Não sei quais crimes cometeram os 16 seres humanos decapitados em uma rebelião em Altamira, no Pará, que deixou 57 mortos. Difícil saber, dado o elevado número de presos no Brasil ainda sem julgamento e esquecidos nas celas sem acesso a advogados de defesa. E, mesmo que fossem assassinos e estupradores, não haviam sido condenados à morte. Esta pena não está prevista na Constituição brasileira.
A indignação no Brasil, no entanto, foi morna. É o fenômeno da normalização. O impacto talvez tenha ficado aquém até mesmo de episódios similares em séries de TV. A decapitação da personagem Missandei por ordem de Cersei nas muralhas de King’s Landing, capital de Westeros, o continente fictício da série “Game of Thrones”, causou enorme comoção entre brasileiros no dia 5 de maio. A forma como ela foi morta provocou indignação nas redes sociais, algo pouco visto após Altamira.
Sei que alguns dirão que, no Pará, eram bandidos matando bandidos. Ainda assim, a decapitação de 16 prisioneiros seria algo impensável em democracias europeias, no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos. Autoridades precisariam prestar esclarecimentos. Estes prisioneiros estão sob responsabilidade do Estado, e este deve garantir sua segurança. O Estado brasileiro simplesmente fracassou, e não pela primeira vez. Nossa sociedade, infelizmente, parece anestesiada. Parte, sim, demonstrou indignação. Outros seguem indiferentes por estarem distante dos acontecimentos. Alguns defendem as mortes por terem sido “bandidos” e chegam a citar que os EUA têm pena de morte.
Este último grupo de pessoas, que celebra a morte dos bandidos, comete um grave equívoco. Em primeiro lugar, não existe pena capital em todo o território americano: 21 estados proíbem, e outros decretaram moratória. Em segundo lugar, o processo para a implementação da execução demora anos ou décadas. O réu tem condições de apelar sucessivas vezes. Terceiro, o número de pessoas condenadas à morte nos EUA diminuiu nos últimos anos. Quarto, já comprovaram a inocência de alguns condenados depois da execução, o que demonstra o risco de inocentes serem mortos por equívoco pelo Estado. Por último, não há execução por decapitação nos Estados Unidos. A Arábia Saudita é dos raros países que decapita pessoas sentenciadas à morte. Apenas em 2018, foram 150 decapitados pela Justiça saudita. Condenados por assassinato, terrorismo, estupro, roubo, tráfico ou posse de drogas, adultério, renegação do islamismo, traição e espionagem integram a lista de alguns dos crimes com pena capital no país. Muitos, no entanto, seriam apenas inocentes que se opõem ao sanguinário regime. Vale lembrar que estes dados refletem apenas número de decapitados, mas crucificação, apedrejamento e enforcamento são outros métodos usados pelos sauditas. E, se não contarmos a China, 4 em cada 5 execuções no mundo ocorreram em Arábia Saudita, Irã, Iraque e Vietnã. Isso pela Justiça. Execuções extraestatais são mais comuns em Brasil, México e América Central.
Portanto, um defensor da decapitação de criminosos estaria mais em sintonia com a Arábia Saudita do que com o Canadá. Estaria ainda em sintonia com os terroristas do Estado Islâmico, que cortavam a cabeça dos inimigos e penduravam em praça pública. Caso a pessoa seja entusiasta da pena, recomendo buscar na internet o vídeo da decapitação do jornalista James Foley ou cenas das cabeças em postes em Raqqa.
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