August 24, 2019

Terrivelmente humanos



Andréa Pachá

 

Nunca foi tão necessário afirmar a racionalidade e a esperança. O ambiente pesado e conturbado tem nos adoecido, e a menos que se pretenda passar os próximos anos aprisionados nas redes sociais, turbinando confrontos e ampliando insultos, é conveniente que busquemos alternativas para a sobrevivência afetiva e racional. O processo de transição histórica e política pode ser longo. Nossa finitude exige urgência para a vida.

Nem bem havíamos nos recuperado das nuvens carregadas das queimadas florestais, resultado da desconstrução de políticas ambientais, que transformaram o dia em noite em São Paulo, mal desapareceram dos noticiários as mortes dos seis jovens, moradores de comunidades, alvejados em operações desastrosas de extermínio, um ônibus, atravessado no vão central da Ponte Rio-Niterói, impunha mais uma angústia para se juntar a tantas outras.

Não foi um episódio costumeiro de roubo e violência pública. O sequestrador, pobre, sofria de doença mental e, em um surto, vitimou tragicamente 37 pessoas. Felizmente, todas foram salvas. Infelizmente, a morte de Willian e a complexidade da tragédia impedem qualquer celebração.
São devastadoras as histórias que envolvem pessoas com doenças mentais, especialmente as mais pobres. Além do preconceito e da dor provocada pela desinformação, falta de tratamento adequado, pelo déficit das casas terapêuticas e desabastecimento de medicação, as famílias ainda convivem com a instabilidade cotidiana, com o medo de suicídios iminentes, em um luto de difícil ou quase impossível recuperação. Pessoas com doenças mentais, muitas vezes, se tornam agressivas e podem causar danos a elas próprias e aos que as cercam. São vulneráveis. Precisam de suporte e acolhimento social e familiar.

O Estado, que deveria estar presente para suprir tais necessidades, apenas aparece quando pouco ou nada há a fazer. A atuação da polícia permitiu que as vítimas saíssem ilesas do sequestro. Não é de polícia, no entanto, que os vulneráveis com doença mental necessitam para verem garantidos os seus direitos. O que assistimos no vão central da ponte não foi o sucesso da política de segurança, mas o fracasso das demais políticas sociais que vêm sendo sucateadas.

Enquanto mortes são naturalizadas e banalizadas, enquanto autoridades se comprazem com a truculência e o ódio, enquanto famílias ficam sem desculpas ou explicações pela perda de seus filhos e netos, dois gestos de delicadeza, terrivelmente humanos, nos conectaram com os melhores sentimentos, e sintetizaram a esperança, em um contexto que parece nos desumanizar todos os dias.
Willian já estava morto, quando o primo dele se desculpou com as vítimas, uma a uma. Não tinha qualquer motivo para tanto. Também ele era vítima de um destino trágico que levou para o seio daquela família a dor de um surto psicótico. Ainda assim, quis suavizar o sofrimento dos outros.

Mais comovente ainda foi a voz de Paulo César Leal, pai de uma refém, consolando a mãe do rapaz morto. Ele tinha todos os motivos para se descontrolar, para reagir agressivamente; afinal, era a filha dele, que aos 23 anos acabara de passar por intermináveis horas de medo e pavor. Seria compreensível ver Paulo César comemorando o triste desfecho, ou engrossando o coro insano do “bandido bom é bandido morto”. Não foi o que fez. Disse ele:

— O que você fala para uma família que perdeu um filho? A minha intenção foi ajudar porque a dor é sentida pelos dois lados. E ali, naquele momento, ela estava precisando de apoio. Não adianta ver só o meu lado, a minha família. Somos todos humanos.

Não é ingenuidade apostar no processo civilizatório. É respeitoso para com os que nos precederam. Se a realidade se mostra cruel, e se parece impossível vencer a perplexidade e a inércia nos grandes enfrentamentos, é a política cotidiana da delicadeza que garantirá a sobrevivência e a reconciliação com os valores humanos que nos forjaram. Alteridade, compaixão e afeto são sentimentos que neutralizam a escalada do ódio e do extermínio.

ILUSTRAÇÃO; MARCELLO


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