José Luiz Villamarim
Chego aos Estúdios Globo ao meio-dia. A sensação é de vazio. Equipes reduzidas. Antes da Covid-19, tínhamos até 60 pessoas por dia no set. Hoje, são 20, 25. Sigo solitário. Quando saio do carro, já há tomada de temperatura para entrar na primeira portaria do MG4, o estúdio onde a novela “Amor de mãe” é gravada. Dentro da estratégia do novo protocolo, há diferentes entradas para atores, produção, equipe que faz a higienização. É tudo planejado para evitar encontros e aglomerações. As reuniões que aconteciam nos estúdios, agora são feitas, pela manhã, via Teams ou Zoom, depois de reler as cenas que vamos filmar.
O protocolo divide o espaço em três: azul, por onde circulam mais pessoas, e é todo mundo de máscara o tempo todo; amarelo, onde colocamos as roupas de proteção (aquele macacão branco, além da máscara), por onde circulam a equipe e também seguranças e profissionais que limpam o lugar; e a área vermelha, que são os camarins e o estúdio. Onde há ator é área vermelha, porque eles precisam tirar a máscara e, assim, é necessário reforçar os cuidados e reduzir ainda mais o número de pessoas.
Na área amarela, visto minha roupa de proteção, higienizo meus objetos pessoais para colocar na sacola do protocolo. Levo telefone, escova de dentes, iPad, porque não tem mais papel com o roteiro no estúdio. É um ritual. Aí, guardo a bolsa num escaninho individual e vou comer em um restaurante com mesas separadas por dois metros de distância e onde parece que o dia não muda, porque as pessoas estão sempre do mesmo jeito, com o macacão branco, uma sensação estranhíssima. Almoço uma comida que agora parece aquelas de avião: em porções pré-determinadas e já embaladas; os talheres, no ziplock.
Música no estúdio
“Amor de mãe” é uma novela realista, então eu queria evitar efeitos de pós-produção, como a rotoscopia (técnica que permite filmar atores num local e recortá-los para inserir em outro cenário) ou o chroma key (em que atores podem ser filmados separadamente num fundo verde e depois unidos numa cena de beijo, por exemplo). Além de ficar muito falso, e não ter a ver com a pegada da novela, essa pós-produção demora muito.
Então, após pesquisar e consultar especialistas (como Alberto Chebabo, professor da UFRJ e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia), decidimos usar divisórias de acrílico nas gravações. Desse jeito, os atores se aproximam de verdade, mas sem que haja contato nem troca de “perdigotos”. Funciona como um escudo. Sem falar que... cinco segundos de uma cena rodada assim precisam de 45 minutos de pós-produção para apagar as bordas do acrílico. Se usássemos rotoscopia, por exemplo, levaríamos 48 horas. Há mais truques. Um é usar uma lente fechada para dar a impressão de que se está mais próximo. Outro é fazer os atores se cruzarem, mas só falarem o texto quando já estiverem distantes.
Em “Amor de mãe”, trabalhamos com a câmera dentro do cenário, o que ajuda o espectador a se sentir mais próximo, mas é um complicador na situação atual. Então, o Walter Carvalho e o Philippe Barcinski (diretores da novela) vieram com a solução de usar acrílico nas câmeras, como essas máscaras tipo face shield, protegendo quem filma e quem é filmado, já que os atores ficam muitas vezes sem máscara. Também há um fiscal de protocolo, vendo se os atores passam álcool em gel nas mãos sempre que tocam alguma coisa, antes que levem as mãos ao rosto. O álcool virou uma espécie de TOC.
As gravações da novela pararam em 14 de março, eu estive no estúdio pela última vez seis dias depois. Segui trabalhando, junto com a Manuela Dias (autora da trama), e com a equipe durante esse tempo todo, pesquisando caminhos, planejando a volta, buscando soluções. Voltamos ao estúdio no dia 10 de agosto, fazendo testes, entendendo como seria.
No dia 14, filmei a primeira cena, com Regina Casé, na casa da Lurdes. Também botamos a pandemia na novela, o que ajuda na realização. Há muitas cenas com máscara. E, durante os ensaios, todo mundo usa máscara. Eu evito me aproximar, o que foi difícil, porque gosto de pegar no ator, falar pertinho. A Regina também tem isso. Agora, não pego mais. Gosto de colocar música no estúdio, é um jeito de trazer mais emoção. Uso música como método de trabalho, como parte do processo. Desde o laboratório, a preparação do elenco. E aí, quando começamos a filmar, a música traz aquela memória afetiva. Costumo abrir o trabalho ouvindo “O estrangeiro”, do Caetano. E o elenco também traz canções. Regina trouxe a dela, “Onde estará o meu amor?”, com Bethânia cantando. O clima tem sido muito especial. No distanciamento provocado pela pandemia, mesmo quando a gente se encontra, o encontro não se realiza plenamente. E isso emociona. Mas a equipe está feliz em voltar, e animada para concluir a história interrompida num susto, que já dura cinco meses. Todos desejosos de ver o resultado no ar. Trabalhar neste momento de exceção pelo qual o mundo passa é uma maneira de manter o nosso norte, é o exercício da paixão que nos mantém vivos.
“No distanciamento, provocado pela pandemia, mesmo quando a gente se encontra, o encontro não se realiza plenamente. E isso emociona”
Eu queria começar pelo cenário da personagem da Regina, um cenário apertado, intimista, inspirado em casas reais que visitei. O quarto, por exemplo, tem 2 metros por 1,5 metro. Nesse novo protocolo, de dois metros de distância entre atores e equipamentos, era o ambiente mais difícil de filmar. Aquele lugar nos daria um diagnóstico sobre se seria possível filmar a partir do protocolo ou não. E estar de volta ao cenário, com a equipe, foi muito emocionante.
Beijo sem efeito especial
No dia 24 começamos as gravações externas. Por causa do protocolo, temos só duas frentes. Antes, eram duas frentes no estúdio, de segunda a sábado, uma externa na cidade cenográfica e outra numa locação pelo Rio. Assim os blocos de seis capítulos eram produzidos. Com o protocolo, ainda não sabemos como fica a produtividade, mas são apenas duas frentes. Porque quanto menos pessoas, menores os riscos. Cada frente tem dois diretores e uma equipe de crise. Gravamos duas semanas e paramos uma. Há ainda uma quarta equipe, remota, que entra em cena caso seja necessário substituir alguém.
Depois de três horas de gravações, paramos para trocar a máscara e temos um intervalo de meia hora, para respirar livremente, num ambiente em que ficamos à distância. Nessa hora gosto de dar uma andada, ficar um pouco sozinho.
Para que os atores possam interagir sem riscos, uma solução seria o confinamento total da equipe. Mas as pessoas estão isoladas, com os filhos em casa, não dá para desencontrar as famílias. Então, eu e a Luciana Monteiro (produtora da novela) selecionamos as cenas em que eu quero que haja contato físico e isolamos apenas os atores dessas cenas até que elas sejam feitas. Eles ficam num hotel. São testados antes, ficam quatro dias, refazem os testes e, se estiver tudo bem, gravam com contato, que pode ser um abraço, um beijo no rosto e até um beijo na boca, que já gravamos. Sem efeito especial. Isis Valverde e Humberto Carrão vão se beijar, Malu Galli e Juliano Cazarré já se beijaram.
Outra coisa que acabou foi a troca excessiva de roupa dos atores. Estamos fazendo dias mais longos nos capítulos, não há muito amanhecer, entardecer... Marie Sales, a figurinista, deixa as roupas higienizadas e já separadas na arara. O ator se troca e se maquia. Ninguém acorda maquiado, né? Como a novela é mais para realista, já não tinha uma maquiagem pesada. Agora, quando há realmente a necessidade de se maquiar mais, é um ator por vez. E os camarins são todos individuais. Acabou o contato físico no ensaio, o abraço. Isso está sendo difícil. A gente chegar depois de cinco meses e não dar um abraço, ter que falar de longe... É um distanciamento muito estranho. Mas uma qualidade do ser humano é que a gente se acostuma com tudo.
A Covid entrou na novela, mas a trajetória dos personagens não vai mudar. Quem está vendo “Amor de mãe”, teve a suspensão, mas vai se emocionar de novo. Vai ser bom reviver essa história. Espero que, quando a novela for exibida, a gente já esteja vivendo um momento menos dramático da pandemia. E aí, vamos olhar para trás e, talvez, dizer: aprendemos um novo modo de fazer, mas sobretudo compreendemos que, sem o afeto do outro, a vida se torna praticamente impossível.