João Valadares
Uma saga de 45 anos que envolve pistas falsas,
visitas a quartéis, cemitérios, manicômio judicial, súplicas a
presidentes e pedidos de ajuda a organizações internacionais. Ao seu
lado, a companhia angustiante de uma mãe em busca de um filho: o
silêncio oficial.
Até a morte, aos 105 anos, há pouco mais de um mês, Elzita Ramos de Oliveira Santa Cruz carregou como bandeira e razão de vida a pergunta sem resposta sobre o paradeiro do filho que repetiu enquanto tinha voz.
Morreu sem conseguir enterrar Fernando Santa Cruz, desaparecido em fevereiro de 1974, após ser preso em um sábado de Carnaval por órgãos de repressão da ditadura militar, numa esquina de Copacabana, no Rio de Janeiro.
No início da semana passada, o caso voltou à tona, quando o presidente Jair Bolsonaro (PSL) cutucou uma ferida que nunca sarou na família. De forma irônica, disse que poderia contar ao presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, filho de Fernando, como seu pai havia desaparecido nos tempos de repressão.
Bolsonaro relatou, na contramão do que evidenciam documentos históricos, que o militante político teria sido morto por integrantes da Ação Popular, grupo de esquerda contrário ao regime militar.
Um dia depois, o presidente ainda chamou de "balela" os documentos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o único e pequeno alento que o Estado brasileiro conseguiu oferecer a Elzita na tentativa de reconstruir minimamente as circunstâncias do assassinato de Fernando.
Pernambucana de Água Preta, interior do estado, mãe de dez filhos, com 28 netos e 32 bisnetos, Elzita morreu sem ter em mãos o atestado de óbito retificado no fim de julho pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao governo federal.
Na última quinta-feira (1º), o cartório liberou o documento para a família no qual aponta que Fernando foi vítima de “morte não natural, violenta, causada pelo estado brasileiro.”
O sofrimento de Elzita, que serviu de adubo para sua conscientização política, começou em 1967, quando Fernando foi preso pela primeira vez, no Recife, após ter queimado uma bandeira dos EUA durante um protesto.
Foi levado a um juizado para menores e liberado em uma semana, após Elzita conseguir declaração de médicos do IML (Instituto de Medicina Legal) atestando que seu filho ainda iria completar 18.
Três anos depois, Marcelo Santa Cruz, o seu segundo filho, foi expulso da Faculdade de Direito do Recife. Por sua atuação política, teve os direitos estudantis cassados e foi estudar em Lisboa, Portugal. No Brasil, Elzita, casada com o médico sanitarista Lincoln de Santa Cruz Oliveira, fazia contas para ajudar o filho a se manter no exterior.
Em 1971, logo após o retorno de Marcelo ao Brasil, sentiu o braço mais forte da repressão. Rosalina Santa Cruz, a filha mais velha, hoje professora da PUC-SP, foi presa no Rio de Janeiro ao lado do marido, o engenheiro agrônomo Geraldo Leite.
O episódio é retratado no livro “Onde Está Meu Filho?”, de Chico de Assis, Cristina Tavares, Gilvandro Filho, Glória Brandão, Jodeval Duarte e Nagib Jorge Neto. Rosalina integrava o grupo de extrema esquerda VAR-Palmares, que participou da luta armada contra o regime militar.
Após 55 dias sem nenhuma notícia, Elzita recebeu a ligação de um oficial do Exército dizendo que passaria às 6h em um carro descaracterizado para levá-la até a filha. “Vou sozinha. Estou disposta a correr todos os riscos”, disse na ocasião ao filho Marcelo.
Pouco tempo depois, encontrou a filha cheia de curativos e manchas roxas pelo corpo. Ela estava na sede do 1º Exército, no Rio de Janeiro.
Diante dos agentes da repressão, perguntou a ela se eles haviam a torturado. A filha desconversou. Por causa das pancadas nos ouvidos, chutes e choques elétricos, teve um aborto na prisão.
Um oficial informou a Elzita que ela estava lá para convencê-la a colaborar. Retrucou e disse que não educou a filha para entregar ninguém. Na saída, recusou-se a assinar um termo para atestar que Rosalina estava bem fisicamente.
A filha só foi solta um ano depois, em 1972. E o pesadelo de Elzita que a acompanharia até a morte chegou dois anos depois.
A partir daí, teve início a busca que iria durar a vida inteira. Sem derramar lágrimas públicas, desafiou generais, questionou torturadores e escreveu cartas para autoridades.
Fazia peregrinações no Congresso para entregar pessoalmente cartas a deputados. No mercado, no açougue e nas filas de banco, falava abertamente que a ditadura militar havia sumido com seu filho.
A Armando Falcão, então ministro da Justiça de Ernesto Geisel (1974-1979), rebateu a informação recebida de que Fernando estava na clandestinidade.
“Que clandestinidade seria esta, que transformaria um filho respeitoso, carinhoso e digno em um ser cruel e desumano, que desprezaria a dor de sua velha mãe, a aflição de sua jovem esposa e o carinho do seu filho muito amado?”, questionou.
Antes, por intermédio de dom Paulo Evaristo Arns, havia estado pessoalmente, junto com mais 12 famílias de desaparecidos, com então ministro-chefe do Gabinete Civil Golbery do Couto e Silva.
Quando começou a falar do seu filho, foi interrompida de imediato. Golbery afirmou que, sobre aquele caso, tinha mais informações. A resposta que, num primeiro momento deu ânimo e esperança, nunca veio.
Em outubro de 1974, enviou cartas a Ernesto Geisel e à primeira-dama Lucy Geisel. "Por que, senhor presidente, se nega em um país democrata o direito de defesa, o respeito à vida de uma pessoa? Por quê?", escreveu.
Foi recebida no terraço da casa do conhecido general do Exército Antônio Bandeira, que comandou as tropas empregadas na Guerrilha do Araguaia. Voltou sem resposta. Escutou apenas que ele não poderia fazer nada.
Em 2012, no livro escrito pelo jornalista Marcelo Netto “Memórias de uma Guerra Suja”, o ex-delegado Cláudio Guerra disse que os corpos de Fernando, Collier e outros dez desaparecidos foram incinerados em fornos numa usina de açúcar de Campos de Goytacazes (RJ).
Para familiares, Elzita reagiu como ainda quem guardava esperança de enterrar o filho. “Vocês vão acreditar na palavra de um torturador?”, disse.
Por meio do então arcebispo do Recife e Olinda dom Helder Câmara, com quem sempre se encontrava, fez chegar a Rosalynn Carter, ex-primeira dama dos EUA, casada com Jimmy Carter, uma correspondência em que pedia ajuda.
Marcelo Santa Cruz relembra que dom Helder dizia para Elzita: “A senhora tome cuidado. Eu sou como fogo. As pessoas quando chegam aqui saem todas queimadas”, num alerta sobre a repressão. Ela respondia: “Eu já estou no inferno faz muito tempo”.
A cada pista nova, surgia uma esperança. Meses depois do desaparecimento, chegou a informação de que Eduardo Collier estaria na França. Logo em seguida, verificou-se que não era verdade.
Em seguida, Elzita foi atrás de uma pista que dava conta de que Fernando estaria no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo.
Levou fotografias, distribuiu com os funcionários e voltou ao Recife sem encontrar o filho. Há 12 anos, esteve no IML (Instituto Médico-Legal) do Rio de Janeiro porque ficou sabendo que um homem muito parecido com Fernando foi enterrado como indigente. Olhou as fotografias e viu que não era seu filho.
Perdeu as contas de quantos quartéis visitou no Recife, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Também esteve em inúmeros cemitérios na tentativa de achar as ossadas do filho.
Até morrer, Elzita mantinha o mesmo número do telefone fixo, na esperança de que o filho desaparecido pudesse ligar para casa ou que qualquer pista pudesse chegar a ela. Em um dos quartos de sua casa, guardava fotos, documentos e roupas de Fernando.
No aniversário de 102 anos, já bastante debilitada de saúde em razão da idade avançada, conseguiu completar, estimulada pelos filhos, o poema de autor desconhecido que repetiu a vida inteira.
“Hei de vê-lo voltar, ela dizia, o meu doce consolo, o meu filhinho. Passam-se anos, e o véu do esquecimento baixando sobre as coisas tudo apaga. Menos da mãe, no triste isolamento, a saudade que o coração esmaga."
Nascido no Recife, se juntou no fim dos anos 1960 à Ação Popular Marxista Leninista, grupo dissidente da Ação Popular, da juventude católica.
Nenhum documento escrito sobre ele pela própria ditadura o vincula a qualquer ato violento ou da esquerda armada. Fernando não era processado quando desapareceu, aos 26 anos. Ele usava seu nome e sobrenome reais e era funcionário público de uma empresa de água e energia de São Paulo.
No Carnaval de 1974, foi visitar seu amigo Collier, que morava no Rio. Desapareceu quando se dirigia ao encontro, em Copacabana.
Até a morte, aos 105 anos, há pouco mais de um mês, Elzita Ramos de Oliveira Santa Cruz carregou como bandeira e razão de vida a pergunta sem resposta sobre o paradeiro do filho que repetiu enquanto tinha voz.
Morreu sem conseguir enterrar Fernando Santa Cruz, desaparecido em fevereiro de 1974, após ser preso em um sábado de Carnaval por órgãos de repressão da ditadura militar, numa esquina de Copacabana, no Rio de Janeiro.
No início da semana passada, o caso voltou à tona, quando o presidente Jair Bolsonaro (PSL) cutucou uma ferida que nunca sarou na família. De forma irônica, disse que poderia contar ao presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, filho de Fernando, como seu pai havia desaparecido nos tempos de repressão.
Bolsonaro relatou, na contramão do que evidenciam documentos históricos, que o militante político teria sido morto por integrantes da Ação Popular, grupo de esquerda contrário ao regime militar.
Um dia depois, o presidente ainda chamou de "balela" os documentos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o único e pequeno alento que o Estado brasileiro conseguiu oferecer a Elzita na tentativa de reconstruir minimamente as circunstâncias do assassinato de Fernando.
Pernambucana de Água Preta, interior do estado, mãe de dez filhos, com 28 netos e 32 bisnetos, Elzita morreu sem ter em mãos o atestado de óbito retificado no fim de julho pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao governo federal.
Na última quinta-feira (1º), o cartório liberou o documento para a família no qual aponta que Fernando foi vítima de “morte não natural, violenta, causada pelo estado brasileiro.”
O sofrimento de Elzita, que serviu de adubo para sua conscientização política, começou em 1967, quando Fernando foi preso pela primeira vez, no Recife, após ter queimado uma bandeira dos EUA durante um protesto.
Foi levado a um juizado para menores e liberado em uma semana, após Elzita conseguir declaração de médicos do IML (Instituto de Medicina Legal) atestando que seu filho ainda iria completar 18.
Três anos depois, Marcelo Santa Cruz, o seu segundo filho, foi expulso da Faculdade de Direito do Recife. Por sua atuação política, teve os direitos estudantis cassados e foi estudar em Lisboa, Portugal. No Brasil, Elzita, casada com o médico sanitarista Lincoln de Santa Cruz Oliveira, fazia contas para ajudar o filho a se manter no exterior.
Em 1971, logo após o retorno de Marcelo ao Brasil, sentiu o braço mais forte da repressão. Rosalina Santa Cruz, a filha mais velha, hoje professora da PUC-SP, foi presa no Rio de Janeiro ao lado do marido, o engenheiro agrônomo Geraldo Leite.
O episódio é retratado no livro “Onde Está Meu Filho?”, de Chico de Assis, Cristina Tavares, Gilvandro Filho, Glória Brandão, Jodeval Duarte e Nagib Jorge Neto. Rosalina integrava o grupo de extrema esquerda VAR-Palmares, que participou da luta armada contra o regime militar.
Após 55 dias sem nenhuma notícia, Elzita recebeu a ligação de um oficial do Exército dizendo que passaria às 6h em um carro descaracterizado para levá-la até a filha. “Vou sozinha. Estou disposta a correr todos os riscos”, disse na ocasião ao filho Marcelo.
Pouco tempo depois, encontrou a filha cheia de curativos e manchas roxas pelo corpo. Ela estava na sede do 1º Exército, no Rio de Janeiro.
Diante dos agentes da repressão, perguntou a ela se eles haviam a torturado. A filha desconversou. Por causa das pancadas nos ouvidos, chutes e choques elétricos, teve um aborto na prisão.
Um oficial informou a Elzita que ela estava lá para convencê-la a colaborar. Retrucou e disse que não educou a filha para entregar ninguém. Na saída, recusou-se a assinar um termo para atestar que Rosalina estava bem fisicamente.
A filha só foi solta um ano depois, em 1972. E o pesadelo de Elzita que a acompanharia até a morte chegou dois anos depois.
O pesadelo
Militante da Ação Popular Marxista-Leninista, Fernando foi visto pela última vez por seus familiares no 23 de fevereiro de 1974. Desapareceu junto com o amigo de infância Eduardo Collier Filho.A partir daí, teve início a busca que iria durar a vida inteira. Sem derramar lágrimas públicas, desafiou generais, questionou torturadores e escreveu cartas para autoridades.
Fazia peregrinações no Congresso para entregar pessoalmente cartas a deputados. No mercado, no açougue e nas filas de banco, falava abertamente que a ditadura militar havia sumido com seu filho.
A Armando Falcão, então ministro da Justiça de Ernesto Geisel (1974-1979), rebateu a informação recebida de que Fernando estava na clandestinidade.
“Que clandestinidade seria esta, que transformaria um filho respeitoso, carinhoso e digno em um ser cruel e desumano, que desprezaria a dor de sua velha mãe, a aflição de sua jovem esposa e o carinho do seu filho muito amado?”, questionou.
Antes, por intermédio de dom Paulo Evaristo Arns, havia estado pessoalmente, junto com mais 12 famílias de desaparecidos, com então ministro-chefe do Gabinete Civil Golbery do Couto e Silva.
Quando começou a falar do seu filho, foi interrompida de imediato. Golbery afirmou que, sobre aquele caso, tinha mais informações. A resposta que, num primeiro momento deu ânimo e esperança, nunca veio.
Em outubro de 1974, enviou cartas a Ernesto Geisel e à primeira-dama Lucy Geisel. "Por que, senhor presidente, se nega em um país democrata o direito de defesa, o respeito à vida de uma pessoa? Por quê?", escreveu.
Foi recebida no terraço da casa do conhecido general do Exército Antônio Bandeira, que comandou as tropas empregadas na Guerrilha do Araguaia. Voltou sem resposta. Escutou apenas que ele não poderia fazer nada.
Em 2012, no livro escrito pelo jornalista Marcelo Netto “Memórias de uma Guerra Suja”, o ex-delegado Cláudio Guerra disse que os corpos de Fernando, Collier e outros dez desaparecidos foram incinerados em fornos numa usina de açúcar de Campos de Goytacazes (RJ).
Para familiares, Elzita reagiu como ainda quem guardava esperança de enterrar o filho. “Vocês vão acreditar na palavra de um torturador?”, disse.
Por meio do então arcebispo do Recife e Olinda dom Helder Câmara, com quem sempre se encontrava, fez chegar a Rosalynn Carter, ex-primeira dama dos EUA, casada com Jimmy Carter, uma correspondência em que pedia ajuda.
Marcelo Santa Cruz relembra que dom Helder dizia para Elzita: “A senhora tome cuidado. Eu sou como fogo. As pessoas quando chegam aqui saem todas queimadas”, num alerta sobre a repressão. Ela respondia: “Eu já estou no inferno faz muito tempo”.
A cada pista nova, surgia uma esperança. Meses depois do desaparecimento, chegou a informação de que Eduardo Collier estaria na França. Logo em seguida, verificou-se que não era verdade.
Em seguida, Elzita foi atrás de uma pista que dava conta de que Fernando estaria no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo.
Levou fotografias, distribuiu com os funcionários e voltou ao Recife sem encontrar o filho. Há 12 anos, esteve no IML (Instituto Médico-Legal) do Rio de Janeiro porque ficou sabendo que um homem muito parecido com Fernando foi enterrado como indigente. Olhou as fotografias e viu que não era seu filho.
Perdeu as contas de quantos quartéis visitou no Recife, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Também esteve em inúmeros cemitérios na tentativa de achar as ossadas do filho.
Até morrer, Elzita mantinha o mesmo número do telefone fixo, na esperança de que o filho desaparecido pudesse ligar para casa ou que qualquer pista pudesse chegar a ela. Em um dos quartos de sua casa, guardava fotos, documentos e roupas de Fernando.
No aniversário de 102 anos, já bastante debilitada de saúde em razão da idade avançada, conseguiu completar, estimulada pelos filhos, o poema de autor desconhecido que repetiu a vida inteira.
“Hei de vê-lo voltar, ela dizia, o meu doce consolo, o meu filhinho. Passam-se anos, e o véu do esquecimento baixando sobre as coisas tudo apaga. Menos da mãe, no triste isolamento, a saudade que o coração esmaga."
Quem era Fernando Santa Cruz de Oliveira
Fernando desapareceu em fevereiro de 1974, após ser preso por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar, no Rio de Janeiro. Ele era pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, na época um bebê de dois anos.Nascido no Recife, se juntou no fim dos anos 1960 à Ação Popular Marxista Leninista, grupo dissidente da Ação Popular, da juventude católica.
Nenhum documento escrito sobre ele pela própria ditadura o vincula a qualquer ato violento ou da esquerda armada. Fernando não era processado quando desapareceu, aos 26 anos. Ele usava seu nome e sobrenome reais e era funcionário público de uma empresa de água e energia de São Paulo.
No Carnaval de 1974, foi visitar seu amigo Collier, que morava no Rio. Desapareceu quando se dirigia ao encontro, em Copacabana.
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