, para respirar livremente, num ambiente em que ficamos à distância. Nessa hora gosto de dar uma andada, ficar um pouco sozinho.


Para que os atores possam interagir sem riscos, uma solução seria o confinamento total da equipe. Mas as pessoas estão isoladas, com os filhos em casa, não dá para desencontrar as famílias. Então, eu e a Luciana Monteiro (produtora da novela) selecionamos as cenas em que eu quero que haja contato físico e isolamos apenas os atores dessas cenas até que elas sejam feitas. Eles ficam num hotel. São testados antes, ficam quatro dias, refazem os testes e, se estiver tudo bem, gravam com contato, que pode ser um abraço, um beijo no rosto e até um beijo na boca, que já gravamos. Sem efeito especial. Isis Valverde e Humberto Carrão vão se beijar, Malu Galli e Juliano Cazarré já se beijaram.


Outra coisa que acabou foi a troca excessiva de roupa dos atores. Estamos fazendo dias mais longos nos capítulos, não há muito amanhecer, entardecer... Marie Sales, a figurinista, deixa as roupas higienizadas e já separadas na arara. O ator se troca e se maquia. Ninguém acorda maquiado, né? Como a novela é mais para realista, já não tinha uma maquiagem pesada. Agora, quando há realmente a necessidade de se maquiar mais, é um ator por vez. E os camarins são todos individuais. Acabou o contato físico no ensaio, o abraço. Isso está sendo difícil. A gente chegar depois de cinco meses e não dar um abraço, ter que falar de longe... É um distanciamento muito estranho. Mas uma qualidade do ser humano é que a gente se acostuma com tudo.


A Covid entrou na novela, mas a trajetória dos personagens não vai mudar. Quem está vendo “Amor de mãe”, teve a suspensão, mas vai se emocionar de novo. Vai ser bom reviver essa história. Espero que, quando a novela for exibida, a gente já esteja vivendo um momento menos dramático da pandemia. E aí, vamos olhar para trás e, talvez, dizer: aprendemos um novo modo de fazer, mas sobretudo compreendemos que, sem o afeto do outro, a vida se torna praticamente impossível.



 

 

 

 

 

Sai muito barato ser racista no Brasil

 

 Sai muito barato ser racista no esporte brasileiro. E custa muito caro ser vítima de racismo.

No programa “Esporte Espetacular” exibido no último domingo pela TV Globo, os repórteres Guilherme Pereira, Marcos Guerra e Paulo Roberto Conde revelaram a existência de uma auditoria interna do clube Pinheiros, de São Paulo, que documentava diversos casos de injúria racial e assédio moral por parte de técnicos e atletas da ginástica artística contra outros atletas — os alvos eram majoritariamente bolsistas.

Os relatos destacados pela reportagem do “EE” são brutais. Como classificar um professor que se dirige a uma criança de 11 anos nos seguintes termos: “Ou você faz, ou pode ir embora. Tiramos sua bolsa-auxílio e você passará fome”? Como sobrevive um adolescente que precisa se trancar no banheiro para chorar após ter sido insultado por quem deveria lhe ensinar?

A auditoria ouviu dezenas de pessoas, entre técnicos, dirigentes e atletas. Embora o resultado seja devastador para o clube e seus profissionais, apenas uma pessoa foi punida: o ginasta Angelo Assumpção, negro, que em outubro do ano passado ousou procurar a diretoria do Pinheiros para relatar casos de racismo. Recebeu como resposta uma suspensão de 30 dias. Ao fim da punição, foi demitido do clube que defendia desde os 8 anos de idade.

Aos 24 anos, Angelo é hexacampeão brasileiro e tem uma medalha de ouro na Copa do Mundo, entre vários outros títulos. Desde que foi demitido do Pinheiros, não foi procurado por outros clubes. Depois que contou sua história para o “Esporte Espetacular”, quando deixou claro que queria prosseguir com a carreira de atleta, não recebeu a solidariedade que esperava. Para usar a linguagem das redes, o cancelado foi ele.

— Senti um abandono por parte da sociedade, que se vende como antirracista, mas não se porta assim — disse Angelo ontem, numa entrevista por telefone. — A gente sente que a situação aqui é muito diferente do que está acontecendo nos Estados Unidos. Aqui parece que é só uma hashtag.

Angelo também perdeu suas fontes de renda depois de ter sido dispensado pelo Pinheiros.

— Minha situação é muito mais complicada do que as pessoas pensam.

Mesmo sem bolsa e sem patrocínio, não faria nada diferente se tivesse a oportunidade de voltar atrás.

— Eu me arrependeria se não tivesse tomado uma atitude.

Enquanto Angelo Assumpção sofre com o boicote velado e corre o risco de ter a carreira interrompida por ter quebrado o silêncio, as instituições que ainda permitem (ou estimulam) práticas racistas não são incomodadas. Um caso especialmente bizarro ocorreu num jogo sem torcida entre o Pelotas e o Grêmio Esportivo Brasil, pelo Campeonato Gaúcho, no início deste mês. O sistema de som do estádio Bento Freitas emitiu músicas cantadas por uma torcida organizada do Pelotas, entre elas uma que se refere aos rivais do Brasil como macacos. O clube argumentou que contratou uma empresa terceirizada e não conferiu o conteúdo que seria ouvido durante o jogo. O Tribunal de Justiça Desportiva do Rio Grande do Sul multou o Pelotas em R$ 5 mil. Sai muito barato ser racista no esporte brasileiro.


 

August 26, 2020

QUEM É A ÚNICA PESSOA CAPAZ DE TIRAR BOLSONARO DO SÉRIO?

Joel Pinheiro da Fonseca


Ao dizer que tem vontade de "encher tua boca com porrada" a um repórter, o presidente nos transportou de volta no tempo para longínquos seis meses atrás. Era esse tipo de reação que esperávamos quase diariamente da grosseria presidencial: xingando jornalistas, brigando com deputados, atacando o Supremo, ofendendo nações aliadas. E agora? Acabou o "Jairzinho paz e amor"? Uma resposta pôs a perder o esforço de meses de reorientar o governo? Não tão rápido.

Não foi à toa que Bolsonaro mudou de orientação alguns meses atrás. Foi por uma necessidade básica de sobrevivência. Em menos de um ano e meio de mandato, já se discutia abertamente a possibilidade impeachment.

Irresponsabilidade completa na pandemia, investigações sobre seu passado no Rio e sobre o gabinete do ódio, declarações golpistas e desonrosas que, por si só, já poderiam ser interpretadas como crime de responsabilidade.

Tudo isso passou quando Bolsonaro abraçou o centrão. As falas para a imprensa se tornaram mais protocolares. O ministro militante da Educação foi demitido. Nomeou-se um novo ministro da Comunicação. Abandonou-se qualquer aparência de combate à corrupção. Cargos de segundo escalão foram dados a membros das legendas aliadas.


Talvez a mudança mais simbólica tenha sido trocar o líder do governo na Câmara: saiu o bolsonarista Major Vitor Hugo, do PSL, para entrar Ricardo Barros, do PP, que em 2019 dizia: "Se precisar demitir o presidente, nós demitimos, ele não pode demitir o Congresso".

Desde então, não se fala mais em impeachment. Os números da popularidade sobem, impulsionados pelo auxílio emergencial. O acerto com os partidos de centrão segue firme e forte, bem como as novas diretrizes da comunicação.

A resposta grosseira mostra, contudo, um ponto vulnerável. Se tem alguém que pode tirar Bolsonaro do sério é Fabrício Queiroz.

Surpresas ruins que surjam do caso Queiroz apenas aumentam o preço do centrão. Se a imprensa não cooperar —e é seu dever não cooperar— e continuar esfregando os fatos na cara da opinião pública, Bolsonaro pode se ver forçado a radicalizar mais uma vez.

O ex-PM Queiroz era funcionário do gabinete de Flávio. Mas fazia transferências para Michelle. E sua filha trabalhou para Jair —até onde se sabe, recebendo dinheiro público sem ter sequer pisado em Brasília. Além dos muitos e profundos vínculos com a família Bolsonaro, Queiroz é também próximo de milicianos cujos parentes também trabalharam no gabinete de Flávio.

Um esquema de "rachadinha" com lavagem de dinheiro via loja de chocolates e compra de imóveis é um crime; é prática condenável. No entanto, não é exatamente raro. Quantos gabinetes políticos do Brasil não têm algo similar? Se, contudo, os tentáculos financeiros do clã Bolsonaro se estenderem também às milícias do Rio —ajudando a sustentar gangues que extorquem, chantageiam e matam—, daí não estamos mais falando de pequena corrupção, e sim de crime organizado.

O animal fica mais agressivo no momento em que se vê mais ameaçado. Bolsonaro deixou claro que fará de tudo para sobreviver; inclusive tramou golpe militar para fechar o Supremo, segundo a Piauí. Queiroz fê-lo buscar a conciliação.

Se isso não abafar o caso, pode fazê-lo reverter à agressividade original. Seu desconcerto para falar sobre o caso indica, na falta de maiores evidências, que ele tem o que temer. Grosserias e showzinhos à parte, o Brasil precisa saber: por que Fabrício Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle Bolsonaro?


Joel Pinheiro da Fonseca


August 23, 2020

Como a instabilidade no Ministério da Saúde impacta o combate ao novo coronavírus

 

 ­ Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

 

 Renata Mariz

 ‘‘O estado é grave e não podemos perder tempo”, ouviu Ana Paula de Souza do médico que entubou sua mãe em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro. O profissional alertou que Jalmira Ferreira de Souza, de 70 anos, precisava de uma unidade de terapia intensiva, que o pedido de transferência já havia sido feito, mas com poucas perspectivas de aparecerem leitos. “Se tiver algum conhecido, algum contato, corra atrás”, advertiu, no início da noite da sexta-feira 15.

Mais nova do casal de filhos de dona Jalmira, Ana Paula, de 38 anos, levou o conselho às últimas consequências. Em menos de 24 horas, tinha em mãos uma decisão favorável da Justiça ordenando o estado ou o município a fazer a “imediata transferência” da paciente para uma UTI. Mesmo com a remoção, por indicação de profissionais da rede e não pela fila de espera formal, o estado de saúde de Jalmira tinha se agravado. Era tarde demais. “Falei para a moça do fórum de Justiça: é ganhar e não levar. A vida não vai esperar fila”, disse Ana Paula, que enterrou a mãe na noite da segunda-feira 18, uma das quase 20 mil vítimas fatais da Covid-19 no Brasil.

Ao tentar encontrar explicações para a perda, a filha fala da “confusão” que viu no Sistema Único de Saúde (SUS), que é o responsável pelo leito que faltou a sua mãe. A fila — e a demora para sair dela — está relacionada à instabilidade de gestão que acomete o Ministério da Saúde desde o início da pandemia, e que provocou represamento ou lentidão nas habilitações de leitos. O Palácio do Planalto tem se mostrado em desalinho com as orientações mundiais de combate ao vírus, e que foram adotadas pela pasta desde o início. A falta de unidade no discurso e as interferências do presidente Jair Bolsonaro resultaram em duas trocas de comando do ministério em menos de 30 dias e num completo desalento na gestão. Como consequência, funcionalidades e obrigações da pasta foram alteradas. Por último, uma nova determinação de uso da cloroquina em pacientes com Covid-19 foi decretada por Bolsonaro num momento em que não há titular no ministério, apenas um interino, o general Eduardo Pazuello, especializado em logística.


Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta, no dia da posse de Teich, em abril. A troca de ministros interrompeu andamento de processos na pasta. Foto: Jorge William / Agência O Globo
Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta, no dia da posse de Teich, em abril. A troca de ministros interrompeu andamento de processos na pasta. Foto: Jorge William / Agência O Globo

Gestores de saúde do SUS e servidores da Saúde ouvidos por ÉPOCA apontaram como a principal consequência prática das mudanças ocorridas o represamento da habilitação de UTIs para Covid-19. É preciso que o Ministério habilite os leitos para que a diária de R$ 1.600 seja repassada pelo governo federal aos estados e municípios. Sem esse credenciamento, esses entes veem sua capacidade de criar vagas diminuída por não terem recursos próprios para mantê-las funcionando. Somente na última semana, quando o sistema de saúde já se tornara insustentável em muitos centros urbanos do país, é que boa parte dos pedidos de habilitação feitos ainda na gestão de Luiz Henrique Mandetta foi atendida, apontam gestores. Do total de 6.142 leitos de UTI credenciados pelo ministério para tratar pacientes do novo coronavírus, quase 40% foram habilitados só a partir da segunda-feira 18. A habilitação dura 90 dias.

São Paulo, o estado mais rico do país, que prevê o colapso do sistema de saúde em três semanas, expôs a cobrança em entrevista à imprensa na terça-feira 19. Geraldo Reple Sobrinho, presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems-SP), fez um “apelo ao ministério” para que 1.800 leitos fossem habilitados. Na última semana, 600 vagas haviam sido liberadas. São os pedidos que estavam represados no Ministério da Saúde, apontam os gestores.


“Como resultado do caos na pasta, houve atraso na habilitação de UTIs para Covid-19. Sem essa habilitação, estados e municípios que não tenham recursos próprios para arcar com os leitos não podem usá-los”

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Embora qualquer transição de equipe atrase processos em andamento, a chegada do oncologista Nelson Teich, que substituiu Mandetta por 28 dias até pedir demissão do cargo, levou a uma interrupção nas ações de assistência de saúde. Além da demora nos leitos, a elaboração de um plano para montagem e financiamento de hospitais de campanha foi outro tema que ficou no limbo. “Havia uma discussão avançada para termos diretrizes para os hospitais de campanha, uma pactuação em curso. Mas secretários não foram nomeados, houve trocas, e tudo isso acabou emperrando o tema dentro do ministério”, afirmou Willames Freire, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).

A instância na qual se discutiam essas e outras ações concretas para o atendimento de pacientes com Covid-19 foi extinta na gestão Teich. Trata-se do chamado “gabinete de crise”, que consistia numa reunião diária com o ministro, secretários da pasta e representantes de estados e municípios, que segue inexistente também durante a interinidade do general Pazuello. Nesse encontro aparentemente burocrático, travas eram desfeitas, cenários eram traçados, prioridades eram criadas e pedidos vindos das secretarias estaduais e municipais eram analisados pelo ministério. “Lá atrás, já fazíamos prospecção, por exemplo, sobre o estado do Amazonas, as dificuldades, o que podia ocorrer. Nada disso que acontece agora é novidade, tudo foi debatido, buscando-se soluções, exatamente no gabinete de crise”, afirmou Freire.


Sepultamentos no cemitério Parque Bom Jardim, em Fortaleza, onde serão licitadas novas unidades de jazigo em razão da pandemia. Foto: Mateus Dantas / Zimel Press / Agência O Globo
Sepultamentos no cemitério Parque Bom Jardim, em Fortaleza, onde serão licitadas novas unidades de jazigo em razão da pandemia. Foto: Mateus Dantas / Zimel Press / Agência O Globo

No lugar das reuniões diárias, secretários de Saúde conseguiram quatro conversas com Teich em sua meteórica passagem pela pasta. Pressionado, o então ministro havia se comprometido a retomar o “gabinete de crise” para acelerar ações como a habilitação de leitos. A primeira reunião estava marcada para a sexta-feira da semana passada, mas, antes de o encontro ocorrer, Teich se demitiu. Pazuello não manteve o compromisso.

É no canal direto com o governo federal que se podem repassar, de forma rápida, necessidades inesperadas, explicaram secretários. Um dos exemplos é a falta de swab, um cotonete comprido usado para coletar amostras de secreção das narinas e da garganta dos pacientes para fazer o exame de Covid-19. A compra de rotina desse item sempre foi de responsabilidade de estados e municípios, mas, com a pandemia, a aquisição se tornou tarefa hercúlea, já que falta o material em todo o mundo. A pasta foi informada da carência e prometeu 45,1 milhões de swabs, dos quais havia repassado apenas cerca de 100 mil até a primeira semana deste mês.

O ministro da Saúde interino, general Eduardo Pazuello. Foto: Anderson Riedel / PR
O ministro da Saúde interino, general Eduardo Pazuello. Foto: Anderson Riedel / PR

Em outro sinal de comunicação falha, Teich chegou a anunciar à imprensa um programa com novas orientações sobre a política de isolamento, mas teve de recuar ao ser avisado de que os secretários não endossariam tal proposta, que contemplava, inclusive, maneiras de reduzir a quarentena em determinados locais. Na ocasião, foi dito ao ministro que, em pleno crescimento da curva de casos e com sistemas de saúde colapsando, falar em redução de isolamento, ainda que de forma hipotética, criaria uma confusão na cabeça da população. “Se a interlocução não tivesse sido quebrada, o ministro poderia ter poupado seu tempo e o dos assessores”, disse um gestor que pediu para não ser identificado.


Como o SUS é um sistema administrado tanto pelo governo federal quanto por estados e municípios, em suas respectivas instâncias e com seus respectivos limites orçamentários, esses entes têm autonomia para agir dentro da rede assistencial. Prova disso é que governos locais vêm comprando respiradores, equipamentos de proteção individual, testes e contratando leitos de UTI da rede privada. Mas o papel do governo federal de coordenação e liderança é essencial, apontam gestores, sobretudo num período de escassez de suprimentos, em que o volume de uma compra eleva o poder de barganha de um comprador. “O apoio do Ministério da Saúde, com seu poder de compra, de negociação, no cenário da pandemia, é fundamental para tentarmos garantir os insumos necessários”, explicou Geraldo Medeiros, secretário de Saúde da Paraíba.

O orçamento robusto da União, que operacionaliza os repasses a estados e municípios via SUS, e a capacidade técnica para adoção de diretrizes e protocolos são outras características que evidenciam por que governos locais dependem do Ministério da Saúde. Desde a definição de regras sobre como notificar um caso de Covid-19 em qualquer parte do país, quando o vírus ainda era uma novidade em laboratórios e hospitais, até especificações sobre uso de máscara de pano pela população, todos os temas relacionados à pandemia passam pela condução direta ou indireta da pasta.


Hospital de campanha montado em um ginásio de esportes em Santo André, em São Paulo. A habilitação de leitos nesses locais tem sido afetada pela instabilidade no Ministério da Saúde. Foto: Miguel Schincariol / AFP
Hospital de campanha montado em um ginásio de esportes em Santo André, em São Paulo. A habilitação de leitos nesses locais tem sido afetada pela instabilidade no Ministério da Saúde. Foto: Miguel Schincariol / AFP

A capacidade de negociar em grande volume a importação de insumos e compras nacionais levou o ministério a fazer aquisições de itens relacionados ao combate ao novo coronavírus desde fevereiro. As entregas, porém, estão aquém das promessas ainda da gestão Mandetta. A previsão inicial anunciada era de 40 milhões de máscaras por semana, totalizando 240 milhões. Até agora, foram distribuídos 30 milhões de unidades, segundo dados da pasta. Da mesma forma, o ministério prometeu alugar 2 mil leitos para distribuir a estados em dificuldades, mas só 540 foram viabilizados. Os respiradores são capítulo à parte, com 861 entregues, menos da metade do prometido até maio, de 2.600. No total, o governo afirma que vai distribuir 15 mil ventiladores pulmonares adquiridos da indústria nacional.

A demora na aquisição é atribuída mais ao desabastecimento do mercado do que às trocas no Ministério da Saúde. Gestores dizem que as promessas já não vinham sendo cumpridas a contento na gestão Mandetta. A diferença é que, antes, podiam cobrar e obter informações por meio do canal direto mantido. Desde a troca de ministro, tiveram de apelar muitas vezes para o expediente do ofício — que demora, no mínimo, 24 horas para passar pela área de protocolo de um ministério para, só então, ser direcionado ao gabinete ministerial ou dos secretários. Uma burocracia incompatível com a urgência que a crise exige.


“O gabinete de crise criado por Mandetta, onde aconteciam reuniões diárias com representantes de estados e municípios para tratar das demandas mais urgentes, foi extinto por Teich, e não sinal de que seja retomado por Pazuello”

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Para além das dificuldades técnicas, o contexto político também cria ruídos desnecessários num momento em que esforços deveriam ser concentrados para vencer a Covid-19. A determinação do uso indiscriminado da cloroquina, que esgotou a paciência de Mandetta e forçou a saída de Teich da pasta, tem se mostrado o principal ponto de conflito na comunicação do ministério com a população. É desconhecida a origem da obsessão de Bolsonaro pelo medicamento, cuja eficácia no tratamento da Covid-19 carece de evidências. O pouco que se sabe foi dito por Mandetta, após sua saída da pasta. “Ele quer um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia. A pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema. Como é barato e o Brasil produz, por ser medicamento da malária... Só que malária costuma dar em mais jovens”, disse, em entrevista ao Correio Braziliense.

À Globonews, Mandetta citou o desconforto ao ser pressionado pelo ex-chefe a chancelar a adoção da substância. “No final de um dia de reunião de conselho ministerial, me pediram para entrar numa sala e estavam lá um médico anestesista e uma médica imunologista, que estavam com a redação de um provável ou futuro, ou alguma coisa do gênero, decreto presidencial. E a ideia que eles tinham era de alterar a bula do medicamento na Anvisa, colocando na bula indicação para Covid”, afirmou Mandetta. “O próprio presidente da Anvisa se assustou com aquele caminho, disse que não poderia concordar. Eu simplesmente disse que aquilo não era uma coisa séria e que eu não iria continuar naquilo”, prosseguiu o ex-ministro.


“Discordâncias sobre o uso da cloroquina derrubaram dois ministros. Sem discutir, Pazuello, chefe interino da pasta, assinou decreto liberando o uso, enquanto o laboratório das Forças Armadas está fabricando o medicamento”

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Já Nelson Teich se mostrou mais aberto a avaliar a viabilidade do uso do medicamento. Conforme a pressão de Bolsonaro escalou, ele fez consultas a hospitais e médicos sobre os resultados obtidos em tratamentos com a substância. Em uma ocasião, ao visitar um hospital de campanha no Rio de Janeiro, Teich perguntou pessoalmente aos médicos do local quais tratamentos eram utilizados e quais eram seus resultados, inclusive a cloroquina. Como em nenhum dos casos o retorno foi o esperado pelo presidente, o médico se negou a empreender qualquer medida de adoção oficial. Isso e o decreto que inseria academias e salões de beleza no rol de serviços essenciais culminaram em sua partida da pasta.

Seu secretário executivo, general Pazuello, agora interinamente no cargo, assinou na quarta-feira 20 o decreto de liberação da cloroquina para todo tipo de tratamento da Covid-19. Pazuello não é médico. Na esteira da saída de Teich do ministério, a pasta — que tem o maior orçamento da Esplanada, de R$ 125 bilhões, e é bastante cobiçada pelo centrão — ganhou coloração verde-oliva. Além de Pazuello, entraram na Saúde mais de 15 militares para funções de chefia. Nenhum deles com experiência na área.

Soldados das Forças Armadas desinfetam um trem na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A pandemia já fez quase 20 mil vítimas fatais no país. Foto: Carl de Souza / AFP
Soldados das Forças Armadas desinfetam um trem na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A pandemia já fez quase 20 mil vítimas fatais no país. Foto: Carl de Souza / AFP

As Forças Armadas têm desempenhado função-chave na crise que assola a Saúde. Enquanto, institucionalmente, o comandante-geral do Exército, Edson Pujol, tem buscado transmitir a imagem de que a caserna está no front de combate à pandemia em locais aonde o Estado não chega, Bolsonaro tem agido nas frestas disponíveis para organizar as Forças a seu dispor. Ordenar a fabricação da cloroquina pelo Laboratório das Forças Armadas foi um de seus atos. A designação de Pazuello para a pasta, que convocou outros militares para a missão, também tem as digitais do presidente.


Um dos nomes indicados por Pazuello, o major Angelo Martins Denicoli, novo diretor de monitoramento e avaliação do SUS, chegou a publicar, em suas redes sociais, informações falsas sobre o uso da substância, segundo o blog da jornalista Constança Rezende, do UOL. O major divulgou, no dia 8 de abril, que a FDA, órgão que regulamenta o uso de substâncias químicas nos Estados Unidos, havia aprovado o uso da hidroxicloroquina para o tratamento de todos os casos do coronavírus e que a Organização Mundial da Saúde era “genocida”. O major ainda publicou ofensas a ministros do STF e a políticos de oposição ao governo e afirmou que o “grande perigo” dos dias atuais não é o nazismo, e sim o jornalismo.

Outro militar nomeado, Giovani Camarão, futuro coordenador de Finanças do Fundo Nacional de Saúde, participou de uma festa com pelo menos 17 pessoas em abril quando o isolamento já estava em vigor. A informação foi publicada pela Folha de S.Paulo. Pazuello nomeou de uma vez nove subtenentes, majores, tenentes-coronéis, um capitão e um coronel para cargos de chefia na pasta. No ministério, servidores de carreira veem com preocupação a falta de experiência dos nomeados. Há relatos de que os militares não conhecem a gestão da saúde pública e esperam que tudo seja feito “de cima para baixo”, conforme a hierarquia, sem considerar que, na pasta, as decisões são pactuadas entre governo, estados e municípios. Contudo, o desalento no setor é tão grande que o simples fato de haver alguém a quem recorrer em cargos-chave é melhor do que nada, para alguns gestores públicos que têm de lidar com sistemas em colapso e centenas de mortos em um dia. Foi o que disse Alberto Beltrame, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). “É fundamental que a nova administração retome a gestão compartilhada da crise, interrompida pela instabilidade no ministério. Com essa interlocução recuperada, poderemos tomar ações mais rapidamente em meio à pandemia.”


Com Natália Portinari

 

August 22, 2020

Neuroses de Lovecraft impulsionaram horror inovador de sua ficção

Montagem com o escritor H.P. Lovecraft cercado por tentáculos, referência central em sua obra

[resumo] Nos 130 anos de seu nascimento, o escritor H.P. Lovecraft tem explosão de lançamentos no Brasil, incluindo ensaio do francês Michel Houellebecq sobre seu trabalho, e é inspiração para as mais variadas obras de arte. Pouco celebrado em vida, tornou-se um nome central da literatura de horror ao fazer de suas neuroses o impulso de uma obra inovadora e pessimista, na qual o ser humano é insignificante diante da natureza.


 Marcelo Miranda

Dificilmente Howard Phillips Lovecraft acreditaria que o palavreado impronunciável de nomes criados por ele —como Cthulhu, Azathoth, Shoggoth, Shub-Niggurath e Yog-Sothoth— se tornaria cultuado em todo o mundo e fonte de inspiração para variadas manifestações artísticas.

Morto em 1937, aos 46 anos, Lovecraft teve pouco reconhecimento em vida. Quase um século depois —nos 130 anos de seu nascimento, completados na última quinta-feira (20)—, é um dos autores mais estudados e referenciados da literatura norte-americana. Não só pelas obras que escreveu (cerca de 70 ficções, entre contos e novelas), mas também por sua presença constante como fonte basilar em filmes, videogames, quadrinhos, RPGs, livros e um conjunto inesgotável de derivações.

A mais recente é a nova série da HBO “Lovecraft Country”, adaptação do romance de Matt Ruff que se utiliza do imaginário de Lovecraft para falar da segregação racial nos EUA dos anos 1950. Escritores como Neil Gaiman, Stephen King e Joyce Carol Oates ou cineastas como Guillermo del Toro e John Carpenter constantemente assumem inspiração em Lovecraft.


Tendo entrado em domínio público em janeiro de 2008, a obra do escritor nascido em Providence (Rhode Island) ganha atenção crescente de editoras, produtoras e artistas interessados em se enveredar pelos tentáculos de um criador que inventou muitos dos conceitos consagrados de horror e ficção científica.

Ao menos sete casas editoriais brasileiras, entre grupos expressivos e outros nem tanto, estão com livros de Lovecraft circulando, para além da quantidade incalculável de trabalhos realizados a partir do imaginário do autor.

A pioneira a explorar com atenção e cuidado a obra do escritor por aqui foi a Hedra, em um projeto capitaneado pelo editor Bruno Costa a partir de 2009. Com tradução do pesquisador Guilherme da Silva Braga, as edições da Hedra apresentaram os contos do norte-americano a toda uma nova geração de leitores.

“Elas foram as primeiras, no Brasil, a trabalhar não apenas com tradução de alto nível, mas também com critérios editoriais claros e aparato crítico do qual éramos tão carentes: introduções, notas, cartas, esboços e artes de capa exclusivas, criadas por Tulio Caetano”, destaca Costa.

Histórias como “Um Sussurro nas Trevas” (1930), “Nas Montanhas da Loucura” (1931), “A Sombra de Innsmouth” (1931), “A Cor que Caiu do Espaço” (1927) e o incontornável “O Chamado de Cthulhu” (1926), entre várias outras, conquistaram centenas de leitores e chamaram a atenção para o potencial de Lovecraft.


Em 2017, pela editora Ex Machina, o mesmo Bruno Costa promoveu um financiamento coletivo para a edição de “Contos Reunidos do Mestre do Horror Cósmico”, mais portentosa edição dedicada ao escritor no Brasil. São 612 páginas contendo 61 contos (tradução de Francisco Innocêncio), além de apêndice com artigos, ensaios, iconografia, bibliografia, filmografia e um “bestiário” sobre as principais entidades lovecraftianas.

Uma segunda edição, revista e ampliada, está com nova campanha aberta no Catarse, em uma parceria da Ex Machina com a editora Clepsidra, que relançará também o ensaio “Mitologia Lovecraftiana: A Totalidade pelo Horror”, de Caio Bezarias.

Outras editoras embarcaram no apelo de Lovecraft, como a DarkSide, que o inseriu no selo Medo Clássico e lançou, no final de 2017, uma antologia com duas capas à escolha do leitor, com tradução de Ramon Mapa.

Em 2019, dois lançamentos de peso se somaram no mesmo mês de novembro: o box em dois volumes “Os Mitos de Cthulhu” (Nova Fronteira, tradução de Alexandre Barbosa de Souza, Regiane Winarsrki e Bruno Gambarotto) e o primeiro volume da “Biblioteca H.P. Lovecraft” (Companhia das Letras, tradução de Guilherme da Silva Braga), a ser composta, no futuro, por outros três livros.

O escritor Oscar Nestarez, pesquisador de Lovecraft, exalta a efervescência de títulos disponíveis de um ficcionista tão fundador, mas aponta cautela. “A redundância pode levar à saturação, já que vários lançamentos trazem os mesmos textos ou edições precipitadas, sem contextualização adequada. Para quem não conhece a obra de Lovecraft, contexto é indispensável.”

Bruno Costa também detecta um círculo vicioso de publicações e defende que outros materiais sejam disponibilizados ao leitor brasileiro. “As editoras poderiam explorar as cartas, os ensaios e a poesia do Lovecraft, mas preferem ad infinitum a mesma fórmula ou seleção de contos em traduções e edições muitas vezes bastante discutíveis. Publicar uma dezena de histórias com capinha bonitinha é fácil, duro é ter coerência editorial.”

Em boas ou más edições, Lovecraft é cada vez mais inevitável. O fascínio por sua literatura, os enigmas em torno de sua mitologia e as controversas questões de sua vida pessoal são praxe em círculos não só de leitores, mas de uma gama imensa de admiradores de outras mídias.

“Ele criou um universo habitado por monstros e horrores que mexem com a imaginação. Essa obra deixou de pertencer ao nicho da literatura de horror e de ficção científica para adentrar, de forma definitiva, na cultura pop”, aponta Guilherme Braga.

Para a pesquisadora Nathalia Sorgon Scotuzzi, autora de “Relances Vertiginosos do Desconhecido: A Desolação da Ciência em H.P. Lovecraft” (ed. Diário Macabro), um elemento intrigante é a ambientação das narrativas em um mundo em tudo como o nosso, acrescido de criaturas ancestrais e da detalhada mitologia de acontecimentos do passado, que fazem do ser humano mero detalhe insignificante.
“Sua proposta era criar uma realidade que preenchesse lacunas na nossa própria, oferecendo possibilidades monstruosas nas camadas desconhecidas da natureza”, diz Scotuzzi.

“Ao entrar em contato com isso, a humanidade estaria perdida, mas a natureza ainda seria a mesma. Somado a tudo está o conceito de que Cthulhu, Azathoth, Yog-Sothoth ou qualquer outra entidade criada pelo autor não são deuses e sim seres poderosos que desconhecem ou pouco se importam com nossa existência.”

Esse é, afinal, o conceito de horror cósmico, vertente ficcional notabilizada por Lovecraft. Apesar de admirador do gótico e sobrenatural Edgar Allan Poe (1809-1849), ele expandiu suas próprias referências, que passavam também por Algernon Blackwood (1869-1951) e Ambrose Bierce (1842-1914), para arquitetar cuidadosamente um mundo singular.

“O embasamento filosófico do horror cósmico está ligado ao conceito de sublime que encontramos no filósofo irlandês Edmund Burke e segue muito alinhado a pensamentos e fatos científicos atuais”, diz Oscar Nestarez. “Todos os contos de Lovecraft nos lembram do quão impotentes e insignificantes somos diante da natureza —e, em última instância, diante do universo.”

Neste ano, quando o mundo enfrenta o surto de coronavírus, Lovecraft soa bastante atual. Cthulhu, afinal, é o “alto sacerdote” que um dia caminhou pela Terra, foi banido para “a grandiosa cidade submersa de R’lyeh” e estaria às vésperas de caminhar novamente para “impor seu jugo” por meio de destruição, morte e desolação. Em suma: é um apocalipse abafado por milênios, no aguardo de ascender “quando as estrelas estivessem alinhadas”.

A descrição de Lovecraft para horrores além da compreensão humana e da capacidade de qualquer enfrentamento —elementos magistralmente trabalhados na mais recente adaptação do autor para os cinemas, “A Cor que Caiu do Espaço”, de Richard Stanley, disponível no Telecine Play— está intimamente relacionada ao seu modo de viver e pensar.

Filho de um comerciante com a filha de um aristocrata descendente dos primeiros colonizadores dos EUA, Lovecraft cresceu abastado e isolado em meio a crises mentais dos pais. Adulto, defendia a tradição e a cultura anglo-saxã contra a modernidade e a intersecção entre povos.

Lovecraft tinha pensamentos racistas, xenófobos e eugenistas, expostos em várias dos milhares de cartas que trocou com interlocutores. Algo disso resvalou na sua ficção, especialmente depois da curta e desastrosa temporada em Nova York ao lado da esposa, Sonia Greene, com quem se casou em 1924.

Após algumas semanas de tranquilidade e empolgação com a nova vida no Brooklyn, Lovecraft passou a ter dificuldades financeiras. Recebia muito pouco pelas histórias que publicava em revistas “pulp”, disputava e perdia empregos para imigrantes e foi incapaz de se sustentar financeiramente após Greene buscar trabalho em outra cidade. Em 1926, ele retornou a Providence. Pouco tempo depois, ele e Greene, que já viviam distantes, se separaram.

“Em relação às culturas de outros países que chegavam aos EUA, Lovecraft não só se sentia invadido, mas também tinha medo daquilo que não conhecia —algo que é um dos elementos-chave em sua obra, o medo do desconhecido”, afirma Nathalia Scotuzzi.

A esse medo, somaram-se o ódio e a neurose, conforme analisa o francês Michel Houellebecq no ensaio “H.P. Lovecraft: contra o Mundo, contra a Vida”, originalmente lançado na França em 1991 e recentemente publicado no Brasil pela Nova Fronteira.

Para o controverso romancista de “O Mapa e o Território” e “Submissão”, o caldo cultural que caracterizou a América no começo do século 20 amplificou os sentimentos ruins de Lovecraft, que os canalizou em uma escrita raivosa e profundamente inventiva.

Escreve Houellebecq: “Toda grande paixão, seja ela amor ou ódio, acaba por produzir uma obra autêntica. Podemos deplorá-lo, mas é preciso reconhecê-lo: Lovecraft está mais do lado do ódio”.
Do período pós-Nova York até sua morte, segundo o francês, o escritor produziu seus grandes textos, justamente os mais influentes até hoje.

Houellebecq lança afirmações provocativas, como ao refletir que a “visão alucinada” de Lovecraft em relação ao indivíduo diferente dele “está diretamente na origem das descrições de entidades pesadelares que povoam o ciclo de Cthulhu”, o que culminava em um “estado de transe poético em que ele supera a si mesmo no batimento rítmico e louco das frases malditas”.

O reacionarismo de Lovecraft, nesse sentido, virava impulso ao turbilhão imaginativo que ele desenvolveu em um período de dez anos. Guilherme Braga acredita que “enfrentar sentimentos destrutivos no plano da criação é o que fazem quase todos os artistas com os quais vale a pena se envolver”.

Na opinião de Scotuzzi, a constatação do racismo de Lovecraft não deve suplantar outras questões de sua produção literária, que se baseava principalmente na impotência. “Ele nunca se deu ao trabalho de desenvolver profundamente personagens, sejam eles protagonistas ou antagonistas. No desfecho de suas obras, etnias, classes sociais, preconceitos ou qualquer outro elemento ligado especificamente ao humano não têm importância alguma, já que Lovecraft coloca toda a humanidade no mesmo barco ao apresentar ameaças alienígenas que acabariam, se quisessem, com sua soberania em poucos instantes.”

Lovecraft transfigurou seus horrores pessoais em horrores de ficção. Não viveu para ver no que isso iria dar. Pessimista e autocomplacente como era, ficaria surpreso ao descobrir que seus escritos delirantes interessariam a mais gente além dele mesmo e de amigos próximos.

Conforme Houellebecq, “esse homem que não conseguiu viver conseguiu, finalmente, escrever”, para enfim se tornar “um iniciador essencial a um universo diferente, situado muito além dos limites da experiência humana e, contudo, de um impacto emocional terrivelmente preciso”.




August 21, 2020

“BOLSONARO É UM ATENTADO A CONSTITUIÇAO”

 

  S E RGIO L I R IO

 O advogado Pedro Serrano
concorda com a avalia-
ção de que são mínimas
as chances de o impeach­
ment de Bolsonaro pros-
perar neste momen-
to, mas acredita que a
conclusão não deve pa-
ralisar as iniciativas para
re­movê-lo do cargo. Quanto menos tem-
po o ex-capitão permanecer no poder,
avalia o professor de Direito da PUC de
São Paulo e colunista de CartaCapital,
melhor para o Brasil. Razões jurídicas
objetivas para afastar Bolsonaro, atra-
vés do Congresso ou por meio de um
processo por crimes comuns, existem
de sobra, explica na entrevista a seguir.
A íntegra você assiste em youtube.com/
cartacapital.

CartaCapital: O senhor repete que
o instrumento do impeachment foi ba-
nalizado no Brasil, mas defende o afas-
tamento de Bolsonaro. Por que não se-
ria um excesso neste caso?

Pedro Serrano: Antes
da pandemia, eu resistia
à ideia de que os atos do
Bolsonaro até então pu-
dessem ser juridicamen-
te caracterizados como
crimes de responsabilida-
de. Agora não tenho mais
dúvida. A reação dele ca-
racterizou o preceito ju-
rídico, o crime de respon-
sabilidade, o atentado à
Constituição. Temos de
entender o conceito do
Estado Constitucional de
Direito. Antes de tudo, ele pressupõe que
a decisão política não é livre. Está subor-
dinada ao império da lei. Um dos valo-
res essenciais da democracia liberal, tal-
vez o mais relevante, é o direito à vida, e
o segundo mais relevante
talvez seja o direito à inte-
gridade física e à saúde. Ao
fazer discursos que defen-
dem o desrespeito ao iso-
lamento, Bolsonaro es-
timula a desobediência a
uma ordem legal, dada no
interior da federação pelos
governos estaduais e mu-
nicipais, portanto, são or-
dens de Estado, são deter-
minações legislativas e ad-
ministrativas de cumpri-
mento obrigatório. Ele incita a

 

  subversão dessas ordens e aten-
ta contra o direito à vida e à saúde, algo
gravíssimo. Dificilmente consigo verifi-
car uma conduta mais grave do que esta,
talvez só se ele reunisse os cidadãos em
um estádio e os fuzilasse. A sociedade, os
demais poderes, tem reduzido a gravida-
de constitucional, jurídica, política e hu-
manitária dessa postura. O presidente
da República não pode decidir livremen-
te entre seguir a ampla maioria científica
ou não seguir. Ele é obrigado a respeitar
a atitude mais cautelosa e respaldada pe-
la ciência. A atitude cientificamente mais
cautelosa neste instante é o isolamento.


CC: Não foram atentados só à
Constituição, certo? Ele também co-
meteu crimes comuns?


PS: Sem dúvida. Contra a ordem públi-
ca, caracterizado na Lei de Segurança
Nacional, contra a saúde, com base no
artigo 286 e outros do Código Penal.
O Ministério Público claudica ao não
apurar. A Polícia Federal dá sinais de es-
tar aparelhada pelo governo Bolsonaro,
como não se via no passado recente. Do
ponto de vista político, não vejo condi-
ções no momento para um processo de
impeachment, mas é preciso construir
a possibilidade. Quanto menos tempo
Bolsonaro ficar no poder, melhor para
o País. Ao contrário do que afirmou, ele
não “é a Constituição”. Ele é um atentado
à Constituição. Para derrubá-lo, precisa-
mos de uma ampla frente que una todos
os espectros, independentemente de vi-
sões ideológicas ou interesses eleitorais.

O EX-CAPITÃO
“ATUA COMO UM
AGENTE DA
DESOBEDIÊNCIA
CIVIL. POR ISSO
HÁ MOTIVOS
SUFICIENTES PARA
IMPEDI-LO”


CC: Bolsonaro e o bolsonarismo po-
deriam prosperar em outro país? Não
é um fenômeno tipicamente brasileiro?


PS: O bolsonarismo é um fenômeno na-
cional, une uma ideia de ultraliberalis-
mo ao autoritarismo estatal. Não se vê
no resto do mundo. Nos países em que a
extrema-direita prospera, adota-se um
modelo clássico: autoritarismo e xeno-
fobia associados a um projeto nacional,
com políticas de benefícios aos cidadãos.
Analisemos as medidas econômicas ado-
tadas no Brasil para combater os efeitos
da pandemia. Elas favorecem o grande
capital, os interesses de uma minoria.
Atípica também é a oposição, em espe-
cial o campo chamado de progressista.


CC: Por quê?


PS: Ela tem sido incapaz não só de ser
incisiva na defesa de políticas econômi-
cas justas, mas peca na denúncia dos cri-
mes de Bolsonaro. O isolamento social só
será mantido se os mais pobres tiverem
condições de se alimentar, de sobreviver.
É preciso muito mais intensidade e efeti-
vidade nas políticas de auxílio emergen-
cial. Sem dinheiro, sem comida, o sujeito
não vai ficar em casa, entra em desespero

 

 Além disso, o campo progressista conti-
nua a lidar com a situação como se vivês-
semos em uma normalidade. Bolsonaro
chegou ao poder graças a uma série de
golpes, da imposição de um estado de ex-
ceção, que vai do impeachment da Dilma
Rousseff à prisão ilegal do Lula. Não dá
para pensar em 2022, como se fosse pre-
visível. Imaginemos se não for produzida
uma vacina nos próximos anos e os países
forem obrigados a adotar isolamentos so-
ciais de tempos em tempos. Um prolonga-
mento da pandemia não seria uma descul-
pa perfeita para o Brasil adiar as próximas
eleições presidenciais e prolongar o man-
dato de Bolsonaro? O aumento da crise so-
cial, com saques e violência, não serviria
para o governo decretar estado de sítio?


CC: Em que ponto a oposição falha?


PS: Entendo algumas reações, outras
não. O fato de o Brasil ter experimentado
um longo período com um governo consi-
derado de esquerda, e ter acabado como
acabou, gerou uma onda de oposição em
grande parte injusta, que dificulta a re-
articulação dessas forças. No caso do PT,
ainda não caiu a ficha dessa realidade.
O partido acaba por dificultar a criação
de uma ampla frente contra Bolsonaro,

por causa de seu desejo de protagonis-
mo. Ao mesmo tempo, o PT me parece
catatônico, paralisado, nem radicaliza
a crítica nem a ecoa com eficiência. O
PSOL, bem menor, aparece muito mais.
Ao contrário de muitos petistas, acredito
não haver outro caminho a não ser uma
aliança com todos aqueles dispostos a
superar este momento terrível da nossa
história. O mais importante é romper o
fanatismo bolsonarista.

“AINDA NÃO CAIU
A FICHA DO PT.
VEJO O PARTIDO
CATATÔNICO,
PARALISADO”


CC: Bolsonaro ameaça acabar com
o isolamento por decreto e derrubar
decisões de estados e municípios.
O que legalmente ele pode fazer?


PS: Muito pouco. Um decreto dessa na-
tureza seria inconstitucional. A federa-
ção não está suspensa. Em nenhum pa-
ís de grandes dimensões a pandemia
se desenvolveu de forma homogênea.
Então, cabe aos estados e municípios de-
finirem as regras de acordo com a aná-
lise da situação local. A competência da
União é coordenar as iniciativas, mas não
se imiscuir na execução estadual e muni-
cipal. Seria ilegítimo interferir, é condu-
ta criminosa. Não acho que Bolsonaro te-
nha coragem de baixar o decreto. Soa co-
mo mais uma bravata. Aliás, de modo ge-
ral, não o considero corajoso. Bravateiro
sim, malandro, mascate. Na hora do va-
mos ver, ele recua. O problema é outro.


CC: Qual?


PS: Ele vai continuar a boicotar o isola-
mento e as demais medidas de combate
à pandemia. Principalmente no aspecto
econômico. A intenção é levar os brasi-
leiros, por desespero, a praticarem uma
subversão da ordem nos municípios e nos
estados. Bolsonaro atua como um agente
da desobediência civil. Por isso há moti-
vos suficientes para impedi-lo.


CC: Um processo de crime comum
depende da Procuradoria-Geral da
República, mas temos hoje no coman-
do Augusto Aras, um novo engaveta-
dor-geral...


PS: ... Não tenho certeza de que Augusto
Aras seja um engavetador-geral. Ele aca-
ba de determinar a abertura de uma in-
vestigação para descobrir quem finan-
ciou as manifestações a favor de uma in-
tervenção militar. Foi uma atitude de in-
dependência, embora ele não tenha inclu-
ído Bolsonaro na apuração. O Ministério
Público não pode, de fato, agir com moti-
vação política. Precisa ser mais contido, é
um ente jurídico. Estamos em uma situa-
ção de legalidade extraordinária, na qual
o Estado tem mais poderes que o normal,
inclusive o Executivo. Esses poderes es-
tão, no entanto, submetidos ainda à ordem
jurídica, aos princípios constitucionais.
O Estado Constitucional de Direito tem
respostas para momentos de emergência
como este. Ele precisa ser bem executa-
do. Cabe ao Supremo Tribunal Federal a
função de guardião da constitucionalida-
de e da legalidade extraordinária. •

 

August 20, 2020

Câmara do DF aprova projeto que proíbe exposições com nudez

 Post do coletivo És Uma Maluca convidando para performance na exposição “Literatura exposta”, na Casa França-Brasil, no Rio, cujo fechamento foi antecipado em 2019 Foto: Divulgação

 

 Proposta também impede que manifestações artísticas 'atentem contra símbolos religiosos'

 

Monstros no poder

 

 

 

ESTHER SOLANO

 Ao pensar nas propostas de Pau-
lo Guedes para enfrentar a cri-
se econômica derivada do co-
ronavírus, que basicamente se resu-
mem a aproveitar o momento para en-
fiar o Estado mínimo garganta abaixo
dos brasileiros, lembrei-me de uma fra-
se que ele mesmo disse durante um pai-
nel do Fórum Econômico de Davos, em
janeiro deste ano: “O grande inimigo do
meio ambiente é a pobreza... os pobres
destroem porque estão com fome”.
São aquelas declarações que é preci-
so ler duas vezes no jornal, de tão bes-
tiais. Mas são possíveis, bem possíveis.
Bem pensado, as bestas dizem bestiali-
dades, nada mais lógico. Desta vez pode-
mos mudar “meio ambiente” por “pande-
mia”. Guedes deve pensar também que os
pobres que vão morrer por coronavírus o
farão porque pobre é assim mesmo, pre-
fere morrer a viver.


A violência das palavras às vezes é
mais dura do que a violência dos punhos,
pois as palavras criam história. As pala-
vras, quando repetidas com muita fre-
quência, acabam por criar uma verdade.
Uma fake news repetida continuamen-
te acaba virando realidade. Para os bol-
sonaristas-raiz é verdade que o confina-
mento é coisa de rico e que o Estado não
deve se preocupar com os custos econô-
micos do isolamento social, isolamento
este que é a única forma que conhecemos
até agora de lutar contra a pandemia. O
auxílio emergencial de 600 reais é coisa
de comunista.


A verdade de Guedes é que a pobreza
e os pobres são a causa dos problemas do
Brasil. Não a desigualdade, a onipotência
das grandes empresas e fortunas, tam-
pouco as reformas neoliberais que ele for-
mula. Essas são as soluções. Eu me per-
gunto se pessoas como Guedes, que de-
fende esses argumentos, acreditam real-
mente nelas ou simplesmente replicam
um discurso “economicamente correto”,
a ser seguido custe o que custar, por ser
favorável a elas mesmas, embora saibam
tratar-se de uma mentira. Seja qual for a
opção, é de uma indecência astronômi-
ca defender essas ideias num país como
Brasil, e mais indecente ainda gerir um
Ministério da Economia com base nelas.
Políticos, funcionários públicos na ver-
dade, todos aqueles que cumprem fun-
ções de Estado deveriam passar por uma
prova, um tipo de teste psicotécnico de
empatia. Não deveria ser permitido que
um agente público não tivesse um míni-
mo de sensibilidade social. Um teste no
qual Bolsonaro e seus súditos tirariam
nota zero, obviamente. Em vez de co-
ração, eles têm uma batata, podre ain-
da. Os agentes do mercado, para isso,
são o máximo expoente da insensibili-
dade social. Se Bolsonaro e Guedes, apro-
vada a reforma da Previdência, consegui-
ram emplacar as privatizações e a dimi-
nuição do gasto público, quem se impor-
ta com o aumento da violência, com os
recordes de miséria e desigualdade, com
o desmonte das políticas de direitos hu-
manos, com a fascistização da vida e da
política? Dizem que a justiça é cega, mas
sabemos que, na verdade, ela olha muito
bem, só que sempre olha para o mesmo
lugar. Muito mais do que cega, seria ves-
ga. O mercado, me parece, não é exata-
mente cego, mas psicopata, não dá a mí-
nima por nada que não sejam índices de
Bolsa, dólar, lucro, investimento. O mer-
cado é o mais parecido a um serial killer
que conheço. Com certeza, Guedes disse
essa brutalidade em Davos e depois foi al-
moçar e dormir com a maior calma e sos-
sego, talvez até inconsciente do tamanho
da atrocidade que saiu da sua boca, pois,
de tanto repeti-las, perdem o seu horror...
e se transformam em verdade.


Guedes e Bolsonaro, ser fascistoide é
uma merda, ser fascistoide e débil men-
tal é uma grande sacanagem do universo.
O monstro no poder parece que ganhou
uma espécie de Mega Sena da natureza às
avessas. O sujeito foi premiado com um
monte de deformidades emocionais, as
piores. E os filhos? Nem se diga. Esses fo-
ram premiados com várias Mega Senas.
Vocês acham que eles se importam com
que morram brasileiros por causa da
pandemia? Para se importar com a mor-
te alheia é preciso ter sensibilidade, com-
paixão, sofrer a dor dos outros. Tudo is-
so é humano demais para eles.


São estas as circunstâncias atuais.
Somos governados por monstros. Somos
governados por monstros que em vez de
coração têm batatas podres, rochas, cas-
calho. Só que os monstros não se matam
com palavras suaves ou melodias. Os
monstros se matam com um golpe for-
te, contundente, sem vacilar, sem hesitar,
sem tremer a mão. Estamos preparados
para matar os monstros de uma vez? •


August 15, 2020

Em resposta à pandemia distópica, um pouco de utopia

 

 Projeto do arquiteto Vincent Callebaut, referência do movimento solarpunk, que defende um futuro mais cheio de luz. Foto: Vincent Callebaut Architectures / Reuters

Diante da realidade surreal trazida pelo novo coronavírus, histórias de opressão perdem o apelo e dão lugar a narrativas de idealização total 

 Bolívar Torres